Dias passados – Parte III

Toni Ramos Gonçalves

SINOPSE: Num futuro não muito distante, após a colonização de Marte, um homem busca se reencontrar num mundo devastado por um governo opressor. Em meio a um drama de incertezas e a fragilidade de sua natureza, luta contra sua própria consciência diante de um amor impossível.

PARTE III

No alto, a luz da manhã, uma brisa fria, as nuvens deslizando no céu azul esmaecido e nas colinas distantes.

Estamos de partida. Enquanto preparo minhas mochilas, Juninho agita os dedos. Sinais, sinais. Quer explicar algo. Não consigo entender. Está afoito, e eu só tenho pensamentos para Alice. Ela vai ser minha! Gesticulo para Juninho e oriento que me espere lá fora por um instante. Ele se afasta fazendo sinais, chateado. Parece que quer levar algo ou alguém conosco. Minha impaciência me impede de entendê-lo.

 Vou ao encontro de Alice, minha amada, oferecer-lhe o meu amor marginal. Não posso impedir-me de amá-la se não tenho nada para amar. Eu não sou um ser de exceção, sou um homem, força e fraqueza, previsão e imprudência, sonho e loucura. Os deuses brincam comigo. Permaneço algum tempo junto à porta, parado. Entro no quarto onde ela prepara sua mochila, entontecido e trêmulo. Ela se levanta e me fita sem espanto.

– Eu preciso dizer algo para você. – falo num sussurro.

Alice não responde, olha-me em silêncio. Pertence-me, ninguém vai arrebatá-la de mim nem mesmo meu irmão.

– Querida! Eu te amo!

Ela permanece silenciosa, baixa os olhos, submissa. Não se oferece, tem dignidade e pudor.

– Podemos passar uns dias no chalé… Lá parece seguro. O Juninho vai gostar.

Abro os braços, enlaço-a, aperto-a de encontro a mim, abraço-a com fúria, com desespero, busco seu rosto, a boca, mas antes de alcançar-lhe os lábios, nos assustamos com o barulho de helicópteros sobrevoando o abrigo. Afasto-me dela e pela janela vejo duas aeronaves sobrevoando a região em círculos.

– São aeronaves da BIFROST. – digo para Alice.

– Onde está o Juninho?

– Está lá fora… Acho melhor sairmos daqui enquanto é tempo. 

Pegamos nossas mochilas e saímos do abrigo. Mas não encontramos o menino do lado de fora. Circulamos a casa. Alice se desespera e inutilmente chama por seu nome.

– Fique aqui para o caso de ele voltar. Não deve ter ido longe. 

Tento localizá-lo buscando algum rastro no meio do mato. Preciso manter a calma, me concentrar. Verifico as trilhas. O barulho dos helicópteros me incomoda e preocupa. Corro sem direção por alguns minutos até a uma parte alta que amplia minha visão sobre o terreno. Uma movimentação numa trilha logo abaixo me chama a atenção. Vejo Juninho no encalço de um cão de médio porte. Percebo que a trilha vai na direção da estrada. Ao longe, avisto um comboio de carros SUV levantando poeira. Terror! Deslizo pelo barranco, corro desenfreado, o capim cortando meu rosto. Preciso chegar ao menino a tempo. Tropeço, caio, arrasto-me, me levanto, uso todas as minhas forças. Então, eu ouço um estouro, o ganido, a freada brusca na terra. 

Chego à estrada desorientado. O comboio está parado.

– O menino?… Onde está o menino?… Juninho?… – olho em torno, vejo os soldados me encarando.

Um helicóptero aterrissa a uns duzentos metros na estrada levantando poeira. Um homem desembarca dele e vem correndo na minha direção.

 Lanço-me para frente do comboio. Lá está ele, o meu menino, Juninho! Estendido no chão, o corpo mole e informe, os olhos semicerrados fixados num ponto além, as pálpebras azuladas e da boquinha escorrendo um filete de sangue! Tomo-o nos braços, aperto-o contra mim, o seu flácido corpinho junto a meu peito, Juninho e eu, vigor e desfalecimento, uma vida que se esvai.

***

Estou indo embora, não sei para onde, não tenho destino.

Eu tenho saudade dos dias passados, da confiança, do abandono, da inocência. Você nunca sabe o que o amanhã pode trazer.

As terras correm, o horizonte é uma linha sinuosa, a distância é imutável, quilômetros. Guindastes imensos trabalham na construção do muro gigantesco que irá proteger a cidade privatizada. Dois seguranças me conduzem por um corredor extenso no Complexo da BIFROST.

No fim do corredor, Jaime e Alice conversam. Ao me ver, ela se afasta e entra numa sala. Meu irmão vem ao meu encontro, diante de mim, aperta as mãos sobre meu ombro e diz num tom súplice:

– Você não teve culpa, meu irmão. Foi obra da fatalidade!

Não tenho coragem de olhar nos seus olhos e ouço cabisbaixo.

– Desde que voltei da Europa, – continuou – usei os satélites para encontrá-los. Queria ter chegado antes. Se não fosse aquela explosão e você tivesse ouvido minhas instruções antes da queda de Belo Horizonte… Também, se não fosse a chuva, teríamos encontrado vocês antes daquela tragédia. Se… Se… Se… São muitos os “ses”.

Jaime se afasta um pouco e engole o próprio choro.

Sofro com ele mais do que tudo. Já não sou o irmão de meu irmão, devo ir-me embora, ser esquecido. Eu não posso me perdoar nunca. Meu irmão haverá de acompanhar-me, estará comigo para todo o sempre, com esta mesma tristeza, este torpor e desalento. Faço um exame de consciência, reconheço minha culpa. Eu fiz a minha escolha. Não consigo olhar nos seus olhos e dizer-lhe: – Sou um covarde, sempre fui. Sim, eu lembro-me de ouvir as instruções pelo celular antes da explosão: “Saia daí imediatamente. Vá para o aeroporto. Vocês estão autorizados a viajar para um lugar seguro.” Mas eu não tinha outra mulher como Alice para amar. Ela veio, surgiu no meu caminho, encheu minha solidão. Afeiçoei-me a Juninho como se fosse meu filho. Fui vítima do desejo, do amor. Onde foi que eu me perdi? Quando foi que eu me desencontrei? Perdi o mundo de ontem; onde estará o de amanhã?

Jaime me olha desconsolado, desamparado.

– Sinto muito, irmão. Nós fizemos o melhor possível. – minto na minha tristeza e angústia.

Antes de sair pela porta, para sempre, busco ainda um último olhar de Alice na sala ao lado. Não vejo os seus olhos. Estão afogados em lágrimas. Não insisto em seu olhar. Não me pertence. Nada mais me pertence. Já não existo, sou uma sombra exilada. Não tenho alma. Meu coração morreu!

O CONTO FEZ PARTE DO PROJETO #EMUMMESUMCONTO, E EM BREVE VOU PUBLICAR OUTROS CONTOS DO UNIVERSO DE DIAS PASSADOS, (AGUARDEM!)

Toni Ramos Gonçalves nasceu em Itaúna-MG, no ano de 1971. Escritor contista e editor estreou na literatura com a novela O Último pôr do sol, em 1996. Autor de quatro livros foi vencedor de vários prêmios literários pelo Brasil. Participou de inúmeras coletâneas como coautor e organizador. Foi fundador e o primeiro presidente da Academia Itaunense de Letras, fundada em 2015. Recebeu o Troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa em 2019, em Belo Horizonte – MG.

6 comentários em “Dias passados – Parte III

  1. Estou sem palavras!
    Sempre que pensamos no amanhã, imaginamos um mundo feito só de tecnologias e esquecemos que sempre haverá sentimentos, sempre haverá o nosso lado humano, que busca o amor, que busca ser feliz.
    Seu conto me despertou muitas emoções, muita reflexão!
    Não esperava esse desfecho, mas acredito que foi necessário.
    Obrigada por suas palavras, adorei!!!
    Parabéns pelo conto!!!

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