SOB A LUZ DO AMANHÃ

Apresentação do livro Sob a luz do amanhã, mais uma publicação do Projeto 1M/1C. É minha primeira inserção no gênero Sci-fi (escrevi um conto distópico: Dias Passados) e mais uma vez satisfeito com a experiência. Os participantes são de todo território nacional e mais uma autora de Portugal.

PREFÁCIO DE ISADORA URBANO*

Carros voadores, viagens no tempo, guerras interplanetárias e distopias irresistíveis: é mais que certo que a ficção científica conquistou seu espaço (com o perdão do trocadilho) e impregnou a cultura literária e cinematográfica das últimas décadas até as entranhas. Hoje, é praticamente impossível passar ao largo do seu impacto, que não apenas reaparece constantemente nos milhares de produtos da assim chamada “cultura de massa” mas que também configurou – talvez irremediavelmente – parte do imaginário que constitui o conjunto de ideias que fazemos, por exemplo, da tecnologia, do universo e do futuro.

A verdade é que a ficção científica se tornou tão relevante que ganhou espaço até mesmo dentro das universidades e do cinema “cult” — inclusive, com títulos inesquecíveis como os aclamados Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) e Ela (2013) —, além de se fazer presente em quadrinhos, videogames, blockbusters e livros, é claro, como este que você agora tem em mãos.

Contudo, é importante lembrar que embora a expressão tenha ganhado força e popularidade, a definição de “ficção científica” está longe de se ver resolvida. Aliás, é precisamente sobre isso que Adam Roberts se propõe a discutir no primeiro capítulo do seu célebre A verdadeira história da ficção científica (Seoman, 2018), apresentando três definições diferentes para o gênero, e mencionando mais algumas de passagem.

Em vista dessa pluralidade de caminhos, destaco aqui, com palavras minhas mas ideias alheias, algumas das principais linhas com que poderíamos começar a refletir sobre o assunto. Assim (sem nenhuma intenção de colocar a palavra final sobre o tema), podemos considerar a ficção científica como:

(a) um gênero literário com convenções específicas, como propõem Darko Suvin e Damien Broderick;

(b)  uma “estratégia de leitura”, na esteira de Samuel Delany; e

(c) aquilo que se publica como ficção científica, como sugere Norman Spinrad.

Apesar de essas propostas terem alguns pontos muito fortes (e outros mais duvidosos…), é válido lembrar que, se por um lado elas nem sempre coincidem, tampouco estão em franco antagonismo. Afinal, o ideal de um “purismo” literário não passa de uma tentativa de compreensão e categorização que não encontra correspondência exata nos textos e obras concretas. Ou seja: um gênero puro, uma ficção científica “pura”, não passa de uma abstração. Na prática, lidamos com uma disputa de discursos, mais ou menos consciente, a favor ou contra a classificação de um objeto em um ou outro gênero. Um exemplo conhecido é o de Margaret Atwood, que prefere o termo ficção especulativa (e não “científica”) para falar de seus romances — mas não vamos entrar no mérito da questão.

Fato é que colocar limites precisos para qualquer gênero literário — seja ele de fantasia, policial, suspense, terror, realismo, e assim por diante —, é uma tarefa que beira o impossível, justamente porque não podemos nos livrar da contradição entre o caráter ideal das classificações que definem os gêneros literários e a realidade “transgressora” dos produtos de mídia, que têm o costume maroto de escorregar para fora do molde a cada vez que um novo molde é proposto.

Mas, além dessa dificuldade intrínseca à tarefa classificatória, não podemos perder de vista a existência de uma disputa ideológica que atravessa a discussão, uma vez que muitos consideram, ainda que equivocadamente, a ficção científica como um gênero alienado e menor. Nesse sentido, apesar de estar arraigado na cultura ocidental, o gênero ainda reivindica legitimidade e reconhecimento. Afinal de contas, se engana quem pensa que, por estar frequentemente ligada a um mundo imaginativo cheio de engenhocas e parafernálias futuristas, a ficção científica não se inquieta com as questões sociais, culturais e políticas do mundo empírico.

Na verdade, os exemplos são incontáveis, desde as incipientes preocupações de H. G. Wells com a fragilidade humana frente ao desconhecido — passando pelos receios distópicos de Huxley, Bradbury e Orwell —, até chegar às inquietações feministas de Ursula K. Le Guin e Joanna Russ e à literatura engajada de Octavia E. Butler. E também na televisão: afinal, o sucesso que séries recentes como Westworld, Dark, The Boys e (por que não?) O conto da aia conheceram — sem desmerecer os esforços na produção do figurino, efeitos especiais, direção de cena, atuação, etc. — sem dúvida também se deve ao alto potencial crítico que todas elas apresentam. E não só, já que até os queridinhos do cinema sci-fi,como Star Wars e Jurassic Park, também explicitam conflitos políticos e éticos com os quais ainda teremos que nos haver, como a bioética envolvida no uso do desenvolvimento científico e o confronto aos poderes fascistas em ascensão.

Na coletânea que vem a seguir, encontraremos reflexos de como diferentes mentes percebem o mundo, cada uma com suas questões singulares e suas próprias pautas. Não deixam de estar presentes a política e a sociedade, mas também as relações entre pais e filhos, a vida – ou “inteligência” – artificial, o incontornável fardo do corpo humano e as prospecções (mais ou menos otimistas) sobre o futuro. E é assim, em meio a tantas questões, necessárias à busca por soluções e por respostas, que cada autor dos textos desta antologia também nos comunica um tanto de si, assim como das suas experiências, perguntas e interpretações sobre o mundo que compartilhamos. Vamos, então, ouvir o que eles têm a dizer.

*Isadora Urbano formada em Letras pela UFMG, onde atualmente faz o mestrado na área de Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Sua pesquisa inclui temas como contos de fadas, feminismo e psicanálise.

Foto: Paloma (Divulgação)

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