Na escuridão de nosso olhar

Por Toni Ramos Gonçalves

Bento abriu os olhos, ao primeiro alarme do despertador. Buscou os óculos sobre o criado-mudo, verificou as horas no celular e o desativou. Sentou-se à beira da cama, com seus cinquenta e dois quilos, ainda sonolento. Sentia uma leve dor de cabeça. Sobre a escrivaninha, uma garrafa vazia de vinho tinto chileno.

Levantou-se, calçou os chinelos de pelúcia do Bob Esponja, arrastou-se até o banheiro. “É hoje, é hoje…”, pensava insistentemente, enquanto a água da ducha escorria pelo seu corpo extremamente magro e longilíneo, até ser engolida pelo ralo.

Após o banho, dirigiu-se ao quarto do pai, de noventa anos, como fazia todas as manhãs. Encontrou-o ainda dormindo, algo raro a cada dia. Fazia anos que precisava de cuidados frequentes. Perdeu a conta das noites em claro, durante as crises alucinatórias do pai, ainda mais frequentes, desde o falecimento de sua mãe, havia poucos meses.

Na cozinha, preparava o café, sempre conferindo as horas no relógio no pulso ou no outro pendurado na parede. A lentidão do ponteiro, o tictac irritante, os segundos infinitos e aquela inquietação crescente que aos poucos dominava sua mente e corpo.  Às vésperas de completar cinquenta e cinco anos, ainda vivia na casa dos pais. Pronto o café, bebeu um gole sem adoçante, buscando diminuir um pouco os sintomas da ressaca.

De volta ao seu quarto, vestiu seu terno preto: impecável e acima de qualquer suspeita.  Verificou as poucas mensagens no celular. Nenhuma valia a pena responder. Ouviu o pai se levantar e o silêncio indicava que ele acordara lúcido. O latido do cão no jardim anunciou a chegada da cuidadora de idosos. Olhou novamente o relógio no pulso e constatou um atraso de cinco minutos. Pediu a bênção ao pai, carinhosamente, beijando-o na face; exigiu da enfermeira mais pontualidade e a orientou sobre os novos remédios indicados pelo médico. Disse também que a faxineira viria naquele dia para a limpeza semanal e que ele chegaria mais tarde devido a um compromisso inadiável e sem hora para terminar na cidade vizinha.

Um cachorro vira-lata imenso, preto, focinho branco e orelhas caídas, o esperava na porta que dava acesso à garagem. O rabo balançando, de um lado para outro, buscava o carinho do dono. Limitou-se a afagar a cabeça do cão.

Bento atravessou o que restou do jardim da mãe, sem notar as rosas que desabrocharam durante a madrugada, e nem o céu azul, que anunciava mais um dia quente de verão. Pelo retrovisor central do carro, ajustou a boina cinza italiana, para proteger a calvície.

Decidiu ir pelo trajeto mais rápido para o local marcado para o encontro. O trânsito mais lento do que nunca, naquela hora do rush, servia apenas para irritá-lo. Dava golpes no volante.

“Trânsito de merda e motoristas estúpidos”, esbravejava.

A lentidão, o calor incomodando, o suor a escorrer pela testa, ligou o ar- condicionado. Irritou-se com dois motoristas, buzinando e distribuindo novos xingamentos, o braço magro para fora da janela, indo do punho cerrado ao gesto obsceno. Sair ou entrar numa grande metrópole às vésperas de um feriado prolongado era um teste de paciência.

No final da tarde do dia anterior, acomodado na poltrona de sua sala refrigerada na multinacional onde trabalhava como diretor administrativo havia mais de vinte anos, seu celular tocou e na tela surgiu o nome do contato que conhecia.

“Boa tarde, meu querido”, saudou a voz masculina do outro lado.

“Boa tarde, Calebe”, respondeu num tom seco.

“Pelo visto continua chateado.”

“Por que não estaria?”

Houve uma breve pausa.

“Quero me desculpar pelo problema da última encomenda e oferecer uma cortesia em compensação. Aliás, você e seus amigos são meus melhores clientes. Preciso me redimir.”

Respirou fundo, passando a mão na barba grisalha. Avistou pela janela envidraçada o alto do Corcovado onde o Cristo Redentor vigiava de braços abertos. Um avião cortava o céu azul.

“Fala”, continuou num tom de voz mais suave.

“Já tenho o que o senhor quer, doutô.”

E ali, estava ele, a caminho do local de encontro que ficava numa rodovia pouco movimentada, a duas horas da capital. Chegou faltando cinco minutos para o meio-dia, verificou isso no relógio digital do painel do carro.  Era um restaurante discreto, à beira da estrada, deteriorado pelo tempo, onde no passado se vendia comida caseira para os viajantes e caminhoneiros que por ali passavam, antes da construção da nova rodovia.

Um homem grandalhão, com uma jaqueta de motoqueiro, estava atrás do balcão. Com o olhar mostrou um cliente sentado numa mesa no fundo do bar que estava vazio.

Calebe era um homem baixinho e feio, o cabelo comprido tingido, um rosto inchado e vermelho que o recebeu com um sorriso amarelo. Cumprimentaram-se sem aperto de mão e evitaram o contato visual além do necessário.

Sentaí, doutor! Como foi a viagem?”, disse com uma voz de fumante.

Como não houve resposta foi logo jogando uma maleta sobre a mesa e retirou de dentro um álbum com inúmeras fotos daquilo que era ofertado. O olhar de Bento saltava de uma página para outra, as mãos trêmulas, admirado com o produto oferecido.

“Mercadoria boa, né doutô?”, disse com um sorrisinho maroto. “Muita variedade… Atende a todos os gostos.”

Não houve resposta de imediato.

“O preço é o mesmo?”, disse após conferir todas as páginas.

“Que isso, doutô? Assim você me quebra. Produto assim é mais caro, se é que me entende”, disse dando uma piscadela de olho.

“Sei… E a cortesia? Está aqui também? Tem foto?”, disse folheando o álbum novamente sem saber o que procurar.

O homem deu uma risada estranha, balançando a cabeça negativamente.

“Tá me tirando né, doutô? Você é cliente especial. O produto é novo, zero bala. Guardei justamente para você”, disse colocando uma chave sobre a mesa. “Sem mágoas, doutô, pelo incidente anterior? Fechamos no mesmo preço e mantemos o contato com seus amigos com um acréscimo de dez por cento?”

Bento desceu seus olhos até a mesa e fixou-os na chave.

“Sim… Sim… Lógico.”, concordou enxugando o suor que escorria da testa com um lenço que retirou do bolso da calça. “É justo!”

 “Está lá no fundo. Pode ir lá. Você já conhece o caminho”, disse Calebe arrastando a chave até ele.

Levantou-se rapidamente, olhou as horas no relógio de pulso e ofegante dirigiu-se aos fundos do estabelecimento. Ao sair pela porta voltou-se ao ouvir a voz de Calebe.

“Não tenha pressa, doutô”, disse enquanto acendia um cigarro.

Atravessou um caminho cheio de entulhos e outras coisas que para nada mais serviam. O barracão ficava no fim do quintal onde com habilidade abriu a porta fechada a chave. Uma nesga de sol penetrava pela janela e se deparou com uma menina ruiva extremamente magra e frágil sentada na beira da cama, olhando para o chão, contemplando o nada. Se tivesse treze anos, era muito. Ao vê-lo entrar, ela ficou de pé. Os cabelos caindo sobre o rosto. Vestia um pijama rosa curto que mal escondia as novas formas de seu frescor adolescente. O homem fixou seu olhar no rosto cheio de sardas ou espinhas e principalmente nos pequenos seios que ainda brotavam.

“Olá”, cumprimentou-a, após verificar mais uma vez as horas e descobrir que tinha tudo ainda sob seu controle. “Como é seu nome?”

“Pode me chamar de Maria”, respondeu a menina em voz baixa e cabisbaixa.

“Maria, tudo vai ficar bem”, disse enquanto a porta vagarosamente fechou atrás de si.

O sol já se punha no horizonte, quando a porta voltou-se a abrir. Bento parou visualizando o horizonte vermelho. Após alguns segundos olhou mais uma vez para o interior do barracão e viu a menina acabando-se de vestir. Puxou a carteira do bolso da calça, e por compaixão foi retirando algumas notas no intuito de agradá-la. Nisso a menina veio na sua direção, com um semblante apavorado.

“Não precisa, não precisa”, dizia enquanto tentava recolocar o dinheiro de volta na carteira. “Calebe, meu pai já tem tudo acertado com você. Pode ir embora. Vai… Está tudo certo.”

E dizendo isso Maria fechou a porta.

Foto: Pexels

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