Victima – Parte 2

Por Toni Ramos Gonçalves

1946

A complicada gestação e a demora no parto da esposa deixavam o Dr. Dumont muito apreensivo. Aguardava há horas na sala de espera da maternidade, que estava vazia. Abordou uma enfermeira que passava apressadamente por ele, perguntando-lhe onde poderia encontrar a Irmã Ludmila.

– Está no bloco C com uma paciente. – respondeu a enfermeira antes de sumir pelos corredores da Casa de Enfermos e Necessitados.

Saiu na direção indicada. Encontrou-a molhando um algodão na água e colocando na boca de uma paciente. O sol da tarde entrava pela janela iluminando uma parte do quarto.

– Se você tiver fé e coragem, será feliz e não morrerá. Nossa Senhora está com você. A cirurgia será um sucesso. – consolava a freira diante do olhar aflito da enferma.

Dr. Dumont era um homem baixo, calvo, de rosto angulado. Assistia a tudo parado na porta. Não queria interromper. Ao notar sua presença, a freira foi ao seu encontro. Percebeu no semblante do médico uma tristeza profunda.

– Irmã Ludmila, receio por minha esposa e filho. O parto está complicado. – disse angustiado.  

– Tenha paciência e reze, meu amigo. – disse colocando suas mãos sobre o ombro dele – Deus sabe de tudo e basta entregar nas mãos Dele. Vamos lá. Nós dois iremos rezar juntos.

Caminharam silenciosamente lado a lado. Dr. Dumont admirava aquela religiosa. Logo quando ela chegou à cidade, há doze anos, provocou uma verdadeira revolução ao criar uma maternidade para mães carentes. Vinha gente de toda parte da região. Tratava a família como a coisa mais importante. Cuidava do enxoval, presente, batismo, formação, catequese. Às vezes, ia aos bairros pobres distribuir mantimentos. Por isso era amada por muitos. Nem a recente nomeação como superiora da Casa de Enfermos e Necessitados a impedia de estar ao lado dos menos favorecidos, sempre que possível.

Entraram na sala onde o parto estava sendo realizado. O médico e as enfermeiras respeitosamente pararam com a presença deles.  A freira foi recebida com um sorriso pela grávida, apesar das dores. Ela correspondeu ao carinho com um beijo na testa suada da paciente. Pegou seu terço colocando-o sobre a enorme barriga da gestante e, antes de começar a rezar, afirmou aos presentes:

– Tudo o que precisarem, rezem a Salve Rainha, que vocês conseguirão. Por isso, em nome de Jesus, digo que tudo vai dar certo.

1948

O escândalo envolvendo Irmã Ludmila foi a melhor notícia que Arthur poderia receber. Decidido a colocar seu plano em prática, aguardava na Estação Ferroviária a chegada do trem que traria seus homens de confiança. Eram duas horas de uma tarde ensolarada, e ele não tinha tomado café da manhã nem almoçado. Andava de um lado para o outro conferindo as horas no relógio de bolso e fumando charuto. Ele era um homem alto e magro, de traços agradáveis, bigode grisalho e maneiras educadas, que transmitia serenidade apesar de ser uma pessoa de poucas palavras. Não se casara e tivera poucos relacionamentos amorosos.

Observou um homem trajando um terno amarrotado cinza, segurando uma Bíblia enquanto gritava trechos dela na praça em frente à estação, o que lhe provocou uma risada irônica:

Mas eu digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus…

Há vinte e oito anos aguardava por aquele momento. Desde a leitura do testamento do tio falecido em que ele deixara boa parte de sua herança em dinheiro, alguns milhões, para a caridade, vinha planejando uma maneira de recuperar aquilo que achava ser seu por direito. Na época, de nada adiantaram os apelos dos parentes. A tia viúva, que não tinha filhos e era muito devota às coisas de Deus, jamais contrariaria o último desejo do marido. – Com Deus, não se brinca – dizia apontando o dedo para o céu.

–… Porque Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Mateus 5: versículos 44-45.

Nos últimos dez anos, Arthur ingressara no Conselho Administrativo da Casa de Enfermos e Necessitados e agora como presidente seria mais fácil executar seu plano. Associar-se à Irmandade dos Obreiros facilitou muito para que conseguisse aquela vaga. Seria mais fácil desaparecer com provas e manipular pessoas. Era o interesse da Confraria que as “coisas” mudassem. E não mediriam esforços para conseguir. Precisava manter a calma e agir com frieza, como sempre fizera.

Jesus respondeu: O que é impossível para os homens é possível para Deus. Lucas 18:27.

Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a política econômica pelo mundo começara a levar muitas empresas e milionários à falência. O espírito filantrópico ia deixando de existir. Portanto, era preciso acabar com o mandato daquela “comunista nojenta”, como se referia à Irmã Ludmila.

Durante anos incentivou financeiramente as enfermeiras para que infernizassem a vida da freira, tornando o seu ambiente de trabalho insuportável. Tudo inutilmente, pois a cada tentativa ela se fortalecia, mesmo diante de todas as atrocidades. Não se abalava por nada. Graças ao infeliz do enfermeiro Betinho e a seus boatos, algo poderia ser feito para afastá-la para sempre. Uma vez com a freira fora do caminho, construiria um novo hospital na imensa área do estacionamento e assim teria finalmente um negócio lucrativo.

Consagre ao Senhor tudo o que você faz, e os seus planos serão bem-sucedidos. Provérbios 16:3.

Por fim, o trem parou na plataforma, e uma multidão vinda de todas as partes desembarcou. Outros passageiros já se posicionavam para o embarque. Em meio a toda aquela aglomeração, viu três homens de físico avantajado, trajando sobretudos pretos e chapéus Fedora, saindo do trem e vindo em sua direção ao o reconhecerem. Olhou para seu relógio de bolso e viu que tinha chegado a hora tão esperada.

Restaurarei o exausto e saciarei o enfraquecido. Jeremias 31:2. – clamava o homem na praça, ainda em busca de atenção.

1948

O enfermeiro Roberto, mais conhecido por Betinho, terminou seu turno motivado e decidido a mudar de vida.

Saiu do prédio da Casa de Enfermos e Necessitados e, ao alcançar a rua, viu o sol ainda atrás do morro avermelhando o horizonte. Ia se encontrar com sua namorada, que trabalhava como doméstica na casa do prefeito da cidade.

Betinho era um homem demasiadamente magro e pálido, com uma aparência envelhecida apesar da pouca idade. Parou por alguns instantes para acender um cigarro e saiu caminhando, perdido em pensamentos, planejando o futuro ao lado de sua amada. Pediria desculpas por “falar demais.” Sentia-se arrependido pelo comentário sobre a Irmã Ludmila e o Doutor Dumont. Há dois dias flagrara os dois juntos e vira o médico colocando as mãos sobre a barriga da freira, dizendo que “cuidaria de tudo”.

– Imagina! A freira grávida? Coitada!!! Onde eu estava com a cabeça? Ela é uma verdadeira santa.

Culpava a bebida por seus deslizes e por isso estava decidido a parar de beber. Antes de terminar seu turno, jogou fora toda a cachaça que deixava escondida entre os remédios no depósito. A namorada merecia uma vida digna e queria ser o homem que passaria a vida toda ao seu lado.

– Vou pedi-la em casamento – pensou em voz alta com sua voz rouca de fumante. Animou-se tanto que veio a vontade de beber uma última dose no bar no fim da rua. Não. Não podia cair em tentação. Desviou-se na primeira rua, com pouco trânsito de pessoas e carros. Sabia que não podia ceder ao vício e que deveria resistir a todo custo.

Parou para acender outro cigarro e não percebeu a aproximação de dois homens que o seguiam, os mesmos que desembarcaram na Estação Ferroviária no meio da tarde. Ao se verem sozinhos num beco, um deles o chamou pelo apelido. Betinho, ao se virar, levou um soco na boca do estômago. Contorceu-se de dor. Deram-lhe mais uma saraivada de socos. Então, um Ford Coupe Deluxe 1940, de cor preta, apareceu do lado deles, onde ele foi jogado aos trancos dentro do carro. Entraram todos no veículo que saiu em disparada, virando a primeira esquina.

FIM DA SEGUNDA PARTE (CONTINUA)

Foto: Pixabay

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