Ontem eu era um menino

Por Toni Ramos Gonçalves*

Tudo o que meu pai me deu foi um espermatozoide. João Silvério Trevisan

Naquela tarde entrei no meu escritório disposto a encontrar os documentos solicitados pelo INSS para dar entrada nos meus papéis para aposentadoria. Nunca tive paciência com a burocracia. Aliás, sempre fui pavio curto e em certos casos até rompi as barreiras da civilidade. Mas naquele momento eu não tinha outra opção. O anúncio da reforma da Previdência pelo novo governo, eu já acima dos cinquenta anos e trabalhando desde os onze, não tinha mais disposição e saúde para trabalhar por mais um longo período.

– Governo maldito, que não respeita seu povo – resmungava enquanto revirava tudo.

 Um sol de verão entrava pela janela do escritório, deixando o ambiente num calor insuportável. Havia um monte de caixas abertas resgatadas da garagem, espalhadas pelo chão, e vários papéis sobre os móveis que o ventilador, vez ou outra, insistia em esparramar. Numa das caixas, encontrei fotos sem ordem, das várias fases de minha vida. Fiquei surpreso quando encontrei um envelope com várias fotos ainda em preto e branco e cartas datadas de décadas passadas que, um dia, minha irmã deixara aos meus cuidados. Nem me lembrava mais delas. Tirei uns papéis de cima de uma cadeira e, sentado, fui revendo as fotos. Uma delas mostrava minha mãe ainda muito jovem, diferente daquela que conheci, abraçada a um homem alto de cabelos encaracolados, um bigode fino, muito usado na época, numa praça em frente à antiga igreja da cidade de Aparecida do Norte. Era a segunda vez que eu via aquela foto. Minha mãe parecia feliz, com um brilho nos olhos!

Não gosto de me lembrar muito de minha infância ou nem prefiro lembrar. São várias as más recordações. Mas, aquela foto trouxe a lembrança do ano de 1982 que, de certa forma, acabou sendo um período de muitas transformações em minha vida. Faltavam dois meses para a Copa do Mundo, na Espanha. Todo mundo torcia para que o Brasil fosse, de novo, o campeão mundial de futebol. A ausência paterna em casa só me fez interessar por futebol naquela época, próximo de completar doze anos. Eu era um menino magricela, um esqueleto revestido de pele, cabelo estilo tiro de guerra, raspado no pente zero dos lados e baixo por cima.

Minha alegria era sair da escola e ficar na rua, jogando futebol e trocando figurinhas que vinham no chiclete Ping Pong. No caminho para casa, solitário, pois sempre fui uma pessoa de poucos amigos, tocava as campainhas das residências e saía correndo. Naquele dia, vi dobrar, na esquina, no alto da rua, o negro doido que a maioria dos moleques zoava. Diminuí o passo e abaixei a cabeça, olhando-o, enviesado, fingindo não vê-lo. A figura esguia, de estiradas pernas, braços sacudidos, descia no passeio do outro lado da rua. Vinha resmungando algo, pois os doidos sempre falam sozinhos. Assim que passou por mim, vendo que a distância entre ele e mim era segura, virei, coloquei as duas mãos ao redor da boca e gritei:

– Ô, Tibeiço!!!!

Ao ouvir o grito, na calma da rua, virou-se em minha direção, enfurecido, e já foi saindo no meu encalço.

– Tibeiço é sua mãe, seu pestinha.

Corri em disparada, rindo e gritando:

– Tibeiço, Tibeiço, Tibeiço.

– Esperaí, seu saco de merda. Quero ver me chamar de Tibeiço perto de mim.

Ao olhar para trás, vi que ele se aproximava muito rápido e, como o final da rua era muito íngreme, desviei na primeira esquina que me levava à Rua Bandeirante Desbravador, rua da zona boêmia. Olhei para trás e vi o doido procurando por umas pedras no chão. A rua não tinha calçamento. Ouvi uma delas zunindo a minha orelha e cair logo à minha frente. Corri o mais rápido que pude. E, antes de sumir da vista dele, ainda ouvi a sua promessa:

– Qualquer hora eu te pego, baixinho. Você vai ver o estrago que vou fazer em você.

Cheguei em casa ofegante e todo suado. Larguei a mochila no lugar de sempre e irrompi pela cozinha. Encontrei minha mãe olhando uma foto (esta mesmo que encontrei). Ao me ver, limpou, com a palma da mão, uma lágrima que escorria pelo seu rosto. Aproximei-me e, reconhecendo o homem da foto, perguntei:

– Por que meu pai foi embora, mãe?

Fiquei olhando para ela, em silêncio, aguardando uma resposta. Talvez daquela vez, ela me respondesse.

– Vou levar sua irmã na escola. Está na casa da madrinha dela – disse sem nenhuma alteração na voz e guardando a foto num envelope branco – Fiz um mexido com ovo e cebola. Está na geladeira. É só esquentar. Você vai capinar algum lote hoje à tarde?

– Vou não, mãe. Minha mão não sarou ainda – respondi mostrando-lhe as mãos ainda com os calos abertos.

– Depois vou à casa de sua avó – disse levantando-se da cadeira, tocando de leve meu ombro. Pegou uma sacola e saiu para a rua.

– A benção, mãe!

Lembro-me de abrir a geladeira e só encontrar água gelada e a panela com a comida. Preferi vasculhar o armário em busca de uma bolacha ou biscoito e vi que não havia mantimentos. Então, entendi o motivo de sua ida à casa da minha avó. Sempre voltava com algo de lá na sacola. A minha salvação, para não ficar de barriga vazia (pois na época não gostava de cebola), foi o bule com café frio que estava sempre ali sobre a mesa e encontrar um pão duro como pedra numa das latas de conserva. Apanhei o pão e o mordi. Ainda mastigando, fui para meu quarto, tirei a camisa branca do uniforme e me larguei na cama. Não entendia por que motivo minha mãe nunca falava de meu pai. Um dia, ele saiu e não voltou mais. Meses depois, ela recebeu uma carta no qual ele dizia que voltara para São Paulo e ficaria por lá. Deitado, imaginava inúmeras justificativas para o seu abandono. Aquela ausência fez crescer em mim um grande vazio. Recordo-me do meu desamparo, mirando o nada, sem conseguir uma explicação aceitável por ser órfão de pai vivo. Na verdade, nunca encontrei respostas para isso.

Acho que adormeci pensando naquelas coisas porque, quando abri os olhos, ouvi alguém me chamando longe e enxergava tudo embaçado por causa de uma fumaça que invadia o quarto.

– Toninho? Oh, Toninho? – gritava minha mãe lá no quintal.

– Oi, mãe! – respondi no piloto automático.

– Acorda, menino! Dormiu a tarde toda. Será que está com verme de novo? Vem aqui ver o que eu trouxe da casa de sua avó?

Levantei e, ao passar pela cozinha, reparei sobre a mesa um monte de mantimentos que ela trouxera da casa de minha avó, muita coisa que fazia muito tempo não entrava em casa. Fui em direção ao quintal. Encontrei-a atiçando uns galhos secos no fogão improvisado de tijolos que usávamos para esquentar água para o banho. Não tínhamos chuveiro. Para nos lavar, pegávamos um caneco e íamos jogando água sobre o corpo. No verão, o banho era frio e de mangueira mesmo.

– O que foi, mãe?

Ela virou-se pra mim e mostrou umas seis latas de nove litros de óleo vazias.

– O Tibeiço ajudou-me a trazer. Encontrei-o na rua. Tava furioso atrás de um menino que mexeu com ele, hoje mais cedo – disse-me encarando-me, desconfiada – Aí pedi a ele que me ajudasse.

Como fingi não escutar, ela continuou:

– Agora pegamos estas latas novas, trocamos pelas queimadas e podemos vender sua sucata para ferro velho. Acho que dá para conseguir uma boa grana. Você juntou muita.

Naquele momento, percebi o tamanho de nossas misérias. Toda aquela pobreza me incomodava.

– Ok. Amanhã cedo, faço isso, mãe. Vou trocar de roupa e ir lá ao campinho. Onde está minha irmã? _  perguntei.  

– Deixei novamente com a madrinha. Vai dormir lá. E você, vê se não demora. Daqui a pouco vou fazer a janta. Vou colher umas folhas de ora-pro-nóbis, para incrementar o pé de galinha.

– Tá, mãe… – respondi dando-lhe as costas seguido de uma careta de asco.

Naquele dia, caminhando para o campinho, decidi que seria alguém na vida.

Foto: Pexels

*Toni Ramos Gonçalves é escritor e editor.

ANÁLISE CRÍTICA POR WAGNER ANDRADE/POETA E PSICÓLOGO

Diz-se que a vida se faz de pequenas coisas, de modo que simples detalhes, que, tantas vezes, parecem passar despercebidos, podem ganhar uma tonalidade maior, fazendo com que as grandes e relevantes lembranças ganhem corpo, vida e sentido.

A partir de uma fotografia encontrada pelo protagonista, diga-se de passagem, já com mais de cinquenta anos e em busca da aposentadoria, veem-se desenrolar na mente acontecimentos que marcaram, de algum modo, a sua infância, levando-se em consideração a miséria vivenciada no passado, a relação com a mãe e com o pequeno mundo que o envolvia, as obscuras dúvidas em torno da ausência paterna em decorrência do abandono do lar pelo pai, além da experiência com o preto louco Tibeiço.

O fato de retornar às questões e vivências que ficaram para trás nem sempre se mostra uma tarefa fácil, ainda mais quando aquele passado, tendo em vista principalmente a fase de meninice, se vê repleto de marcas permeadas de decepções, dúvidas domésticas e alguns desencantos pueris que podem angustiar em demasia o espírito de uma criança. Em meio a tudo isso, este conto, além de sensível, por meio dessas reminiscências, nos proporciona uma aprendizagem importante sobre o que pode ocorrer no mundo de uma criança de onze anos, tendo em vista que, mesmo trazendo em si uma forma de encantamento peculiar própria do universo infantil no seu todo, nos leva a refletir sobre a sua própria percepção das agruras e amarguras sociais que o envolvem, estabelecendo como ponto de partida o caminho para a busca de mudanças por melhores dias em sua vida.

4 comentários em “Ontem eu era um menino

  1. O Senhor Deus do Universo é a Verdade que conhece situações e necessidades, o coração e pensamentos mais profundos, por isso você nunca estará sozinho! quando se aprende com os pais logo cedo a importância do estudo e trabalho, temos tudo para ser vencedores na vida, respirando e comendo com o suor das nossas ações. Gostei muito do conto 🙏🙏🙏

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  2. Toni, boa noite. Linda história. O que mais me chamou atenção é que sua história é muito parecida com a minha. A diferença é que meu pai não saiu de casa e sim a minha mãe, mas depois de muito velha. Saiu para tratamento de saúde e não voltou. Mas, o que dói em mim é ter a certeza que essa mesma história de fome é de milhões de crianças brasileiras. Será por que? Fique com Deus.

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