ENTREVISTA: PAULO SIUVES

Entrevistado por Toni Ramos Gonçalves

Paulo Siuves é escritor, músico e poeta. É presidente da Academia Mineira de Belas Artes (AMBA) e escreve semanalmente a coluna da AMBA no Jornal Clarín Brasil. É autor do romance “O Oráculo de Greg Hobsbawn” (CBJN-2011). Coautor em dezenas de coletâneas nacionais e internacionais. Organizador das coletâneas “AO INTENTO DO VENTO, Poesias nas Montanhas de Minas – Volumes 1 e 2”, co-organizador na coletânea “Escritores do Vetor Norte da Região Metropolitana de BH” Volumes 1 e 2. É servidor público em Belo Horizonte atuando na Banda de Música da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte como Flautista. Recentemente publicou pela Editora Ramos o livro “Sonetos e Canções.”

1. Qual a importância da literatura durante essa Pandemia do Coronavírus?

Estamos vivendo um período jamais imaginado por essa geração. Afastamento social era coisa de filmes ou livros, era somente na ficção que podíamos imaginar essa situação. Estar afastados dos nossos entes queridos e dos amigos, nos torna psicologicamente prisioneiros sem crimes. Esse período de cárcere voluntário requer estratégias para não nos tornar doentes dos fenômenos emocionais que cercam essa novidade. O acesso às artes nos liberta, a arte da leitura nos tira do cárcere emocional e nos permite conviver com a gente mesmo. Acho que, para muita gente, o mais difícil tem sido conviver consigo mesmas, desafiar a si próprio a ser diferente numa rotina que se tornou a mesma por dias a fio. Os filmes duram cerca de uma hora, um disco de música tem duração parecida, uma conversa ao telefone, ainda que por vídeo, não dura mais que isso. A literatura dura o tempo que quisermos. Isso tudo torna a literatura uma atividade muito importante, faz sobreviver o ser humano dentro de nós, abre janelas para as exteriorizações mentais. Ler é libertar a alma de um corpo confinado.

2. Você faz parte da Guarda Civil Municipal, por isso convive com vários níveis de classe social. O que isso influi na sua produção literária?

As classes sociais são influencias menores do que as diferenças humanas. Influencia pouco na minha produção textual. As diferentes nuances humanas influenciam muito mais, a variedade de seres que somos me deixam perplexo, de um modo positivo. Estar na rua exercendo a atividade de segurança pública me proporciona um vislumbre diferente da capacidade do ser humano em ser ora muito bom, ora muito mal. Temos pelo menos cinco aspectos na diversidade humana; gênero, cor, religiosa, étnica e ideológica, formando os principais tipos sociais que se agrupam e sofrem diante da intolerância do outro. Ser Guarda Civil treinou minha empatia com esses grupos e me libertou para escrever de modo respeitoso sobre cada um. Sou preto, mas isso não é o norte da minha produção literária, nem ser homem, nem ser sul-americano, nem ser cristão, nem ser hétero, nem ser pobre, nem ser cruzeirense, nem ser qualquer outra coisa. Posso criar um personagem que tenha ideologia político partidária de esquerda, de direita, de centro, ou apartidário. Estar nas ruas e ter esse olhar de quem normalmente é rotulado como rude, violento, entre outros adjetivos, e ser músico e poeta, me permite ter empatia com pessoas em situação de rua, situação de vulnerabilidade social, e também com pessoas na outra ponta do cordão social. O nível sócio cultural da pessoa humana pouco influencia na minha produção literária, a diversidade humana sim, isso me influencia muito.

3. Você é músico e poeta. Como você lida com essas duas artes? E uma arte influencia a outra?

Isso é estranho responder, porque todos esperam que eu diga que sim, que a poesia musical influencia diretamente na poesia literária, mas não. Uma não influencia intrinsecamente na outra. Não componho meus poemas de modo que possam ser musicados, nem componho músicas que fiquem bonitas quando recitadas. Eu até queria que todos os meus poemas tivessem o ritmo cadenciado da música, e queria poder recitar as músicas que compus como quem lê um belo poema, mas são coisas desligadas na minha mente. Claro que me inspiro ouvindo música e crio poemas, como “Ishtar”, e o contrário também acontece. Mas, não há uma regra que me contenha entre as margens de uma constância de produção. Faço versos livres, conheço a teoria da poesia, mas faço poemas livres dessa teoria. Consequentemente, sou livre para criar poemas com ou sem ritmo e cadências, entre outras exigências da música. Mas sou prisioneiro da música e não da literatura. Posso passar um dia inteiro sem ler um bom livro de literatura, mas não sem ouvir música, não fico sem cantarolar por mais que alguns minutos, jamais. Musica renova as células do corpo!

4. Como você explica essa explosão antirracista pelo mundo?

 Não há explicação. Sinto uma profunda tristeza ao pensar que o mundo ainda vive essa imbecilidade de intolerância racial. Não precisaríamos pensar em políticas antirracistas no século XXI onde já fomos ao espaço, ao fundo do oceano, já desvendamos a cura para doenças físicas e psicológicas, evoluímos tecnologicamente em cinquenta anos mais rápido e profundamente do que em quinhentos anos. Mas, ainda convivemos com racistas. Dividimos espaço com idiotas que não entenderam que somos todos seres humanos, que um vírus mata igualmente a pretos, brancos, amarelos e pardos. Mata americanos, asiáticos, africanos, europeus… que a fome não tem nacionalidade, que a morte não faz acepção de Pessoas, ela chega para todos! Não há explicação para esse fato. Assim como para o machismo. Infelizmente, vou ter que ensinar o perigo dessas práticas para os meus netos e conversar com as crianças que eu tiver acesso sobre esses problemas da sociedade em que vivemos, problematizar isso para que elas cresçam com a capacidade de dizer “não” à intolerância social, esteja essa intolerância no nível que tiver. As políticas públicas poderiam se preocupar apenas com problemas do século XXI para melhorar nossas vidas, não com problemas do século XIX e XX. Contudo, acredito que vamos chegar lá. A história é um retrovisor para consultarmos o que aconteceu, não é um lugar para vivermos. Tenho que ter cuidado com o que vou dizer; não está acontecendo um boom contra o racismo. Está acontecendo um boom de informações, a internet está colocando isso diante dos nossos olhos via smartphones causando comoção que antes não existia. A pessoa preta sofria sem que houvesse espectadores. Hoje em dia ela sofre diante das câmeras de todos os lugares. Sofremos do mesmo jeito que antigamente, a diferença é que está sendo filmado. O preconceito racial continua existindo do mesmo jeito que há centenas de anos. A discrepância acontece com a possibilidade de não precisarmos ser os denunciantes. A denúncia acontece pela internet, via imagens gravadas por câmeras de segurança, por câmeras de celulares, por câmeras de automóveis e de capacetes de motocicletas, não está escondido, ao contrário, está escancarado. Está na timeline das redes sociais, e não há como esconder isso via “jeitinho” financeiro. Não sou militante da causa negra porque não sou negro; eu sou preto. Uma coisa que precisa ser modificada na educação infantil, é que não somos negros e não precisamos da comiseração de todos os povos. Outros povos também foram humilhados e escravizados no Brasil, não com a mesma proporção, mas eu não fico medindo o tamanho da minha dor comparando com a dor do outro povo escravizado. Sou a favor das cotas, e sou a favor do reconhecimento pelo governo brasileiro cometido contra meus ancestrais. No entanto, eu não vou viver nos porões dos navios negreiros para comprovar que meus avós e bisavós foram subjugados, torturados, mortos por brancos. Quero igualdade entre os brasileiros, quero oportunidade para os pretos nas periferias, quero que parem de matar os jovens pela cor da pele, quero que acabe a discriminação no mercado de trabalho, porque pretos tem a mesma capacidade que brancos, amarelos, e seja lá qual for a cor da pele. Quero que a mulher e o homem pretos tenham a oportunidade de ir para Elysium serem curados das suas doenças. Não quero que meus descendentes subjuguem outras pessoas por causa da cor da pele e nem por outro motivo qualquer, quero que meus descendentes e seus descendentes possam viver em harmonia numa sociedade justa, com políticas públicas que garantam a sobrevivência dos brasileiros como um todo. Vamos todos para Elysium sem esquecer que viemos contrabandeados nos navios negreiros, para que essa história não se repita com nenhum outro povo da terra, para que tenhamos os olhos para ver o retrovisor e aprender naquele espaço de experiências, mas possamos ver o futuro e desejar um horizonte de expectativas permeado de justiça e paz. Num futuro bem próximo, teremos uma sociedade que não vai precisar de luta racial entre seres humanos porque somos exatamente isso todos da raça humana.  

5. O nosso melhor escritor de literatura de gênero é Machado de Assis. Hoje é possível dizer isso apesar de ainda haver certo preconceito. Qual a importância da cultura afro-brasileira na construção de nossa história?

Somos descendentes de uma montoeira de nacionalidades, temos influência de um sem fim de lugares e culturas. Machado de Assis pra mim é a síntese dessa mistura cultural. Ele simplesmente escreveu em todos os gêneros; folhetim, dramaturgia, contos, romances, poemas, sonetos, textos jornalísticos, críticos, teatrais e etecetera. Um humanista chamado Harold Bloom disse que Machado foi o maior escritor negro de todos os tempos; quem sou eu para contradizer esse cara? Assis foi uma sumidade em seu tempo, logo cedo alcançou sucesso com seu modo de escrever. Para falar de alguém que simplesmente foi fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, têm-se, primeiro, que fazer reverência. Você me pergunta sobre a importância da cultura afro-brasileira na construção de nossa história. A magnitude da influência cultural de povos afrodescendentes é inquestionável, não existirá meios para negar isso. No entanto, eu sou a favor do crescimento dos povos, do reconhecimento da importância contributiva de cada povo que ajudou a construir nossa nação. Nós somos influência para muitas nações ao redor do mundo; tanto na América do Sul quanto na África e na Europa também. Não vou nominar para não causar conflitos na academia (risos). Como a pergunta é sobre a cultura Afro-brasileira, tenho a impressão de que o brasileiro tem receio de reafirmar sua raiz afro, porém, não é o suficiente para evitar que usem o corte do cabelo, as roupas, os acessórios tanto femininos quanto masculinos, etc. tudo faz parte da cultura, mas, quando falamos de cultura literária, a coisa muda um pouquinho. Não consumimos literatura de países africanos como de outros lugares. Há uma lei, a 10.639 de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas e cujo objetivo é desconstruir o preconceito étnico-racial no âmbito do espaço escolar, uma legislação muito recente para que o efeito seja efetivo, embora o Dia Da Consciência Negra tenha vingado, apesar dos protestos até mesmo de pessoas pretas. Claro, temos que ter consciência multicolorida, porém a distorção histórica precisa ser corrigida, e isso começa pela cultura. Valorizando a cultura afro-brasileira, estaremos dando um recado para toda a nação que é a seguinte: “- Brasileiros, valorizem nossos ascendentes, seja lá qual for à origem deles”. E teremos uma sociedade que pensa o futuro a partir das escolhas que fazemos no presente tirando lições das histórias dos nossos antepassados. Acertadas ou não, são histórias que ensinam a sermos melhores no futuro. Ser melhores significa entender que o africano não é o preto pobre que vemos retratados na televisão brasileira, mas, homens e mulheres com sabedorias, com riquezas, com histórias maravilhosas como as de outro povo qualquer. A cultura afro-brasileira é ampla e contempla a música, a literatura, a culinária, a moda, a religião, a política, o teatro, o cinema, o jornalismo, enfim, ela está em tudo e em todos os lugares desse país continental. Estudar esses costumes predominantes é, para mim, valorizar a formação pluriétnica dessa pátria onde cada cidadão contribui de modo multicultural para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.

6. Como presidente da Academia Mineira de Belas Artes, como você define a atual produção literária brasileira?

Não posso definir esse momento como crítico, não sou crítico literário. Mas, percebo uma explosão de estilos literários muitos saudáveis. Temos literatura para todos, crianças, adultos, para todos os níveis escolares, para escritores de todos os níveis financeiros. Hoje em dia pode-se publicar com menos mil reais, as editoras estão se adaptando aos novos tempos, estão produzindo em menor quantidade e, com isso, dando acesso à produção editorial a mais pessoas. Claro que a dificuldade na distribuição livreira não foi superada, mas empresas como a Amazon estão chegando, estão fazendo os livros físicos e virtuais chegarem a mais mãos, independentemente da escolha de plataforma para leitura. Há pessoas que gostam do livro físico, eles entregam, gostam da leitura em meio digital? Eles entregam. Há gente que gosta do meio termo? Enviam o kindle e entregam os livros em e-book para uma experiência de leitura quase física. O mundo inteiro vive essa explosão de opção literária e o Brasil não está à margem disso. Tenho amigos e amigas que doam livros num volume que impressiona. O projeto Santa Leitura, que iniciou no bairro Santa Tereza (por isso o nome), criado por minha amiga Estella Cruzmel, é um exemplo disso, são milhares de livros distribuídos em dez anos de biblioteca na Praça. A escritora Lin Quintino distribui livros nas portas dos condomínios da região sul de Belo Horizonte, deixa livros de graça pra quem quiser ler. O Projeto Abrace Um Livro, da Confraria de Poetas Belo Horizonte, capitaneado pelos escritores Irineu Baroni, José Hilton Rosa e Marcia Araújo, é outro exemplo do que estamos falando. Tudo isso para levar ao leitor experiências de leitura cada dia mais diversificada, dos clássicos aos contemporâneos, dos livros mais antigos da história aos lançados mais recentemente. Além dessa distribuição gratuita para introduzir novos leitores a esse mundo fantástico, há também plataformas que fazem com que mais pessoas se tornem escritores. Isso pra mim é excepcional, porque mais facetas da cultura brasileira estão sendo registradas, mais coisas do cotidiano que são vivenciadas por escritores de todos os cantos do Brasil estão sendo registradas. Acho ótimo esse momento da literatura brasileira. A confecção de um livro deixou de ser privilégio de ricos e agora está ao alcance de todos que querem deixar seu legado. Muita gente questiona a qualidade do que está sendo publicado, eu não. Estamos numa democracia, e a definição de “democracia” passa por aí, isto é, regime em que não existem desigualdades ou privilégios de uma classe sobre a outra, a democracia permite que os cidadãos se expressem livremente. Há de se ter responsabilidade, mas isso é assunto para outro momento.

O escritor Paulo Siuves / Foto: do próprio autor

Um comentário em “ENTREVISTA: PAULO SIUVES

  1. As perguntas foram muito bem elaboradas, oportunas para o momento. Podemos observar as respostas do Presidente Paulo Siuves, a total segurança, propriedade e articulação.

    Curtido por 1 pessoa

Deixar mensagem para Antonio de Paula Apoli Cancelar resposta