Dias passados – Parte II

Toni Ramos Gonçalves

SINOPSE: Num futuro não muito distante, após a colonização de Marte, um homem busca se reencontrar num mundo devastado por um governo opressor. Em meio a um drama de incertezas e a fragilidade de sua natureza, luta contra sua própria consciência diante de um amor impossível.

Penso no dia em que cheguei a Belo Horizonte. Minha ignorância, inocência. Eu já amava Alice e não sabia. Era noite, e eu nunca os vira. Ela me recebeu à porta. Juninho ficou escondido atrás dela, desconfiado. Apresentei-me e, ao entrar no apartamento, cumprimentei o garoto com gestos da língua de sinais. Ele olhou para a mãe surpreso e riu sem emitir som. 

Nas semanas seguintes à minha chegada, mantive-me sempre à espreita no apartamento. Não queria ser importuno e muito menos imprudente. Alice tinha o talhe esbelto de uma princesa, os olhos meigos, o perfil nobre, toda pureza e, ao mesmo tempo, era sensual e envolvente. Era perfeita nas suas formas. Na maioria das vezes, eu a evitava e me entretinha nas tarefas e lazer de Juninho.

Lembro-me das horas de sossego e paz em que ficávamos os três na varanda ao ver o pôr do sol. Juninho era o meu companheiro, agarrava-se comigo, não me soltava, e eu também o estimava – não sei se com o mesmo sentimento de um pai – e evitava pensar que teria de deixá-lo em breve. Alice fazia-me perguntas, demonstrando crescente interesse por tudo o que me dizia respeito. Espantou-se porque vivia sozinho no Rio de Janeiro. Fez um esforço para imaginar minha solidão, olhou-me incrédula, compadecida.

– Jaime confia muito em você. – disse Alice contemplando um ponto longínquo.

O sol de maio, agonizante, dourava as faces dela e deitava pingos de luz em seus cabelos negros.

– Sempre fomos amigos. – respondi com uma voz quase inaudível. Jaime é mais do que irmão, é um amigo. Tivemos uma infância, adolescência e juventude em comum. O olhar paterno nos acompanha, a mão de nossa mãe nos abençoa. Quis o destino que tudo fosse preparado com requintes e sutilezas. Eu iria apaixonar-me pela mulher do meu irmão.

– Sempre gostou, não é? Ele diz que você é um irmão e tanto. São tão diferentes!

– Sim, mas parece que temos algo em comum.

– O quê?

Alice me olhou, e eu sustentei o seu olhar. Era impossível que ela não soubesse, não percebia, não sentia. Um arrepio percorreu-me o corpo, depois um ardor e uma onda gelada, um tremor, um calafrio.

Juninho chamou minha atenção, puxando minha camisa. Eu me recompus. Ele apontou na direção do céu que escurecia, e vimos vários pontos luminosos agrupados em uma longa fileira. Eram mais satélites da BIFROST, lançados na órbita da Terra. Em pouco tempo tudo estaria sobre sua vigilância.

***

A chuva cessou no meio da tarde, e a noite chegou mais fria do que nunca. Tive que acender uma fogueira, apesar de ser perigoso. Alguém podia estar à espreita, pronto para nos atacar e roubar. Nem todo mundo foi para as colônias ou cidades privatizadas, principalmente os criminosos, o que aumentou a violência nas estradas. 

Juninho adormeceu no meu colo, gesticulando sobre o cachorro que novamente rondava o abrigo. Ele é a alegria deste triste mundo. Eu o coloco sobre um trapo de colchão, numa distância segura do fogo, para que se aqueça. Alice está sentada do outro lado da fogueira, calada de um modo inexpressivo, quieta demais. A sua beleza me encanta e, quando seus olhos se voltam para mim, desvio o olhar.

Esparramo o mapa no chão e procuro uma rota segura. Não é aconselhável ficar muito tempo no mesmo lugar. Durante a tarde, vasculhei as casas de vilarejo abandonado e não encontrei nada útil. Minha sorte foi encontrar um chalé, cercado por eucaliptos, bem no topo de uma montanha e de difícil acesso. Lá dentro, encontrei o corpo de um homem idoso, no meio da sala, com a cabeça estourada e um revólver ao lado. Levei um tempo para me recuperar ao lembrar que aquele poderia ter sido meu destino. Pelo estado de decomposição, não havia falecido há muito tempo. Na cozinha, encontrei muitos enlatados; e num dos quartos, vários remédios. Havia também um escritório com inúmeros livros. Numa das paredes, um painel com vários recortes de jornais sobre a Pandemia da Sars-CoV-2, a Guerra Civil brasileira, a chegada a Marte e a criação das cidades privatizadas e colônias, todas elas interligadas ao nome da BIFROST Corporations. Sobre a mesa, uma foto de dois idosos, um homem e uma mulher que tinha no colo um cão, ainda filhote. Encontrei também uma agenda com inúmeras anotações. Guardei-a dentro da mochila sem saber o motivo.

– Quem está perdido? Nós ou o Jaime? – pergunta Alice rompendo o silêncio.

Finjo não ouvir e continuo a olhar o mapa.

– Por que não vamos a uma cidade privatizada e tentamos entrar em contato com ele na BIFROST?

Ergo os olhos do mapa, permito-me contemplar Alice.

– Você sabe que não podemos. Você lembra o que aconteceu e devemos seguir as instruções.

Então me levanto e sento-me ao seu lado. Ela começa a chorar. Abraço-a repousando sua cabeça no meu ombro.  Palavras não são mais ditas. O silêncio costuma ter um peso, uma torturante densidade.

***

Naquele dia ensolarado, por volta do meio-dia, ouvia as instruções de meu irmão pelo celular enquanto ruídos de sirenes, tiros e gritos vinham das ruas.

Alice segurava Juninho no colo, sentada no sofá diante da TV, o olhar aflito ao ver as imagens dos inúmeros protestos pelo País. Na noite anterior, o Governo Brasileiro havia aprovado o projeto da BIFROST Corporations para a construção das cidades privatizadas e colônias de trabalhadores para a mineração em Marte.

O que se sucedeu foi tudo muito rápido. Através do janelão da sala do apartamento vi surgir uma gigantesca coluna de fumaça no horizonte. Imediatamente pulei sobre Alice e Juninho com o intuito de protegê-los dos estilhaços do vidro que explodiu logo em seguida com a onda de choque.

Ficamos ali no chão por algum tempo, atordoados, a sala destruída, a poeira sufocando-nos. Ouviam-se inúmeros alarmes de carros disparados. Verifiquei se Alice e Juninho estavam feridos gravemente e constatei apenas alguns arranhões. O menino chorava assustado.

– Temos que sair daqui.  Pegue as mochilas de emergência. Rápido!

Eu planejara nossa fuga para situações como aquela. Fazia alguns dias que a tensão aumentara em todo o País. A rebelião vinha sabotando as áreas estratégicas do Governo e explodindo monumentos históricos. Na semana passada, implodiram o Cristo Redentor, num plano audacioso.

– Mas o que o Jaime disse? – perguntou Alice, quase gritando.

– Explico no caminho. Aqui não é mais seguro.

Minutos depois, descíamos pelas escadarias do prédio, em meio ao tumulto e atropelos dos outros moradores. Com muita dificuldade, saímos com o carro da garagem cantando os pneus, porém não conseguimos ir muito longe ao alcançar a rua. O trânsito estava congestionado, pessoas gritando umas contra as outras, policiais lançando bombas de gás lacrimogênio, tiros de efeito moral, buzinas, um caos total. Um veículo explodiu uns cem metros à nossa frente. Alice protegia Juninho como podia no banco traseiro.

– Meu Deus, tire a gente daqui! – gritava Alice em meio ao choro.

Desde 2022, o País enfrentava uma guerra civil. Pouco antes das eleições daquele ano, um golpe militar fechou o Congresso Nacional. Quando o candidato da oposição foi encontrado morto, várias rebeliões se desencadearam pelo País. Além da Pandemia da Sars-CoV-2, ocorreram várias mortes atribuídas ao Governo opressor. A Capital Mineira era um dos grandes focos da resistência naquelas três décadas de opressão.

Saímos do veículo e seguimos a pé. Pelas ruas, dezenas de carros abandonados, em chamas ou destruídos. De todos os lados, à distância, ouvimos tiros de armas de fogo e o ressoar abafado de pequenas explosões. Vez ou outra deparávamos com um corpo pelo caminho. Evitávamos qualquer confronto desnecessário, apesar de ter em punho minha pistola Glock. Escondemo-nos num beco, atrás de uma lixeira, quando um comboio de blindados militares e de tropas de soldados fortemente armados cruzou nosso caminho na direção ao centro. No céu, inúmeros drones de combate.

Ao sair da área urbana e alcançar a mata, nos sentimos mais seguros. Havia uma quantidade enorme de pessoas caminhando na mesma direção. Lembro-me de Alice pedir para ligar para Jaime, mas não encontramos nossos celulares. Depois, não conseguimos fazer contato, uma vez que ele se encontrava na Europa. A BIFROST, a pedido do Governo, limitou as comunicações fora das cidades privatizadas com o intuito de isolar a Rebelião e restringir seus ataques.

Por fim, pouco antes do anoitecer, do alto da Serra do Curral vimos desolados vários caças bombardearem a cidade. Ela ardia em chamas. Nosso mundo começara a ruir.

CONTINUA…

Toni Ramos Gonçalves nasceu em Itaúna-MG, no ano de 1971. Escritor contista e editor estreou na literatura com a novela O Último pôr do sol, em 1996. Autor de quatro livros foi vencedor de vários prêmios literários pelo Brasil. Participou de inúmeras coletâneas como coautor e organizador. Foi fundador e o primeiro presidente da Academia Itaunense de Letras, fundada em 2015. Recebeu o Troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa em 2019, em Belo Horizonte – MG.

9 comentários em “Dias passados – Parte II

  1. Estou completamente envolvida nesse universo assustador. Além disso, gosto muito do conflito interno do protagonista e o seu amor pela mulher do irmão, dá para sentir o desejo que ele sente por ela, e ao mesmo tempo a culpa. E devo dizer que Juninho é meu personagem favorito!

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  2. Cara, vou ter pesadelos. 2022 tá bem especulativo né?! Espero profundamente que sua previsão de futuro não passe de ficção rsrs. Que texto fenomenal. Arrasou. Muito curiosa para ler o final.

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  3. Adorei!
    Você escreve com muita verdade e, apesar desse cenário devastador, senti calma na sua escrita, leria por horas sem ver o tempo passar.
    Aguardando ansiosa pelo desfecho e torcendo muito pelos protagonistas.

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