MEMÓRIA VIVA: A CONEXÃO ENTRE DAVID DE CARVALHO E JOÃO GUIMARÃES ROSA*

@toniramosgoncalves**

Escritor David de Carvalho, professor Marco Elísio Chaves Coutinho, professor e advogado Dr. José Luiz Guimarães, O conferencista Hélio Malett, , o reitor da Universidade de Itaúna, Dr. Guaracy de Castro Nogueira, professor da UI Antônio de Oliveira e o diretor executivo da UI professor Francisco de Felippo.

A preservação da memória é fundamental para compreendermos a essência e a história de uma cidade. Através do resgate e da valorização dos fatos e eventos que moldaram seu passado, podemos construir uma narrativa coesa e significativa, que reverencia a identidade e o legado dos seus habitantes. Ao preservarmos a memória de uma cidade, garantimos a continuidade das tradições, o fortalecimento da cultura local e a transmissão de conhecimento às gerações futuras.

No mês de setembro de 1973, quase 50 anos atrás, ocorreu em Itaúna a I Semana de Estudos sobre Guimarães Rosa. Esse evento foi idealizado pelo escritor e contista David de Carvalho (1931-2002), em parceria com a Universidade de Itaúna, tendo como reitor Guaracy de Castro Nogueira. David de Carvalho, como presidente da Comissão Organizadora teve a responsabilidade de convidar e conduzir todo o processo de homenagem, contando com a participação da filha de Guimarães Rosa, Vilma Guimarães Rosa (1931-2022), que gentilmente respondia às cartas. O evento foi um grande sucesso e contou com a presença de diversos intelectuais da época, incluindo a jornalista Carmem Schneider Guimarães, recentemente falecida e membro da Academia Mineira de Letras.

David de Carvalho, itaunense de coração, constituiu neste lugar sua família, tendo sete filhos, e obteve grande sucesso como escritor. Ele nasceu em 29 de dezembro de 1931, em Santo Antônio do Amparo-MG, e posteriormente mudou-se para Itaúna, onde estudou como interno no Colégio Santana durante o ensino médio e, mais tarde, na Escola Normal. David era um homem simples, autodidata, culto e amante de antiguidades, que nunca se preocupou com questões materiais. Entre suas várias obras, destacam-se “Abunã” (1976), em que descreve o Amazonas sem nunca ter visitado pessoalmente, “A guerra dos Mamonas Verdes” (1976), que alcançou grande sucesso no teatro e nas escolas municipais e Os três Joãozinhos (1979), que teve uma edição em francês.

Vilma Guimarães e David de Carvalho

 No ano de 1973, David de Carvalho despontou nos círculos literários de Minas Gerais, conquistando o primeiro lugar no IV Concurso Literário de Araguari e recebendo menções honrosas em outros concursos literários. Munido de uma valiosa carta endereçada ao médico Dr. Antônio Augusto de Lima Coutinho, ele deu início a suas investigações sobre a presença de Itaúna na obra de João Guimarães Rosa. Essa pesquisa o levou a descobertas fascinantes e a explorar a conexão profunda entre a terra e a obra do renomado escritor.

Para aqueles que ainda não têm conhecimento, João Guimarães Rosa (1908-1967) formou-se em Medicina pela Universidade de Minas Gerais aos 22 anos, em 1930. Recém-casado, ele veio para o distrito de Dores da Conquista (hoje Itaguara-MG), que fazia parte de Itaúna, onde exerceu a profissão médica por dois anos. Foi nessa cidade que sua filha Vilma Guimarães Rosa nasceu. Durante esse período, estabeleceu várias amizades na Casa de Caridade, o único centro médico da região. Era comum vê-lo nos bares de Itaúna, sempre na companhia de amigos. Essa imersão nos ambientes locais certamente contribuiu para sua futura narrativa.

Diante disso, com a carta dos amigos em mãos, David de Carvalho empreendeu várias entrevistas com pessoas que conviveram com o renomado escritor, demonstrando empenho e dedicação. Por meio desses relatos, ele compilou suas descobertas no excelente ensaio intitulado “João Guimarães Rosa, o místico“, publicado pela revista literária Bel’Contos. Durante essa investigação, constatou-se várias referências a Itaúna e aos amigos nas páginas do livro Sagarana (1946), nos contos “São Marcos“, “A Volta do Marido Pródigo” e “Duelo“. Além disso, o conto “Sarapalha” narra uma epidemia de malária em Itaguara, onde Guimarães Rosa esteve durante esse período, levando-o a reavaliar sua trajetória profissional como médico. Vilma Guimarães Rosa, em seu livro Relembramentos (2008) citou o evento realizado em 1973 e teceu elogios ao excelente ensaio.

Eu conheci David de Carvalho em 1998, quando preparava meu segundo livro “Coisas da Vida” (1998), na editora que ele frequentava. Não hesitei em pedir que escrevesse o prefácio de meu livro, que aceitou de bom grado, pois era uma pessoa incapaz de fazer mal a alguém. Eis um trecho:

Toni Ramos Gonçalves escreve com desembaraço e agilidade, usando as palavras em dosagens certas, sem escassez ou excesso. Nasceu roteirista (….). Mesmo sabendo de meu enrugar de testa quanto a seus temas, me aparece de rosto simpático e descontraído, pedindo-me um prefácio para este livro.” (GONÇALVES, 1998, p.7-8)

Nossa amizade se fortaleceu ao longo dos anos, e ele fazia questão de me visitar com frequência em minha oficina, trazendo algum objeto antigo que precisava de reparo ou apenas trocar um dedo de prosa. Era um homem sábio, de voz suave e tranquila, que me ensinava muito com as suas histórias e as suas recomendações literárias.

Só soube da sua morte dois dias depois, em 29 de setembro de 2002, quando li a notícia no jornal da minha cidade. Foi um choque e uma tristeza imensa. David de Carvalho foi mais do que um amigo, foi um mestre e um mentor para mim e para muitos outros que tiveram o privilégio de conhecê-lo. Ele foi um dos maiores nomes da literatura itaunense, com uma obra rica e diversa, que refletia a sua sensibilidade e a sua inteligência. É preciso manter sua memória viva, pois é uma fonte de inspiração para todos os que se dedicam à escrita, como eu.

Vilma Guimarães e a banda de música em frente a Igreja da Matriz.

*Artigo Publicado no Jornal Folha do Povo, Edição nº 1540 em 15/07/2023.

** Toni Ramos Gonçalves: ex-presidente e membro fundador da Academia Itaunense de Letras. Graduando em História e Jornalismo.

Fotos gentilmente cedidas pela Fundação Maria de Castro. Meus agradecimentos à curadora Patrícia Nogueira.

Fernando Fernandes estreia na poesia com o livro “Escrevedor de versos”

Por Almir Zarfeg*

Almir Zarfeg exibindo exemplar de “Escrevedor de versos”

Finalmente, após décadas de experimentação, Fernando Fernandes resolveu estrear na poesia com o livro “Escrevedor de versos” (Editora Viseu, 2023).

Ao todo, são 40 poemas marcadamente curtos, em versos livres, numa linguagem direta, coloquial e bastante provocativa. Em vez de mandar recadinhos, o poeta diz a que veio com seu pavio curto e elétrico.

Em “Escrevedor de versos” (não subestimem o título!), poesia e prosa se aproximam formalmente, mas a mensagem poética cumpre seu papel de modo incisivo e político, sem abrir mão do lirismo e da metapoesia.

O poeta inicia o livro com “Passa o trem” e o que se lê/vê é algo ao mesmo tempo simples e cinético, diante do qual o leitor tem a impressão de que uma locomotiva a vapor – daquelas que atraíam a atenção da meninada de antigamente – acaba de passar pela página 07 deixando um rastro de fumaça: “Passa o Trem / Vai veloz / Corre tão longe / Sobre os trilhos”.

O autor finaliza o livro com “Nem Nietzsche explica”, um poema, contudo, que mais se parece com um diálogo com René Descartes – aquele do “Cogito, ergo sum” – ou mesmo com Sigmund Freud, aquele que, para o senso comum, possuía o dom de explicar tudo sob o sol:

“Eu penso / Que pensei / Um pensar pensado / Como um soletrar / Dum nome com pronúncia perfeita. / Eu não tenho convicção / Mas toda regra tem exceção. / Por isso duvido das minhas / Convicções / E acredito no achismo / Das minhas provas”.

A propósito, Nietzsche subverteu o cogito cartesiano propondo esta sentença: “Existo, logo duvido”. Por outro lado, o poeta Fernando parece ter razão ao brincar com a pronúncia difícil (um trava-língua?) de nomes próprios alemães, especialmente de filósofos como Martin Heidegger, Arthur Schopenhauer e o próprio Friedrich Nietzsche.  

No miolo da obra, entre o primeiro e o último poemas, encontra-se o melhor da poesia de Fernando Fernandes. Inclusive o quase haicai “Dia de pagamento” que, pelo impacto causado na luta de classes, já vale um décimo-terceiro salário por antecipação: “É o sonho do trabalhador / É a esperança do beberrão / É a ironia do patrão”.

Vai encontrar também a melhor descrição da casa do poeta – nada a ver com a casa muito engraçada do Vinicius de Moraes: “Na casinha do poeta / Você vai encontrar / Um fuzil empoeirado / Pela saudade do tempo / Nalgum canto da pequena sala…”

Pessoalmente senti falta de alguma referência à pandemia da Covid-19 e, também, de um cruzado bem colocado no baixo-ventre do vírus e do verme, mesmo que metaforicamente, se vocês em compreendem.

Para quem não sabe, FF é natural de Itapebi (“água de pedra achatada”, em bom tupi), mudou-se para Teixeira de Freitas há tempos e, atualmente, reside em Medeiros Neto, ambas cidades banhadas pelo Rio Itanhém (“bacia de pedra”, na língua geral do Brasil). Mas as três cidades são genuinamente baianas. Por sua participação na 7ª edição do Prêmio Castro Alves de Literatura, levou uma belíssima menção honrosa. E na sessão final de 2023 da Academia Teixeirense de Letras será homenageado com uma moção de honra ao mérito por este “Escrevedor de versos”.

Fato é que, faça chuva ou sol, Fernando segue de mãos dadas com Emanuelle (assim ele define sua poesia), obcecado pelo Fluminense Football Club e feliz da vida com a volta da Esquerda ao poder. Não é pouca coisa, concordam comigo?

*Almir Zarfeg – poeta e jornalista – é presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL).

Zarfeg comenta “Diário de uma artista no pensionato”, de Andreia Donadon Leal

Por Almir Zarfeg*

Zarfeg exibindo exemplar do romance “Diário de uma artista no pensionato”

Andreia Donadon Leal marca sua estreia no romance com este “Diário de uma artista no pensionato” (Aldrava Letras e Artes, 2023) e, assim, adiciona mais uma importante realização à sua trajetória artística que já conta com inúmeras obras literárias (em verso e prosa) e também com pinturas em mostras individuais e exposições internacionais coletivas. Ela faz parte do grupo que lidera, desde o início, o Movimento Aldravista em Minas Gerais.

A obra é organizada em forma de diários, esse gênero textual que está vinculado à tipologia descritiva. No romance em questão, contudo, convém falar em tipologia narrativa, uma vez que se trata de ficção com as marcas da autobiografia ou autoficção, como se costuma dizer atualmente.  

Diários, com efeito, através do quais os protagonistas – a artista/esposa e o professor/esposo – se manifestam em sua intimidade, expressando suas opiniões e reflexões sobre a relação a dois, as situações cotidianas e as coisas que os cercam antes e durante o transcorrer da ação fabular.

Desses mesmos diários – que vão dar unidade à narrativa, sucedendo-se ao sabor dos acontecimentos – também vão lançar mão os chamados personagens secundários, como a faxineira, a senhorita, o ex-padeiro e o estudante de medicina.

Outros recursos textuais e/ou estilísticos – como as cartas (enviadas pelos parentes da protagonista), o correio eletrônico (e-mail), a notícia de jornal, a pintura e o poema – também têm espaço garantido no romance de estreia de Andreia Donadon. Uma estratégia que se nos apresenta interessante (e até reveladora) na medida em que o livro vai, o tempo todo, estabelecer vínculos entre interior e capital, presente e passado, equilíbrio e desequilíbrio emocional, arte e antiarte.

Portanto, se à primeira vista o livro não traz nenhuma novidade da perspectiva da história – mesmo porque o tema é a paixão (pathos) e seus desdobramentos –, o enredo é construído de maneira eficiente e envolvente, de sorte que, ao final, ficamos com a sensação de que fomos impactados pelo drama da protagonista e, também, pelo “modus operandi” da narradora em tornar sua ficção convincente.

Longe de nós distribuir spoilers e, portanto, em vez de oferecer detalhes da história de amor entre a jovem artista interiorana e o professor universitário, vamos nos concentrar no enredo e nos aspectos constitutivos da arte de narrar.

A segunda parte do romance – marcada pelo que se convencionou chamar em teoria literária de ponto de virada – brinda os leitores com a mocinha chegando à “Pensão da Capital” ou pensionato, para passar uma temporada ou dar um tempo. Por conta própria e perturbação emocional, ela resolve deixar o marido e partir para a aventura. Pretende mudar de ares e, ao mesmo tempo, tocar sua carreira de pintora e escritora. Mas continua mantendo contato com o marido compreensivo via e-mail.

A ida da protagonista para a cidade grande, independentemente de qualquer ligação com a vida real da autora, acrescenta muito à obra, pois a encontramos a partir daí num universo completamente diferente, pleno de novidades e repleto de motivações. Agora ela se cura da depressão socializando com os novos amigos, sobretudo com o estudante de jornalismo, também se entregando de corpo e alma à criação artística – pintando e escrevendo – no quarto convertido em ateliê.

É nesse cenário habitado por tipos humanos e suas idiossincrasias que a autora vai enriquecer sua obra, não com artifícios formais, mas imprimindo coloquialidade e empatia à narrativa. Os dramas humanos – narrados na 1ª pessoa de maneira simples, comovente e com competência técnica – envolvem os leitores, atraindo-os e tocando-os profundamente.

Mais do que a rotina dos pensionistas, como os estudantes de jornalismo e medicina, o ex-padeiro e a senhorita (senhoria), Andreia explicita toda sorte de desafios materiais, familiares e psicológicos que determinam a vida de cada um deles. Sem fazer concessões de qualquer natureza.

Nem o final feliz – previsto e ansiado por muitos de nós – consegue superar a descrição do assassinato do estudante de jornalismo, numa das cenas mais impactantes do livro. Trata-se de um homossexual equivocado ideologicamente para quem viver é mais perigoso do que supunha Guimarães Rosa, pois pressupõe a rejeição social e familiar que beira o determinismo e a maldição inevitáveis. A morte dele – cujas cinzas são espalhadas pelo jardim da pensão como forma de homenagem – nos conduz às lágrimas.

A aula de semiótica – nas versões americana e europeia – constitui um espetáculo à parte protagonizado pelo professor. Compartilhada com os leitores, a lição semiótica/semiológica não teria sido tão bem-sucedida sem a ajuda desse gênero textual eficiente chamado diário. Um acerto da narradora Andreia, que não deve ser confundida com a personagem da trama.

O primeiro romance de Andreia Donadon, portanto, pode ser classificado como de formação, confissão, autobiográfico ou autoficção. Mas tudo isso precisa importar menos do que reconhecer o talento dela ao absorver a atenção do leitor, segurar pela mão e o conduzir do início ao fim da fábula. Até porque, leitor, “de te fabula narratur”. (risos)

*Almir Zarfeg é poeta e jornalista. Presidente de honra da Academia Teixeirense de Letras (ATL).

MULHERES NA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

Toni Ramos Gonçalves*

Maria Firmina dos Reis, nascida em São Luís do Maranhão, em 1822, autora de Úrsula (1859), é considerada a pioneira da Literatura Afro-Brasileira. Seu livro figura como o primeiro romance abolicionista, de autoria feminina, em Língua Portuguesa, algo revolucionário para seu tempo e, provavelmente, o primeiro romance publicado, na América Latina, por uma mulher negra. Na obra, a escritora narra um triângulo amoroso entre protagonistas negras que questionam o sistema escravocrata.

Apesar de sofrer muito com o racismo e o preconceito tanto na vida como na Literatura, Maria Firmina dos Reis foi a primeira mulher a ser aprovada para o cargo de professora do Ensino Primário no Maranhão, tendo alcançado tal feito aos 25 anos.

Com rosto ainda desconhecido, teve o busto em sua homenagem, em São Luís, moldado de forma errônea, trazendo uma escritora “embranquecida”, de nariz fino, rosto alongado e cabelos lisos.

Sua imagem atravessou décadas sendo registrada de modo equivocado, ora rebatizada e, por vezes, “embranquecida”, sendo confundida com outras personalidades oitocentistas, como a escritora gaúcha Maria Benedita Bormann (1853-1895). Mas, apesar das controvérsias, nada reprimiu a força de sua obra.

Racismo e preconceito racial no Brasil é um tema complexo e requer disposição para o diálogo. Os maiores problemas que o país enfrenta hoje foram plantados ontem e seus cultivadores deixaram uma legião de descendentes e seguidores. O problema racial abrange, também, a Literatura brasileira. Um caso de racismo e preconceito recente, na Literatura, ocorreu em novembro de 2021. Uma professora foi afastada, em um colégio em Salvador, depois de ter indicado a seus alunos a obra Olhos D’água (2014) de Conceição Evaristo, livro que é objeto de diversos estudos acadêmicos. A escola alegou que os familiares se sentiram desconfortáveis com a obra “por acharem a linguagem inapropriada para a faixa etária“.

De acordo com o escritor e professor CUTI (2010) a literatura é um fazer humano, um poder, poder de convencimento, de alimentar o imaginário, fonte inspiradora do pensamento e ação. Quando é interpretada, avaliada, legitimada ou desqualificada, fica aberto o leque de sua recepção, leque este se se altera no decorrer do tempo em face de novas pesquisas.

Assim, a Literatura Afro-Brasileira, ao abordar temáticas antirracistas, mostra toda a sua importância e necessidade, pois muda o discurso da meritocracia e se torna porta-voz de denúncias contra a violência, a pobreza, as relações escravocratas (de um passado ainda presente), as imagens estereotipadas sobre a sensualidade dos negros, as piadas racistas, entre outras afrontas que silenciam e apagam a história dos afrodescendentes.

Voltando nosso olhar para mais perto, em Itaúna, vemos algo parecido com o apagamento do negro na Literatura local, por parte de historiadores elitistas, que, em raros momentos (ou quase nenhum), citaram, em seus livros, personalidades afrodescendentes.

O historiador itaunense João Dornas Filho (1902-1962), que era afrodescendente, foi quem mais dedicou páginas à população negra em suas obras. Esse excelente escritor que, aos poucos, vem tendo sua memória apagada na cidade (Não existe mais a Escola João Dornas Filho), fez parte do Movimento Modernista de 1922, por meio da revista denominada Leite Criôlo (1929), de significativa circulação em Minas Gerais, o que ampliou a visibilidade da Literatura Afro-Brasileira.

Em uma conversa intimista com alguns escritores e historiadores itaunenses, com o objetivo de identificar as escritoras itaunenses afrodescendentes, que publicaram um livro ou participaram de alguma antologia, deparamos com a grande dificuldade de acesso aos documentos históricos, pois o melhor acervo da cidade é particular, e não existe um horário de atendimento aos pesquisadores.

As pesquisas continuam, mas a princípio, encontramos alguns nomes de escritoras afrodescendentes. Uma delas é Vera Alice dos Santos, falecida em 2020. Ela participou da Semana da Arte, promovida pela Universidade de Itaúna, em setembro de 1981, obtendo o segundo lugar com o poema “Isso sou eu”. Foi uma voz preta no meio de uma elite branca e universitária. No início dos anos de 1990, fez parte da Antologia dos Poetas Itaunenses. Marcou presença nas Coletâneas organizadas pelo Grupo de Escritores Itaunenses: Essências (2014), Olhares Múltiplos (2016) e Hipérboles (2017). Durante a minha gestão na presidência da Academia Itaunense de Letras, Vera Alice dos Santos foi convidada a ser membro da entidade e ocupou a cadeira de Guaracy Nogueira de Castro.

Toni Ramos Gonçalves e Vera Alice dos Santos no lançamento do livro Hipérboles

Outra escritora é Zanilda Gonçalves, que publicou sua dissertação Nos Bastidores do Teatro Infantil (2002). A professora Ana Alves Vieira dos Reis, uma das pioneiras em Itaúna na educação, também foi citada por suas publicações científicas. Atualmente, a poeta Beth Sousa, frequente nas coletâneas organizadas pelo Grupo de Escritores Itaunenses, é a voz afrodescendente feminina com mais destaque na Literatura itaunense.

Apesar dos baixos os índices de leitura do Brasil muita gente vem produzindo literatura, principalmente a Afro-Brasileira, tendo seus escritores premiados e campeões de venda, como o livro Torto Arado (2018), de Itamar Vieira Júnior, vencedor de vários prêmios literários. Vale citar algumas escritoras que vem se destacando no cenário literário nacional. São elas: Djamila Ribeiro, Eliana Alves Ribeiro, Mel Adún, Cidinha da Silva, entre muitas outras.

A expressão literária é vital, independente qual nome ela venha ser classificada, pois a cultura não tem cor, e cumpre sua principal função, que é ser arma de resistência.

Evento com a participação da Academia Itaunense de Letras, em que Toni Ramos Gonçalves e Vera Alice dos Santos participam de uma dança.

* Toni Ramos Gonçalves é escritor e ex-presidente da Academia Itaunense de Letras. Graduando em Jornalismo e História.

NOTA: Pesquisas recentes indicam que Nísia Floresta deve ter sido a primeira a lançar um romance abolicionista no país, com a publicação em folhetim, entre 14/03 e 30/06 de 1855, n’O Brasil Ilustrado, de seu romance Páginas de uma vida obscura, a respeito da existência dramática de Domingos, escravo congolês trazido ainda na infância para o Brasil.

LIMA BARRETO E O FEMINICÍDIO

PRECURSORES DA LITERATURA AFRO-BRASILEIRA

PARTE 1

Toni Ramos Gonçalves*

Manifestante na Avenida Paulista em 2022 /Foto Roosevelt Cássio

Na semana do Dia Internacional da Mulher, é alarmante a notícia que a taxa de feminicídio no Brasil em 2022 foi uma das mais elevadas da história brasileira.

Criada em 2015, a Lei do Feminicídio não fez a violência doméstica e familiar recuar. O convívio por mais tempo em casa durante a Pandemia da Covid-19, o incentivo às armas de fogo, acrescido dos discursos de ódio na sociedade brasileira, contribuíram para agravar ainda mais os índices desta violência.

O feminicídio é um crime hediondo, com pena de 12 a 30 anos de reclusão.Segundo dados do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, a taxa de casos no Brasil no primeiro semestre de 2022 foi de 699 assassinatos de mulheres. O mês de janeiro de 2023 já se tornou o mais violento para mulheres dos últimos seis anos, em alguns estados brasileiros.

Isso não acontece somente agora e sim ao longo da história brasileira. O escritor Lima Barreto (1881-1922), afrodescendente, é considerado o porta-voz dos excluídos, um retratista dos subúrbios e um crítico feroz da Velha República. Foi um dos precursores ao usar a Literatura como um elemento de resistência à marginalização social e educacional.

Em países que vieram de uma história de colonialismo e escravidão, é necessário que a Literatura tenha papel de uma arma de luta. Ela pode influenciar comportamentos humanos, no sentido de respeito e indiferença às pessoas e, até mesmo, de violação de seus direitos básicos.

No começo do século XX, Lima Barreto usou suas crônicas para críticas sociais, denunciando a violência doméstica, o feminicídio, e outros aspectos da sociedade brasileira, os quais persistem até hoje. Sua crônica Não as matem, escrita há mais de um século, em 1915, faz sua voz ecoar mais forte, pelo tempo, no combate ao racismo, ao machismo estrutural e outras inúmeras atrocidades contra a mulheres. Mas não basta apenas punir os criminosos, os agressores, mas reeducar a sociedade brasileira para o bom convívio e respeito entre os indivíduos. Para terminar trago o apelo de Lima Barreto ao fim de sua crônica:

Deixem as mulheres amar à vontade.

Não as matem, pelo amor de Deus! (BARRETO,1915)

Lima Barreto em sua última passagem pelo hospital em 1919

NÃO AS MATEM

Lima Barreto

Esse rapaz que, em Deodoro, quis matar a ex-noiva e suicidou-se em seguida, é um sintoma da revivescência de um sentimento que parecia ter morrido no coração dos homens: o domínio, quand même, sobre a mulher.

O caso não é único. Não há muito tempo, em dias de carnaval, um rapaz atirou sobre a ex-noiva, lá pelas bandas do Estácio, matando-se em seguida. A moça com a bala na espinha, veio morrer, dias após, entre sofrimentos atrozes.

Um outro, também, pelo carnaval, ali pelas bandas do ex-futuro Hotel Monumental, que substituiu com montões de pedras o vetusto Convento da Ajuda, alvejou a sua ex-noiva e matou-a.

Todos esses senhores parece que não sabem o que é a vontade dos outros.

Eles se julgam com o direito de impor o seu amor ou o seu desejo a quem não os quer. Não sei se se julgam muito diferentes dos ladrões à mão armada; mas o certo é que estes não nos arrebatam senão o dinheiro, enquanto esses tais noivos assassinos querem tudo que é de mais sagrado em outro ente, de pistola na mão.

O ladrão ainda nos deixa com vida, se lhe passamos o dinheiro; os tais passionais, porém, nem estabelecem a alternativa: a bolsa ou a vida. Eles, não; matam logo.

Nós já tínhamos os maridos que matavam as esposas adúlteras; agora temos os noivos que matam as ex-noivas.

De resto, semelhantes cidadãos são idiotas. É de supor que, quem quer casar, deseje que a sua futura mulher venha para o tálamo conjugal com a máxima liberdade, com a melhor boa-vontade, sem coação de espécie alguma, com ardor até, com ânsia e grandes desejos; como e então que se castigam as moças que confessam não sentir mais pelos namorados amor ou coisa equivalente?

Todas as considerações que se possam fazer, tendentes a convencer os homens de que eles não têm sobre as mulheres domínio outro que não aquele que venha da afeição, não devem ser desprezadas.

Esse obsoleto domínio à valentona, do homem sobre a mulher, é coisa tão horrorosa, que enche de indignação.

O esquecimento de que elas são, como todos nós, sujeitas, a influências várias que fazem flutuar as suas inclinações, as suas amizades, os seus gostos, os seus amores, é coisa tão estúpida, que, só entre selvagens deve ter existido.

Todos os experimentadores e observadores dos fatos morais têm mostrado a inanidade de generalizar a eternidade do amor.

Pode existir, existe, mas, excepcionalmente; e exigi-la nas leis ou a cano de revólver, é um absurdo tão grande como querer impedir que o sol varie a hora do seu nascimento.

Deixem as mulheres amar à vontade.

Não as matem, pelo amor de Deus!

Vida urbana, 27-l-1915

Domínio Público

* Toni Ramos Gonçalves é escritor e ex-presidente da Academia Itaunense de Letras.

Graduando em Jornalismo e História.

SOB A LUZ DO AMANHÃ

Apresentação do livro Sob a luz do amanhã, mais uma publicação do Projeto 1M/1C. É minha primeira inserção no gênero Sci-fi (escrevi um conto distópico: Dias Passados) e mais uma vez satisfeito com a experiência. Os participantes são de todo território nacional e mais uma autora de Portugal.

PREFÁCIO DE ISADORA URBANO*

Carros voadores, viagens no tempo, guerras interplanetárias e distopias irresistíveis: é mais que certo que a ficção científica conquistou seu espaço (com o perdão do trocadilho) e impregnou a cultura literária e cinematográfica das últimas décadas até as entranhas. Hoje, é praticamente impossível passar ao largo do seu impacto, que não apenas reaparece constantemente nos milhares de produtos da assim chamada “cultura de massa” mas que também configurou – talvez irremediavelmente – parte do imaginário que constitui o conjunto de ideias que fazemos, por exemplo, da tecnologia, do universo e do futuro.

A verdade é que a ficção científica se tornou tão relevante que ganhou espaço até mesmo dentro das universidades e do cinema “cult” — inclusive, com títulos inesquecíveis como os aclamados Brilho eterno de uma mente sem lembranças (2004) e Ela (2013) —, além de se fazer presente em quadrinhos, videogames, blockbusters e livros, é claro, como este que você agora tem em mãos.

Contudo, é importante lembrar que embora a expressão tenha ganhado força e popularidade, a definição de “ficção científica” está longe de se ver resolvida. Aliás, é precisamente sobre isso que Adam Roberts se propõe a discutir no primeiro capítulo do seu célebre A verdadeira história da ficção científica (Seoman, 2018), apresentando três definições diferentes para o gênero, e mencionando mais algumas de passagem.

Em vista dessa pluralidade de caminhos, destaco aqui, com palavras minhas mas ideias alheias, algumas das principais linhas com que poderíamos começar a refletir sobre o assunto. Assim (sem nenhuma intenção de colocar a palavra final sobre o tema), podemos considerar a ficção científica como:

(a) um gênero literário com convenções específicas, como propõem Darko Suvin e Damien Broderick;

(b)  uma “estratégia de leitura”, na esteira de Samuel Delany; e

(c) aquilo que se publica como ficção científica, como sugere Norman Spinrad.

Apesar de essas propostas terem alguns pontos muito fortes (e outros mais duvidosos…), é válido lembrar que, se por um lado elas nem sempre coincidem, tampouco estão em franco antagonismo. Afinal, o ideal de um “purismo” literário não passa de uma tentativa de compreensão e categorização que não encontra correspondência exata nos textos e obras concretas. Ou seja: um gênero puro, uma ficção científica “pura”, não passa de uma abstração. Na prática, lidamos com uma disputa de discursos, mais ou menos consciente, a favor ou contra a classificação de um objeto em um ou outro gênero. Um exemplo conhecido é o de Margaret Atwood, que prefere o termo ficção especulativa (e não “científica”) para falar de seus romances — mas não vamos entrar no mérito da questão.

Fato é que colocar limites precisos para qualquer gênero literário — seja ele de fantasia, policial, suspense, terror, realismo, e assim por diante —, é uma tarefa que beira o impossível, justamente porque não podemos nos livrar da contradição entre o caráter ideal das classificações que definem os gêneros literários e a realidade “transgressora” dos produtos de mídia, que têm o costume maroto de escorregar para fora do molde a cada vez que um novo molde é proposto.

Mas, além dessa dificuldade intrínseca à tarefa classificatória, não podemos perder de vista a existência de uma disputa ideológica que atravessa a discussão, uma vez que muitos consideram, ainda que equivocadamente, a ficção científica como um gênero alienado e menor. Nesse sentido, apesar de estar arraigado na cultura ocidental, o gênero ainda reivindica legitimidade e reconhecimento. Afinal de contas, se engana quem pensa que, por estar frequentemente ligada a um mundo imaginativo cheio de engenhocas e parafernálias futuristas, a ficção científica não se inquieta com as questões sociais, culturais e políticas do mundo empírico.

Na verdade, os exemplos são incontáveis, desde as incipientes preocupações de H. G. Wells com a fragilidade humana frente ao desconhecido — passando pelos receios distópicos de Huxley, Bradbury e Orwell —, até chegar às inquietações feministas de Ursula K. Le Guin e Joanna Russ e à literatura engajada de Octavia E. Butler. E também na televisão: afinal, o sucesso que séries recentes como Westworld, Dark, The Boys e (por que não?) O conto da aia conheceram — sem desmerecer os esforços na produção do figurino, efeitos especiais, direção de cena, atuação, etc. — sem dúvida também se deve ao alto potencial crítico que todas elas apresentam. E não só, já que até os queridinhos do cinema sci-fi,como Star Wars e Jurassic Park, também explicitam conflitos políticos e éticos com os quais ainda teremos que nos haver, como a bioética envolvida no uso do desenvolvimento científico e o confronto aos poderes fascistas em ascensão.

Na coletânea que vem a seguir, encontraremos reflexos de como diferentes mentes percebem o mundo, cada uma com suas questões singulares e suas próprias pautas. Não deixam de estar presentes a política e a sociedade, mas também as relações entre pais e filhos, a vida – ou “inteligência” – artificial, o incontornável fardo do corpo humano e as prospecções (mais ou menos otimistas) sobre o futuro. E é assim, em meio a tantas questões, necessárias à busca por soluções e por respostas, que cada autor dos textos desta antologia também nos comunica um tanto de si, assim como das suas experiências, perguntas e interpretações sobre o mundo que compartilhamos. Vamos, então, ouvir o que eles têm a dizer.

*Isadora Urbano formada em Letras pela UFMG, onde atualmente faz o mestrado na área de Teoria da Literatura e Literatura Comparada. Sua pesquisa inclui temas como contos de fadas, feminismo e psicanálise.

Foto: Paloma (Divulgação)

Almir Zarfeg mistura ficção e realidade no seu romance de estreia: “Estação 35”

Por Edelvânio Pinheiro*

Por causa da pandemia do novo coronavírus, o poeta e jornalista Almir Zarfeg resolveu antecipar a publicação do seu primeiro romance. Trata-se de “Estação 35”, que vem a público com o selo da Lura Editorial e já pode ser adquirido por R$ 34,90 no site da editora. (O livro pode ser encomendado diretamente ao autor e com direito a autógrafo.)

Ao estrear na narrativa longa em 2021, Zarfeg mata dois coelhos com uma cajadada: celebra os 30 anos de sua trajetória literária, iniciada com o livro de poemas “Água Preta” de 1991, e ainda por cima homenageia a estrada de ferro Bahia/Minas, que durante 85 anos transportou os moradores e o progresso pelas regiões do extremo sul baiano e nordeste mineiro.

A “Baiminas” – como é lembrada pelos saudosistas – permaneceu em atividade até 1966, quando foi desativada pelo presidente-general Castelo Branco. Outras tantas estradas de ferro foram desativadas no país durante o regime militar. O ano de 2021 marca, portanto, os 55 anos da desativação da saudosa Maria Fumaça e os 140 anos da inauguração dela ainda no 2º Império.

Mas é preciso enfatizar que estamos diante de uma narrativa leve ou “de aventura”, como aparece no subtítulo da obra, tendo como pano de fundo os 578 km de trilhos e a pandemia do coronavírus. Isso nos diz muito sobre o texto zarfeguiano:

Em primeiro lugar, ele mistura ficção com realidade, partindo do presente para o passado e não o contrário. Logo, não se trata de um romance histórico, como algumas pessoas podem pensar à primeira leitura. Na verdade, presente e passado se misturam para contar a saga da locomotiva que, durante mais de oito décadas, ligou o extremo sul da Bahia (Caravelas) ao médio Jequitinhonha (Araçuaí), beneficiando localidades que se transformariam em municípios relevantes do Vale do Mucuri, como Nanuque, Carlos Chagas e Teófilo Otoni. Finalmente, sertão e mar haviam se encontrado – como sonhara Teófilo Otoni, o empreendedor visionário. 

Em segundo lugar, a intenção zarfeguiana é mesmo homenagear a “velha e boa” estrada de ferro que, passados tantos anos após o encerramento das suas atividades, segue inspirando artistas – com seus poemas e canções; bem como estudiosos – com suas monografias e manifestos. No fundo, mesmo quem não vivenciou os tempos áureos da Maria Fumaça sente saudade dela.

Através de uma linguagem simples e de uma narrativa ágil, “Estação 35” nos conduz ao vaivém do Trem do Adeus, misturando presente e passado, fotografando emoções e imortalizando saudades. Assim acompanhamos as peripécias da Operação Abrolhos que, com a desculpa de tentar localizar um chinês de máscara, revisita estação por estação e incendeia a trama. E está dada a largada providencial.

Se Zarfeg pretendia nos emocionar com um livro leve e divertido, marcado pela aventura, pelo suspense e pela ironia, conseguiu seu intento. E nós, seus leitores, conseguimos matar a saudade de uma época marcante com seus personagens e conquistas. Seus equívocos colossais também. Conseguimos, enfim, nos divertir viajando no trem da história. Ou seria no trem da verossimilhança?

*Edelvânio Pinheiro é jornalista, formado em letras Vernáculas e pós-graduação em Ciências Políticas.

Foto: Divulgação

De Zé a Cauby Peixoto *

Maria Lúcia Mendes

Foto: Toni Ramos Gonçalves e Maria Lúcia Mendes -25 anos de amizade.

Se o que conto é verdade? Que é isto, companheiro! Nessa altura da vida, com tantos janeiros na cacunda, haveria eu de mentir? Conto e bem contado. Sem rodeios, sem enfeite, por modo de que me responda: acaso a vida tem enfeite? Nenhum. Desde que a gente nasce até a hora derradeira é cacetada. Para uns, o viver é mais manso. É o caso – uns nascem pra ser cavalo, outros pra cavaleiro. Se acontece de dar uma aragem é coisa de nada, passageira, a tal felicidade. Mas segura aqui a ponta da meada, que já desenrolo o novelo. Lá está ela, mão escorando o queixo, e a minha espera. Toda semana é sagrado, venho visitá-la, trazendo-lhe o que é de seu agrado: um pacotinho de doces. Ção foi doceira das boas – Minha patroa que o diga! De marmelada a pudins, dava um baile nas casas onde ganhava o sustento como doméstica. Além do tanque e ferro de brasa, eram horas a fio mexendo tacho de cobre, goiabada cheirando longe, Ção… Conceição. De menina, era o roçado. Cinco irmãos, três machos, ela e a irmã na enxada e foice, fora a lida da casa. A mãe morrera de parto, com a filharada choramingando, sem entender a partida. Ficaram assim, os cinco miúdos e o pai, amontoados, numa casa de pau a pique, plantada entremeio a umas baitas de árvores e um riachinho cantadô. O pai, sisudo e de poucas falas, logo pôs pra correr os que pediram pra adotar as crianças: “Não e não. Filho é gato, que se põe num saco, e manda longe?” Duas meninas e três machos, ali, na dureza, no sim senhor, não senhor, que por dê cá aquela palha, o maludo trancava a cara e não poupava sopapos nem vara de marmelo. Mal o sol piscava os olhos, o dito cujo tossia atiçando suas crias. Café de rapadura com mandioca frita, enxada nas costas, cada qual com seu empreito, pedaço de chão medido e conferido de tardinha. Coitado do infeliz que deixasse matinho qualquer em riba do chão. Um deles, o irmão mais velho, ganhara do padrinho uma viola e, à noite, mesmo arreado de canseira, espaventava o paradeiro, arranhando as cordas, com voz chorosa, Ção era quem mais gostava. Assentada ali, agarradinha, cantarolando com ele:

“Sertaneja se eu pudesse

Se papai do céu me desse

Um espaço pra voar…”

Que boniteza, meu Deus! Àquela hora, sua alma parecia coisa que voava, sem rumo, leve, que nem passarinho. Outra hora, era o contrário; pegava-lhe um nó no peito, que nem o clarão da lua desatava. Enquanto isso, o pai, mascando fumo, olhava enviesado para as filhas, sempre no mesmo rompante: “segura a honra, cuidado com a honra! Homem é bicho de se matar com pedra; comeu que seja, lambe os beiços e cai fora, arrotando vantagem”. Conceição, encabulada, matutava: Jesus Cristinho, o que vem a ser honra? A irmã, sonsa e dissimulada, calava. Foi assim até que um dia o irmão do meio chamou Ção, segredando-lhe baixinho: “É o troço entremeio as pernas, fica lá bem escondido” – Falou, passando a língua nos beiços. Assustada, a mocinha apalpou e sentiu. Ah! Então era isso… Deste dia em diante, olha o rapazinho levantando no tardão da noite, às escondidas, lisando, sorrateiro, as coxas da irmã. Boba é que Ção não era! Não pôs a boca no mundo, muito menos fez alarde. Armou-se de um porrete, escondeu-o no jeito, uniu sua cama com a da irmã. Um só ameaço de porretada, na moleira, pôs o desgramado pra correr. Uma noite – que essa hora sempre chega – todos acordaram a um só tempo com o velho num ronco feio, revirando-se nas palhas. Nem vela na mão deu tempo. Juntos, a boca seca, benzeram-se rezaram a Ave-Maria. Ção chorou desatado. Gostava do velho, seu pigarro, seu café de rapadura. Três dias, três noites, os cinco, com tirinhas pretas na roupa, voltam para o cabo da enxada, mataréu pedia foice. Tempos depois, de tanto calejar as mãos com pouco resultado, o irmão mais velho, já apontando pelos na cara, ajeitou os trecos numa carroça e, juntos, vida nova na cidade.

A venda do terreno rendeu-lhes, em troca, casinha ajeitada e cada qual seguiu seu rumo, serviço é que não faltava: as moças, emprego em casa de família, ordenadinho ralo, mas já servia; tinha o de comer e ainda sobrava para um vestido novo e sandálias de abotoar. Para os machos, a novidade das raparigas feiticeiras danadas de carinhosas, velhacas como elas só. Conceição virou moça bonita, todo mundo falava. Morena jambo, olhos claros, rasgados, e um par de pernas – que Deus me ampare – só formosura! A irmã, desbotada, caladinha, muito das rezadeiras, era da casa pra igreja e só. Tinha a tal beleza por dentro que, nesse mundão do diabo pouco acrescenta. Ção, Conceição, acha a cidade uma maravilha! A patroa é sovina, serviço pesado, mas o que é peso na mocidade? Nos bailes, rodopiava de roupa nova, uns moços atrevidos querendo dançar colado, hora em que ela se lembrava o que lhe contara o safado do irmão do meio. Moça virgem é o que era, sim senhor! Por esse tempo, num parque com roda-gigante, conheceu Zé, o Izé, moço de fino trato que lia e escrevia com letra boa também, olhou, olharam-se. E foi na roda-gigante, bem no alto, que riram, riram muito quando ouviram Cauby Peixoto, a voz bonita saindo do alto-falante.

“Conceição, eu me lembro muito bem

Vivias no morro a sonhar

Com coisas que o morro não tem”

Foi então que do namoro ao casamento andou rápido. Vestido branquinho, buquê de manacá, os dois de automóvel – era a primeira vez -, tudo um sonho, Zé impertigado, casinha nova, mulher caprichosa, tudo nos trinques, flor no cabelo, banho tomado pra esperar o marido. Ção empinava a barriga, Zé todo prosa, com pouco seria pai. E foi. Quatro machos que nem ele, um por ano. Conceição alegre que nem passarinho em tempo de fruta no pé. Da vida na roça, do pai, lembranças enfumaçadas; do irmão do meio, certa mágoa, mas, com o tempo… O que é que o tempo não desbota, esmorece? Zé, bom chefe de família, fartura na mesa, eis senão quando recebe proposta: Trabalhar no Belo Horizonte, serviço de chefe, ganhame dobrado, mais conforto pra família, “brinco de ouro pras suas orelhas, minha nega” – falou pra Conceição. E partiu. A princípio tudo certo, fora a saudade doendo, noite afora, longe do marido. Mas e os sábados? Coração aprumadinho na janela, os filhos também. Era o trem apitar na curva, o gesto de mãos abanando na ânsia da chegada. Conceição bonitona, meninos sadios, vida resumindo-se nos sábados e domingos, com frango ensopado e doce de leite. Mas, companheiro, tudo na vida tem o “mas”. Com o tempo, Zé começou a ficar esquisito. Chegava caladão, sem paciência, queixando carestia, o que seria aquilo meu Deus do céu? Cadê o chamego? Agrados para os meninos? Ção caprichando na lida, na camisola perfumada, Zé virado pro canto: “to cansado, dor de cabeça”… Depois, vindas espaçadas, desculpas, até que sumiu de vez. Assim, sem mais nem menos, sem rastro nem poeira. Conceição em lágrimas, boatos fervendo, morrera matado? “Mãe, cadê o pai?” “Cadê ele, mãe?” Conceição, sozinha. E os irmãos? A irmã, a tal desbotada, caladinha, fisgou viúvo rico, se mandou pra Goiás. Os machos, a essa altura, cada qual pegou seu rumo; o da violinha morreu ofendido de cobra; já o caçula, um raio torrou sem dó. E agora? Sozinha… O irmão do meio soube do sumiço do cunhado e apareceu serelepe, prestativo. “Vamos, vamos, você e os meninos, crio todos no bem bom, na macieza”. Ção, Conceição, mandou-o para o inferno, arregaçou as mangas, foi à luta. Pegou roupa pra lavar, fez sabão, catou ferro, fritou tripas de galinha ganhada de esmola no abatedouro. Viu os filhos comerem com boa boca feijão puro e um ovo partido em quatro pedaços. Os meninos… caixa de engraxar debaixo do braço, caixote nos ombros, olha a manga, quem quer comprar abacate, almeirão, cebolinha? Quem ? Meu Deus, cadê nosso homem? Cadê o Izé, meu Deus? E o Zé amoitado, longe do Belo Horizonte, nos braços de um rabicho cria de zona, medonha no chamego, corpo de dar inveja à Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot. O trem passando, o apito, o tempo abaixando areia no fundo do copo. Aos trancos e barrancos, filhos crescidos, abandono, coisa morta. Ção continuou a labuta, estimada nas casas por onde passava, tanque, fogão, ferro, tacho, varrer, lavar. Assim viu os meninos um a um se aprumando, enquanto ela, devagarinho foi se curvando, encrencou as juntas , aprumou-se em bengala. Sogra não é parente, esbravejou uma das noras, e as outras responderam: Amém. Izé? Fumaça… “O fumo vem, a chama passa”. Que fosse pro inferno, se é que lá já não estivesse. Decidida, quis viver no asilo, de onde me diz: “aqui é bom, tem sossego, alegria”. Hoje, companheiro, sei que ela vai fazer cara feia pra mim. Esqueci de trazer-lhe o pacotinho de doces.

*Conto finalista na FLIP LITERÁRIA DE PARATI/RJ 2014

Conto publicado no livro A sedução das palavras, em 2018, pela Editora Ramos.

Foto: Divulgação Editora Ramos

A CACHAÇA FILOSÓFICA

Almir Zarfeg

Foto: Arquivo do autor

Todo mundo que frequentava o Bar do Bigode era testemunha daquele acontecimento: depois da segunda dose, o Freitas virava outra pessoa, ficava fora de si e discursava qual candidato às vésperas das eleições.

– Eu sou o bêbado da vida e, doravante, o modelo para uma nova geração de alcoólatras pós-Bill Wilson.

Assim o Freitas articulava o advento de uma nova classe social, totalmente movida a álcool e da qual, evidentemente, ele seria o fundador e chefe supremo.

Como era um cidadão comum que mal sabia rabiscar o próprio jamegão, cabe aqui uma dúvida: donde vinha aquela sabedoria exibida por ele? Teria feito algum pacto com o demo em troca daquelas ideias? Ou a inspiração para aqueles repentes geniais tinha outro endereço: a boa e velha cachaça brasileira?

O Freitas ia mais longe ainda:

– Eis que um novo tempo há de chegar para nós, ocasião em que o nosso movimento assumirá proporções gigantescas em todos os níveis. Quando, finalmente, seremos uma classe coesa e inexpugnável…

No entanto, passado aquele acesso intelectualista de grandeza (vamos dizer assim à falta de uma expressão melhor), o que se verificava depois de uma boa noite de sono, o Freitas voltava a si, a seu normal e – incrível – não se lembrava de nada do que havia aprontado. Só uma baita ressaca denunciava o porre da véspera:

– Ai minha cabeça… – E preocupado: – O que está acontecendo comigo, meu Deus? Tô ficando doido de vez?

Como se vê, o Freitas tinha motivos de sobra para estar muito preocupado ultimamente. Por isso, devido aos últimos reveses, alguma providência teria de ser tomada o quanto antes, sob pena de ele ser tomado por louco ou coisa parecida.

– Muito simples, meu bem.

A ideia de Maria, sua mulher, era elementar: ele devia parar de beber – e já. Em vez de tomar aquela “cachaça filosófica”, como o fenômeno já era conhecido na redondeza, ele precisava voltar para casa mais cedo. Agindo assim, mataria dois coelhos com uma cajadada só: evitava o vexame daquela situação incômoda e, de quebra, economizava uns tostões pro leite do Freitas Júnior, caçula que tinha a cara do pai.

Mas o Freitas se opôs terminantemente:

 – Minha birita é sagrada, ora essa!

 – Desse jeito, home de Deus, ocê vai ser tido e havido como lôco varrido. Pense bem.

– Que lôco, que nada, Maria. Não é d’agora que eu bebo. Bem antes da gente se casar, eu já tomava as minhas biritas lá no Bigode, da abrideira à saideira, se alembra? ‘Eu bebo sim, estou bebendo, tem gente que não bebe e está morrendo…’” – O Freitas já repetia o refrão da famosíssima canção que fazia apologia do álcool e derivados.

Portanto, estava mais que decidido: não iria abrir mão do único prazer que a vida lhe proporcionava, ao lado da mulher e dos sete filhos, é claro. Ia beber sim, mais comedidamente, não como daquela vez quando chegou ao cúmulo de virar um quarto de litro de Caninha 51 de uma golada! Tomaria só algumas doses e sem exagero. “Homeopaticamente”, como o próprio Bigode havia sugerido, falando difícil, na esperança de não perder o cliente tradicional.

Mas – diabo! – o fenômeno voltava e agora com mais frequência e eloquência. Era a coisa mais previsível do mundo: depois da segunda dose, a metamorfose se apoderava do Freitas mais implacável ainda e com uma plataforma de fazer inveja aos maiores demagogos do horário eleitoral. Era aritmético: 1, 2 e… pimba!

– Seremos os bêbados mais felizes do Brasil e com direito à melhor pinga do mundo. Não a água-que-passarinho-não-bebe que está mais para álcool hidratado, vendido nas drogarias e demais casas do ramo, que ataca facilmente o fígado dos nossos amigos, causando hepatite e toda sorte de cirroses. Aliás, estão servindo por aí metanol no lugar da pura caninha da roça. É ou não é um absurdo, companheiros?

Os amantes da moça-branca, já formando um círculo em volta da mesa a que o nosso ébrio nota dez costumava se sentar, eram todos ouvidos.

O Freitas, agora, num tom professoral:

– Pois bem, companheiros, ninguém é feliz, sabem por quê? Porque está tudo errado, a começar pela qualidade da aguardente de hoje. Depois há o desrespeito com a nossa classe. A bem da verdade, será mesmo uma classe? Em sendo, quais os nossos direitos? Quem nos representa lá em Brasília? Quem luta por nós?

No geral a turma da branquinha apoiava explicitamente aqueles discursos, até porque já estava pra lá de Bagdá, ou seja, tinha excedido igualmente na dose. Depois, erudição à parte, aquilo era um belo espetáculo de se ver ali no botequim. E todos aplaudiam as performances do Freitas, ainda que ignorando trechos importantes daquele programa revolucionário e, ao mesmo tempo, vibrando com tudo que havia de patético naqueles improvisos etílicos. Como que possuído pelo espírito da água de cana, morto de bêbado, o Freitas, inexplicavelmente, atraía cada vez mais com sua retórica afiada e voz firme, enquanto a plateia aplaudia, ria e se divertia à vontade. Sóbrio, do outro lado do balcão, o Bigode incentivava o show, de olho na gorda féria que, diga-se de passagem, se transformava num negoção.

Mas sucedeu que, numa sexta-feira em que o sujeito já se levanta da cama com o convite à bebedeira impresso no canto do galo, o Freitas se dirigiu ao boteco, como de costume, decidido a saciar o desejo quase incontrolável de experimentar uma temperada à base de jenipapo, que o Bigode sabia preparar como ninguém. O Freitas não era macho para resistir a tamanha tentação…

E metia a ronca nos políticos do Brasil, citando-os nominalmente, desde os vereadores dali, até os deputados mais desconhecidos de Brasília: todos uns corruptos, uns filhos da mãe, uns inimigos figadais que, uma vez eleitos, traíam a confiança de seus eleitores. Dizia que iria escrever um manifesto político intitulado “O presidente et caterva”, em que denunciaria todos os políticos da República Federativa do Brasil, um por um, como os verdadeiros inimigos do povo brasileiro, notadamente do povo cachaceiro.

Superexcitado, o embriagado número l da pátria atinge o clímax do discurso. Agora ele se prepara para soltar a frase revolucionária, causa e razão de sua campanha vitoriosa que, sem dúvida, vai parar nos compêndios de História do Brasil…

– Bêbados de todo o Brasil, uni-vos!

Eis que, subitamente, entra no barzinho um polícia, desses que fazem pouco caso de tudo e de todos, desses que personificam a própria ordem e o progresso. Entra e, depois de bebericar uns dois dedos da Nega Fulô, de dedo em riste apontando o Freitas, dá início ao seguinte interrogatório:

– Que história é essa de revolução, seu Platão?

– Nem Platão nem Bill Wilson, simplesmente Freitas.

– Não tente me engabelar, seu revoltado, que sou a Lei e, em nome dela, preciso saber toda a verdade, compreende?

– Pois não, companheiro.

– Para com esta história de companheiro. O senhor pode ser tudo, filósofo, cachaceiro, o diabo! Agora, faça o favor, não me considere seu companheiro.

– Nada de filósofo, apenas revolucionário e, como tal, pretendo fazer muito pelos pinguços do país. A propósito, se me permite a intimidade, o companheiro parece apreciar uma boa birita…

– Hein?! Dispenso a intimidade. Exijo respeito, que sou autoridade.

– Então o companheiro é do tipo que só bebe socialmente…

– Já disse e repito: dispenso a intimidade. Além do mais, se bebo ou deixo de beber, o problema é só meu. E minha paciência tem limites… – O militar já ensaiava mentalmente uma ordem de prisão, quando o Freitas protestou, quase gritando, atraindo para si a atenção dos presentes.

– E a verdade, hein? Eu tenho a verdade – e voltando-se para o Bigode:

– Desce duas autênticas águas-bentas, companheiro.

Em seguida, passou a elogiar o destilado nacional como jamais alguém fizera, alçando-o à categoria da tequila mexicana e do cognac francês. Não satisfeito, passou a bombardear seu interlocutor com uma infinidade de argumentos do tipo “Você sabia?”.

– O caro companheiro sabia que o Brasil produz 1,3 bilhão de litros de cachaça por ano, gerando um negócio de 1 bilhão de reais?

– Não.

– Sabia que os mais de 33 mil alambiques espalhados por todo o país são responsáveis por 120 mil empregos diretos?

– Não.

– Sabia que, na cidade cearense de Maranguape, existe um museu dedicado exclusivamente à cachaça, no qual se encontra o maior tonel de que se tem notícia, com capacidade para 374 mil litros?

– Sinceramente, não sabia.

– Então, provavelmente, o companheiro desconhece também que a caipirinha de pinga foi eleita o drinque mais quente do século XX!

– ?

Foi assim que o Freitas conquistou seu aliado maior, o Engels para a causa da cachaça tupiniquim. O mesmo que há pouco se mostrara conservador e comedido, agora se revelava revolucionário e um ótimo copo. A prova de iniciação se deu ali mesmo: sob aplausos, tintins e vivas, o entusiasmado policial entornou – de um gole e sem fazer cara feia – uma dose tamanho família de Caninha 51, repetindo por três vezes o slogan “uma boa ideia”.

– À saúde de todos os cachaceiros do Brasil! – brindaram os presentes.

O resto da noite foi só alegria. Afinal, aquela conversão merecia mesmo um brinde à altura, regado com a melhor bebida destilada do mundo. A revolução ficou adiada para outra oportunidade, mas aquele 13 de setembro ficaria para a história como o Dia Nacional da Cachaça.

*Texto extraído de “A primeira vez de Z.” (2011)

Souvenirs

Toni Ramos Gonçalves

Alice está na cama, adormecida. Adora cochilar depois do almoço de domingo. Dorme de flanco, pernas flexionadas, anca saliente sob o lençol. Uma luminosidade opaca entra pelo janelão e divide o quarto ao meio, o claro e a sombra. Junto ao vidro, observo a chuva que cai intensamente sobre a cidade. Respiro fundo e penso novamente no envelope com as fotos que furtivamente escondi, entre vários papéis, na última gaveta da escrivaninha, bem ali ao lado, no escritório.

A desilusão chegou ontem à tarde por volta das dezesseis horas. Veio, mas não sem antes avisar. Pois bem me lembro da noite em que a conheci, naquela boate barulhenta e enfumaçada. Aquela mulher dançando sensualmente diante de mim, alegrando absurdamente meu coração. Era mais um perigo iminente. Ah! Se eu pudesse voltar no tempo, teria pagado o meu drinque, ido embora, evitando, assim, maiores despesas com o destino. Mas o meu coração apressado e algumas doses de uísque me levaram à pior besteira que fiz na minha vida cheia delas.

Passamos a viver juntos e agora olhe para mim. Trancado neste quarto, enquanto tudo se esvai. Olho em volta e as lembranças da nossa curta história parecem apressar o meu fim. Aqui, sobre a cabeceira, está aquela tarde quando compramos este abajur de cerâmica em uma lojinha minúscula, no Mercado Central. Os donos eram um simpático casal de ex-hippies. Era um dia como hoje. Chovia quando saímos com o embrulho nas mãos. Nos abraçamos. Os agasalhos traziam um calor agradável, quase humano. Estávamos há uma semana juntos e eu não podia mais viver sem ela.

Ali pendurada na parede está um dia em Búzios. Após a praia, almoçamos em um restaurante na Avenida Beira Mar, que pertencia a um velho pintor. Champanhe, frutos do mar, carinhos e beijos. Duas semanas juntos. Ela se impressionou com o quadro a óleo em exposição. Achei de certo mau gosto, mas ela insistiu, então o comprei. Faria qualquer coisa para agradá-la.

Ali no porta retratos, está a noite em que ela falou pela primeira vez que era minha. Foi durante um jantar esplêndido, no Clube Tropical. Durante um longo beijo, ela sussurrou as palavras em meu ouvido:

– Eu te amo!

Não me recordo de ter experimentado emoção semelhante. Naquela mesma noite, fizemos amor pela primeira e única vez. Foi tão intenso. Agora está tudo acabado. Ontem, às duas horas, recebi a ligação:

– Já terminei a investigação.

O detetive particular correspondia perfeitamente à imagem que eu fazia de um profissional do seu ramo. Um tipo sórdido, mas muito competente, enriquecendo-se esmiuçando os podres alheios, as fraquezas humanas.

Marcamos o encontro para o fim da tarde, em um bar discreto, na periferia. Ele abriu a tal pasta e mostrou-me toda a sujeira. Fotos, vídeos e relatórios. Tinha os horários dos encontros e os codinomes dos amantes.

– Lamento, mas sua mulher está lhe traindo. Por questão de ética, não posso dar os nomes verdadeiros dos amantes. Sinto muito! – disse o detetive, como se conhecesse alguma ética.

Então ele despejou todas aquelas fotos sobre a mesa com os encontros amorosos dela. A maioria dos amantes eu conhecia, não precisava dos nomes para alimentar ainda mais a minha fúria.

Exatamente hoje, pela manhã, ela disse que iria embora. Minha deusa do amor! Enlouqueci. Antes do almoço, coloquei no seu suco natural algumas pitadas de veneno comprado no mercado negro, o qual, segundo o rótulo, mata em até trinta minutos. Depois, me retirei, dizendo estar indisposto. Ela continuou em silêncio, como tem ficado nos últimos dias e se dirigiu para o quarto.

Meia hora depois a encontrei dormindo como um anjo, encoberto pela cabeleira loira, mantendo toda sua beleza. Meu coração se parte, mas só há um deserto de alternativas quando se está prestes a perder a mulher da sua vida. E o deserto é ainda mais desolador e hostil quando essa mulher se vai. Deito-me ao seu lado segurando sua mão fria e sem vida.

– Ah, Alice! Foste tão igual e tão diferente de todas as outras, todas jovens humildes do subúrbio, deslumbradas com a vida de luxo e conforto que eu lhes dava!

  Olho em volta e lá estão os objetos que me recordam de algumas delas. O relógio de mesa, comprado na feira artesanal, me lembra de Regina.  Pobre Regina! Tão linda em sua melancolia! Nunca consegui entender seu suicídio.

Já aquele quadro da feirinha da Avenida Afonso Pena em Belo Horizonte me recorda Raquel. A impetuosa e determinada Raquel! Parecia conter a intensidade de cada sílaba do seu nome. Poderíamos ter sido muito felizes, não fosse aquele terrível acidente ao tentar fugir de mim, naquela noite de chuva!

E também aquela escultura de um antiquário, comprado em São Paulo, me lembra de Sílvia. A doce e delicada Sílvia! Coitada! Preciso visitá-la mais uma vez na clínica psiquiátrica!

– Oh, minha sedutora Alice! Nem o diabo se atreveria abandonar um homem como eu. O lado racional dessa cabecinha de vento deveria ter-te advertido sobre o risco que você estava correndo, meu amor! Puxa, benzinho! Quantas vezes provei a dimensão do que sentia por você! As surras que lhe dei, por exemplo, eram uma forma de demonstrar o meu ciúme, coração! Se eu lembrava, a todo instante, cada centavo gasto contigo, era para mostrar-te o quanto a valorizava, meu docinho de coco! E por tudo que fiz por você, o meu alcoolismo, a minha impotência, os meus surtos e os quase quarenta anos de idade que nos separam, você devia ter superado… Eu não merecia mesmo… Você não podia ter feito isso comigo, minha querida!