Dias passados – Parte I

Sinopse: Num futuro não muito distante, após a colonização de Marte, um homem busca se reencontrar num mundo devastado por um governo opressor. Em meio a um drama de incertezas e a fragilidade de sua natureza, luta contra sua própria consciência diante de um amor impossível.

Toni Ramos Gonçalves

Sonhei que um homem gritava comigo. Não sei bem o que exatamente, mas havia toda uma situação que o levava a perder a cabeça e começar a gritar. O grito no final das contas era um trovão seco e abafado que me despertou. Me vi sentado num canto da sala.

Passei a noite em vigília e, toda vez que começava a cochilar, todos os barulhos me faziam acordar. Devo ter adormecido antes de o dia raiar. Ainda com os olhos semicerrados, vi o pequeno Juninho observando pela janela.

Fui até ele e lhe afaguei a cabecinha, chamando sua atenção. Ao me ver, ele sorriu. Tem o mesmo olhar inocente, incauto e meigo de sua mãe. Ele aponta o dedinho para a janela e gesticula a mão diante da boca.

– Cachorro? – pergunto, imitando o gesto e olhando na direção para ver se avisto o animal.

O vento fazia a chuva bater contra a vidraça e não vi nada nos arredores. Juninho encolhe os ombros. Fica triste por eu não ter visto o cão.

Alice, sua mãe, dorme noutro quarto, sobre um papelão. É o terceiro dia consecutivo de chuvas bíblicas. A enchente do rio impossibilitou nossa travessia para o outro lado, rumo ao norte.  Refugiamo-nos nas ruínas de uma pequena construção. Um lado dela está sem teto, e tudo de útil que havia nela foi saqueado.

Juninho olha para mim e gesticula novamente com a mão na direção do estômago. Ele tem fome. Pego minha mochila e busco por algum alimento. Ele aponta a lata de atum. Percebo a euforia nos seus olhos. É um menino esperto para seus seis anos de idade. Quer ser astronauta e sonha pilotar uma nave até Marte. A vida é boa quando se tem sonhos. Sentamos no chão, lado a lado, enquanto se alimenta. Lembro-me de ter olhado fixamente por alguns minutos para além da janela, dos morros e das nuvens negras no horizonte, e de me ver nos primeiros dias quando o conheci e o levava ao parquinho para brincar, antes de tudo aquilo acontecer.

Juninho cutuca meu joelho. Faz um gesto no rosto se referindo à minha barba, que crescera com os meses. Imita um Papai Noel, ali mesmo sentado. Respondo com outros gestos, explicando-lhe que ela não está branca. Faz uma careta e aponta alguns fios de cabelos grisalhos na lateral de minha cabeça. Então, gargalha em completo silêncio. 

Alice aparece na porta. Juninho levanta-se e corre para abraçá-la. Ela recusa-se a olhar nos meus olhos naquele instante. Ontem, pouco antes do anoitecer, após conferir o perímetro, ao passar diante da janela do lado externo, detive-me quando a vi. Estava de perfil, segurando um pedaço de espelho quebrado e contemplava, encantada, os próprios contornos e perfeições de seu corpo nu. Ao me ver, cobriu o corpo rapidamente com as mãos, e me afastei lentamente.

Ela senta-se no chão; Juninho, ao meio. Procura algo para se alimentar na minha mochila. Ela me fita com um olhar preocupado e interrogativo.

– Ontem, vi umas casas depois da montanha. Deve ser um povoado. – disse tentando tranquilizá-la – Daqui a pouco vou lá verificar se encontro algum alimento.

É meu dever mantê-los em segurança. Prometi isso ao meu irmão.

***

Lembro-me de sentir o cano frio do revólver Taurus 38 na minha boca, os olhos fechados, a respiração ofegante, o dedo imóvel diante do gatilho. O celular vibrava incessantemente sobre a mesa à minha frente. Por fim, deixei a arma de lado e peguei o aparelho. Era meu irmão Jaime. Ao falar rapidamente, pediu-me que fosse ao seu encontro.

Eram quase dez horas da noite quando cheguei ao Aeroporto Santos Dummont. Naquela época, eu residia no Rio de Janeiro. Meu irmão Jaime fazia parte do grupo de bioquímicos da BIFROST Corporations, empresa responsável pela colonização de Marte em 2.032 e que agora investia em cidades privatizadas. Fora convocado urgentemente para se apresentar a uma das sedes, no sul do País.

Fazia anos que não o via pessoalmente. As raras vezes em que nos comunicamos depois de adultos foi por chamada de vídeo e na última delas eu ainda me recuperava de um acidente, no hospital. Ao vê-lo de terno, cabelos grisalhos, alto como eu e ainda em boa forma física, percebi em seu rosto o cansaço. 

Fomos para uma lanchonete onde serviam um excelente café. Acomodamo-nos numa mesa no canto. Ele não tinha muito tempo antes de embarcar e foi diretamente ao assunto.

– Quero que você cuide da segurança de minha família por uns dias. – disse enquanto sorvia o café aos goles. – Ao ficar com Alice e Juninho, você me trará uma grande tranquilidade. É um favor que você me faz.

– Por quanto tempo vou precisar ficar com eles? – perguntei surpreso diante do pedido.

Jaime franziu a testa. Olhou para a TV fixada na parede do estabelecimento. Não conseguimos ouvir o áudio, mas a legenda citava mais um ataque dos rebeldes a um armazém de suprimentos do Governo. Em resposta, os militares bombardearam a cidade, com o apoio de helicópteros e blindados à procura dos líderes da rebelião, deixando um rastro de sangue, com dezenas de mortos. Imagens mostravam os sobreviventes desesperados fugindo pelas ruas.

– Não sei dizer. Talvez duas ou três semanas. – respondeu voltando os olhos para mim – A BIFROST espera fechar um acordo com o Governo para construir as cidades privatizadas e as colônias. Depois de colonizar Marte, é a empresa mais conceituada pelos Governos. Prefiro deixá-los aos seus cuidados até que eu me restabeleça. E eu só confio em você.

Na verdade, nem eu confiava mais em mim desde o acidente. Eu era segurança contratado pelo IBAMA para proteger cientistas numa base de pesquisas da OMS e ONU na Amazônia, onde cientistas de todo o mundo trabalhavam em busca de uma cura para combater uma nova cepa da Sars-CoV-2. Colonizamos Marte e não conseguimos combater um vírus. A doença vinha há mais de trinta anos dizimando boa parte da população mundial. A emboscada aconteceu quando um grupo de rebeldes emboscou nosso comboio, com o objetivo de sequestrar cientistas para criação de armas químicas. O caminhão que nos transportava explodiu. Só fui acordar num quarto de hospital dias depois.

– Como está sua adaptação à prótese?

Apoiei meu braço esquerdo sobre a mesa, retirei a luva e fiz movimentos com os dedos artificiais.

– Meu filho Juninho vai adorar ver isso. É um menino alegre e inteligente. – sorriu enquanto bebia o último gole de café.

Até hoje não agradeci meu irmão por salvar minha vida.

***

O mundo não é mais um lugar para ficar sozinho e coisas ruins acontecem a todo o momento. Por isso, deixo minha melhor arma com Alice, antes de sair à procura de suprimentos. Sem querer, toco levemente sua mão. Ela sorri para mim. Algo está diferente. Olho para ela e me detenho em certos detalhes. Agora é a vez da boca vermelha, de lábios cheios, de firme desenho. Beijo-a conscientemente na minha mente.

Juninho me puxa chamando minha atenção. Com gestos imita um robô e aponta para meu braço mecânico. Adora fazer palhaçadas. Sorrio e prometo-lhe que vou me cuidar. Depois, enquanto ando lá fora, debaixo de mais um temporal, a angústia sufoca-me de vez. Não esqueço a visão da noite anterior. Fazia um bom tempo que me sentia atraído por Alice. Talvez tenha me apaixonado desde o primeiro momento em que a conheci. Via-me enredado numa situação da qual não podia libertar-me. Mas não devia sentir-me culpado. Não havia contribuído para meu martírio. Queria escapar e não sabia como. Tinha fome e sede, queria, desejava, amava a mulher de meu irmão.

CONTINUA

Foto: Pexels

Toni Ramos Gonçalves nasceu em Itaúna-MG, no ano de 1971. Escritor contista e editor estreou na literatura com a novela O Último pôr do sol, em 1996. Autor de quatro livros foi vencedor de vários prêmios literários pelo Brasil. Participou de inúmeras coletâneas como coautor e organizador. Foi fundador e o primeiro presidente da Academia Itaunense de Letras, fundada em 2015. Recebeu o Troféu Capitão-Médico João Guimarães Rosa em 2019, em Belo Horizonte – MG.

13 comentários em “Dias passados – Parte I

  1. Me deu medo pensar pra onde estamos caminhando e a que fim esse vírus vai nos levar. Gostei muito da forma sutil em que voce descreveu o Juninho, e logo de cara dá pra perceber que ele é surdo. Estou bem curiosa pra ler o restante e torcendo por um final feliz.

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  2. UAU TONI. Você é um contista nato. Ambientação impecável, conflitos bem estabelecidos, mistério levemente sugerido, personagens que em pouco já mostram carisma. Perfeito!!!! Certamente será um excelente conto!

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  3. Que texto maravilhoso, Toni!
    A forma como descreve o mundo e os personagens, é tão real, tão atual.
    Por um momento me fez lembrar do filme Um Lugar Silencioso.
    Você descreveu muito bem nossos anseios em relação à nossa situação atual.
    Enfim, eu adorei e estou super ansiosa pela continuação!

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  4. Gostei bastante…de forma bem sutil vc conseguiu marcar bem as caraterísticas dos personagem. Bem perturbador pensar que o que vivemos pode continuar por tanto tempo. Será que o irmão aparecerá depois que o casal se entender? Aguardando a continuação.

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  5. Incrível a maneira com que você conseguiu transmitir tantas coisas em relativamente poucas linhas. Já me sinto envolvida na história e nos conflitos dos personagens! Como já foi dito, são muito carismáticos.

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