Os Inseparáveis

PREFÁCIO DE PAULO SIUVES*

A música é realmente uma coisa mágica, contagia com sua forma universal.” (Norberto Corradi). 

A história realiza uma linha definitiva no tempo e o tempo… Aaah; o tempo! Surge a necessidade de inserir a música nesse contexto criacional. Nada do que existe no universo conhecido ou desconhecido, se fez sem música. E é sobre isso que o livro Os Inseparáveis (Editora Ramos, 2020), de Norberto Corradi, trata; a criação de uma família. Pessoas diferentes, oriundas de locais distintos, reunidas e transformadas em uma família inseparável. Apesar de haver transcorrido vários anos, e a narrativa nos coloca íntimos dos fatos transcorridos no período, os rapazes permaneceram ligados por essa coisa mágica citada pelo autor.

Foto: Norberto Corradi

 Nessa narrativa, um grupo de rapazes decide fazer música e encontram sintonia que atravessa décadas, vivenciam histórias de casamentos, de formaturas, e de outros motivos para se contratar um conjunto musical. O tempo transcorre linear no relato de Norberto Corradi e expõe as alegrias da formação, a apreensão dos desígnios da história e das tristezas que vivenciaram juntos. Sabedor da força que um evento triste tem de unir as pessoas fazendo com que a empatia seja lentamente lapidada e transmitida para o sentimento de um só coração que bate em vários peitos, ao mesmo tempo, pois sou oriundo de conjuntos musicais que passaram bons e maus momentos, sei bem do que a convivência regada a acordes musicais é capaz de fazer. Por mais dissonante que seja o momento, o toque surdo do coração pode fazer comutar a reunião de amigos em união familiar. 

Baile das Misses em Santo Antônio do Monte em 1968

Minas Gerais é um celeiro próspero quando se trata de grupos musicais, bandas de música, cantores… Músicos de variados estilos surgem entre as montanhas mineiras e tornam-se sucesso no cenário nacional e internacional para que todos saibam que a música aqui é levada a sério sendo um legado de família, consanguínea ou não. O autor revela que sua influência musical é proveniente de parentes próximos e esses pertenciam a bandas de cidades do interior testemunhando a estreita ligação com a herança musical mineira. Dessa tradição nascem músicos impregnados dessa tendência natural à desejar os palcos, os bailes da vida, e muitas dessas crianças crescem para colocar “o pé na profissão de tocar um instrumento e de cantar”, em sintonia com a música “Nos Bailes da Vida”, de Milton Nascimento. O músico escritor revela essa tradição em sua vida escrevendo assim: “Acho que eu tinha a música nas veias. Meu tio Hermínio era maestro da banda de Itaúna e eu sempre ia “em” sua casa para assistir aos ensaios da banda”. As bandinhas, ainda hoje, fazem apresentações nas praças, pelas ruas das cidades e fazem brilhar olhos de pessoas de todas as idades. Quanta gente sente o coração arder quando soam as primeiras notas dos instrumentos de sopro e percussão em algum canto remetendo o pensamento imediatamente aos dias vividos numa cidade do interior onde essa tradição ainda é forte? As bandas despontam também na capital mineira em pleno século XXI mostrando a força desse símbolo cultural por meio do qual surgem músicos que permanecem ligados à Minas pelo resto de suas vidas como que por um cordão umbilical impartível, e que não se corrompe com o passar dos tempos, revelando novamente a ação dessa coisa mágica chamada “música” citada pelo autor.

Foto: Norberto Corradi

Em meio à década de 1960, Norberto Corradi conhece a banda que o influenciaria e seria o stardust daqueles meninos que viriam a se descobrir inseparáveis decorridos mais de cinco décadas, a família musical reunida num sonho romântico de sucesso nos palcos iluminados por luzes coloridas e fumaça artificial. Tarcísio e seu Conjunto, o primórdio da história que dá sequência aos acontecimentos nas vidas dos personagens contidos nesse livro que conta os altos e baixos que um grupo de músicos sofre ao longo de suas carreiras. Mesmo que não tivessem alcançado sucesso, ainda assim teriam muitas histórias divertidas para encher uma obra literária. “Fizemos uma reunião para mudar o nome do conjunto que passou a se chamar Os Inseparáveis, nome bem apropriado em razão daquela parceria fraternal que havíamos nos tornado”.

Os Inseparáveis é um livro que consegue transmitir o processo de formação demonstrando o sonho de uma classe artística inteira e suas consequências na caminhada de subir e descer dos palcos, entrar e sair dos shows,  de ter e não ter um empresário por conta da banda e que faça parte da família. O livro deixa de ser uma simples  biografia para espelhar a relevante significação testemunhal de uma vida inteira dedicada à paixão pela música. Um sentimento tão intenso que foi capaz de transformar o comportamento de cada componente, os pensamentos e banhar a todos com o entusiamso de viver a alegria que é tocar para um público que aclama em coro pelo grupo, como o relatado baile em Ouro Preto, ou os apertos vividos em Santo Antônio do Monte, e até mesmo a expectativa de estar na tv, com a cabeça no mundo da lua. Enfim, uma oportunidade de transmitir, por meio da escrita, um repertório de princípios e valores que serão passados adiante de geração em geração, valores familiares e musicais desvelados com talento na história de um homem que ousou viver seu sonho, despertando todo o seu potencial de criar música, de viver música, essa coisa mágica que contagia com sua forma universal.

*Paulo Siuves é poeta, músico Presidente da Academia Mineira de Belas Artes.

Cartaz de divulgação dos Os Inseparáveis

Embaçado

Por Toni Ramos Gonçalves*

Que o Bráulio era um caso perdido, quase todas as pessoas da rua e até do bairro com nome de santo já sabiam. Há anos era um problema para os pais e, a cada aprontação do filho, lamentavam-se desanimados para os vizinhos.

“Se com quarenta anos não consertou, não conserta mais. Não tem mais jeito.”

Bráulio ficou viciado desde os quinze anos, após se envolver com uma rapaziada nada sociável. Provara de tudo que é entorpecente. Começou com maconha, caiu na pedra de crack, e após uma overdose com cocaína, se limitou a fumar apenas marijuana. Fumava demais e consequentemente ficava mais sob efeito que todos, tanto que os colegas o apelidaram de Dragão. Nem mesmo as internações nos centros de reabilitação não surtiram efeitos. Uma semana após voltar à rua, lá estava ele, fumando sua tora.

 “Nem sei à qual santo recorro, com o monte de promessa que já fiz”, dizia a mãe desorientada.

E vem sendo assim por anos, sem pena de si mesmo e dos familiares, consumido mental e fisicamente. O corpo atual em pele e osso em nada lembra o jovem pardo e alto, de olhos verdes, atraente, alvo de muitas garotas, na maioria filhinhas de papai, que o queriam para o prazer e pediam que lhes ensinasse a arte de enrolar um baseado. Tinha físico de atleta, fora bom meio-campista no futebol durante sua curta carreira esportiva. Sempre foi fã número um do Maradona. Abandonou a escola ainda no Ensino Fundamental e, para manter o vício, começou a trabalhar antes mesmo da maioridade.

Foto: Pexels

“Sou viciado mesmo, mas meus pais não têm que bancar meu vício”, dizia enquanto queimava um baseado no alto da pedreira com um grupinho de amigos.

Perambulava pelas ruas até altas horas da noite e, apesar de empregado numa empresa, era pontual com os horários. Os olhos vermelhos o condenavam, pingava colírio, não dava bobeira, mantinha-se como podia, mas sempre mostrava serviço. E era trabalhando que contava as histórias mais absurdas.

“Tenho quase certeza de que o cão do vizinho levou um lero comigo ontem, enquanto curtia o barato. Papo mais manero. Toda noite aquele vira-lata vem bater uma bola comigo.”

“Cria juízo, homem. Para de perambular à noite. Isso tá consumindo você e vai acabar pirando de vez”, diziam os colegas mais próximos, em meio às risadas. Prometia que ia parar, mas naquela mesma noite estava a vagar pela cidade atrás das bocas de fumo.

Certa vez achou na rua o gatinho da vizinha, uma senhora idosa, e gentilmente se prontificou em levar o bichano para ela. Comovida e feliz por alguém encontrar seu único companheiro dos últimos tempos, deu-lhe uma gratificação em recompensa, que foi logo convertida em erva fresca. Assim, toda vez que ele se via sem dinheiro, elaborava um plano para sequestrar o gatinho e depois aparecer na casa dela dizendo-lhe que o tinha encontrado novamente. Depois de tantas fugas do felino, a velha cercou todas as janelas com tela de proteção e o tão rentável plano de sequestro perdeu toda sua valia.

“O dia que eu topar com aquele gato na rua, eu rango ele”, prometeu a si mesmo, enraivecido.

Quando a polícia brotava sempre se livrava da droga antes da revista. Da última vez, não teve como escapar e a solução foi engolir o resto do cigarro de maconha.

“De onde você está vindo?”, perguntou o truculento policial, ao revistá-lo.

Tava na missa, senhor”, respondeu com os olhos ainda lacrimejantes.

“Chorando desse jeito, aposto que foi missa de sétimo dia, né?”

Recentemente, com o surgimento da Pandemia, Bráulio tentou quietar-se, devido à obrigação do isolamento social. Conseguiu permanecer apenas um dia dentro de casa.

“Se você quer ficar na rua que fique. Mas se lembra de que eu e sua mãe fazemos parte do grupo de risco, se é que a gente vale algo para você…”, esbravejava o pai enquanto a mãe mantinha os olhos tristes sobre o filho.

“Que isso, pai. Lógico que me preocupo com vocês! Eu não vou entrar em casa não. Deixa a janela do meu quarto cerrada que eu entro por lá. O Coronga não pega em gente de rua. Deus protege!”, disse com um sorriso maroto sem mesmo acreditar há tempos na existência de um ser supremo.

Caso resolvido podia continuar saindo pelas ruas. Porém, estava desempregado há mais de cinco anos. Vivia de bicos, hora capinava um lote, outra lavava um carro, às vezes trabalhava de servente de pedreiro. Por causa da pandemia ninguém mais o procurava oferecendo trabalho. Se fosse para enxugar gelo ou ensacar fumaça, aceitaria. Com ele não tinha serviço ruim. O que não podia era faltar o bagulho.

 Roubar e furtar estavam fora de cogitação, apesar de que na hora da fissura cometia uns deslizes, como aquela vez em que tirou o chuveiro do banheiro de sua casa, para conseguir uns trocados.

“Você não ajuda mesmo, né, meu filho? Seu pai ficará uma fera ao descobrir. Cria juízo, menino!”, lamentava a mãe desiludida mais uma vez. Casos assim não eram frequentes, mas ela sabia que não seria a última vez.

Devido à Pandemia o governo aprovou um auxílio emergencial para enfrentar o momento de crise, visando assim a cuidar da população. Bráulio imediatamente se inscreveu, revirou todo o quarto a procura de seus documentos esquecidos há tanto tempo e ficou por vários dias, incansavelmente, acessando o aplicativo, no celular esperando a aprovação. Até conseguiu decorar seu número de CPF. Todo dia ia à agência bancária buscar informações desejando mais que tudo a aprovação do cadastro.

“Eu tenho direito. Sou trabaiadô, moça. Fui fichado por quinze anos…”, suplicava em um tom mais elevado para a assistente do banco e para quem mais quisesse ouvir na imensa fila. E, quando conseguiu sacar, acabou com todo o rendimento no prazo de duas horas depois de tê-lo recebido. A segunda parcela durou um pouco mais: três horas.

Noutra noite, ainda em tempos de isolamento, vagava com passos e gestos lentos ao modo zumbi pelas ruas da cidade, já há um tempão sem fumar nadinha de nada, esperando que alguém o salvasse, quando subitamente uma Hillux parou repentinamente ao seu lado.

“Ô Chegado! Quanto você quer nessa máscara sua?” perguntou o playboy no banco do passageiro, um tanto agitado.

“Uai, com esta máscara, você vai pegar é tétano”, brincou sem entender a oferta e se aproximando do carro.

O homem riu e continuou:

“Papo reto, meu chapa. Preciso dela. Vou para uma festa de bacanão e lá só entra de máscara. Quebra esta para mim…”, e foi logo puxando a carteira do bolso da calça de onde retirou uma nota de vinte reais e a estendendo para ele. Os olhos do Bráulio brilharam e sem pestanejar retirou a máscara do rosto e entregou ao homem.

“Use-a ao contrário…”, sugeriu ao pegar o dinheiro.

O homem agradeceu com um sorriso, e o carro saiu cantando pneu em alta velocidade.

“Coisa doida… Se eu contar, ninguém vai acreditar…”, disse rindo da própria sorte e acelerando o passo na direção da boca de fumo mais próxima.

Foto: Pexels

*Toni Ramos Gonçalves é escritor e editor

Educação e Cidadania

Por Maria Luciene

APRESENTAÇÃO DO LIVRO EDUCAÇÃO E CIDADANIA

Os textos que compõem esta obra são resultantes de quase trinta anos à frente do magistério onde relato experiências pessoais por mim vividas e suas relações no contexto: família/ escola/ aluno/ ensino/ aprendizagem. Ao longo do tempo ouvi inúmeros colegas de profissão, redigi seus anseios, tornei-os públicos, ainda que em vão. Juntos fizemos a nossa parte em prol da valorização educação.  Hoje necessito me deparar com a árdua realidade de que os anos se passaram, muitos de nós já estamos aposentados, sem que os incontáveis desafios em meio às pedras do caminho fossem superados. Pelo contrário: O professor está cada vez mais sozinho. A violência nas escolas e a omissão das famílias só aumentam.  Esta obra, que objetiva ser um apoio pedagógico ao professor, com textos a serem explorados em sala de aula, visa chamar a atenção da sociedade brasileira para a realidade do ensino público, não somente no estado Minas Gerais, como em todo o país. Faz-se necessária uma ampla reflexão conjunta sobre os valores sociais humanitários do século XXl. Família, educadores, governantes… Todos estamos inseridos neste contexto transformador, formador primeiramente de princípios básicos de educação e, sucessivamente, de opinião. O alicerce da educação está na infância, sendo a família o nosso primeiro e mais importante grupo social. É de suma importância que esta assuma o seu papel na educação de suas crianças e não transfira a responsabilidade unicamente para a escola. Educação de qualidade rumo à cidadania vai da valorização do professor ao comprometimento dos pais com a escola visando identificar e sanar comportamentos indesejáveis de seus filhos.

Maria Luciene

VENCENDO BARREIRAS

É importante que a criança seja amada desde o seu nascimento. Pais amorosos transmitem para o filho segurança emocional, companheirismo, equilíbrio, determinação. A criança, quando amada, certamente terá uma melhor capacidade de raciocínio e um melhor rendimento na escola. Pais trabalhadores, amorosos, presentes e companheiros passam para os filhos segurança, equilíbrio, determinação; ao contrário de um pai que espanca o filho ou o trata com aspereza. Esse filho, no futuro, diante de alguma dificuldade, tenderá a partir para a agressividade. O envolvimento dos pais com a escola, visando tanto a acompanhar a vida escolar do filho, quanto se inserir no contexto de normas e decisões a serem tomadas, faz com que esses se sintam também membros da equipe. Quando compreendidos, sabendo respeitar seus limites, essa parceria família & escola poderá vir a proporcionar resultados construtivos bastante satisfatórios tanto para o corpo docente quanto para o discente, diminuindo-se assim a evasão e o índice de reprovação, além de facilitar o intercâmbio na relação professor/aluno.  A escola é o primeiro lugar onde a criança passa a desenvolver o seu convívio social. Daí a importância de uma boa aceitação advinda de ambas as partes. Toda criança precisa ser amada. Para a sua valorização pessoal é importante saber que há alguém que se preocupa com ela, que se importa com ela. Independente de como seja de onde venha como se sinta, o importante é ser amada. Assumindo um papel assim de peculiar importância e, já que os valores estão mudando, a escola precisa mudar; se tornar mais atrativa e construtiva. O país não mudará enquanto todas as crianças do Brasil não estiverem juntas, se harmonizando, se articulando eticamente e politicamente para o bem da nação.

Livro de Maria Luciene: Educação e Cidadania

Maria Luciene – Jornal Hoje em Dia – 11/12/1009.

De Zé a Cauby Peixoto

Por Maria Lúcia Mendes

            Se o que conto é verdade? Que é isto, companheiro! Nessa altura da vida, com tantos janeiros na cacunda, haveria eu de mentir? Conto e bem contado. Sem rodeios, sem enfeite, por modo de que me responda: acaso a vida tem enfeite? Nenhum. Desde que a gente nasce até a hora derradeira é cacetada. Para uns, o viver é mais manso. É o caso – uns nascem pra ser cavalo, outros pra cavaleiro. Se acontece de dar uma aragem é coisa de nada, passageira, a tal felicidade. Mas segura aqui a ponta da meada, que já desenrolo o novelo. Lá está ela, mão escorando o queixo, e a minha espera. Toda semana é sagrado, venho visitá-la, trazendo-lhe o que é de seu agrado: um pacotinho de doces. Ção foi doceira das boas – Minha patroa que o diga! De marmelada a pudins, dava um baile nas casas onde ganhava o sustento como doméstica. Além do tanque e ferro de brasa, eram horas a fio mexendo tacho de cobre, goiabada cheirando longe, Ção… Conceição. De menina, era o roçado. Cinco irmãos, três machos, ela e a irmã na enxada e foice, fora a lida da casa. A mãe morrera de parto, com a filharada choramingando, sem entender a partida. Ficaram assim, os cinco miúdos e o pai, amontoados, numa casa de pau a pique, plantada entremeio a umas baitas de árvores e um riachinho cantadô. O pai, sisudo e de poucas falas, logo pôs pra correr os que pediram pra adotar as crianças: “Não e não. Filho é gato, que se põe num saco, e manda longe?” Duas meninas e três machos, ali, na dureza, no sim senhor, não senhor, que por dê cá aquela palha, o maludo trancava a cara e não poupava sopapos nem vara de marmelo. Mal o sol piscava os olhos, o dito cujo tossia atiçando suas crias. Café de rapadura com mandioca frita, enxada nas costas, cada qual com seu empreito, pedaço de chão medido e conferido de tardinha. Coitado do infeliz que deixasse matinho qualquer em riba do chão. Um deles, o irmão mais velho, ganhara do padrinho uma viola e, à noite, mesmo arreado de canseira, espaventava o paradeiro, arranhando as cordas, com voz chorosa, Ção era quem mais gostava. Assentada ali, agarradinha, cantarolando com ele:

“Sertaneja se eu pudesse

Se papai do céu me desse

Um espaço pra voar…

Que boniteza, meu Deus! Àquela hora, sua alma parecia coisa que voava, sem rumo, leve, que nem passarinho. Outra hora, era o contrário; pegava-lhe um nó no peito, que nem o clarão da lua desatava. Enquanto isso, o pai, mascando fumo, olhava enviesado para as filhas, sempre no mesmo rompante: “segura a honra, cuidado com a honra! Homem é bicho de se matar com pedra; comeu que seja, lambe os beiços e cai fora, arrotando vantagem”. Conceição, encabulada, matutava: Jesus Cristinho, o que vem a ser honra? A irmã, sonsa e dissimulada, calava. Foi assim até que um dia o irmão do meio chamou Ção, segredando-lhe baixinho: “É o troço entremeio as pernas, fica lá bem escondido” – Falou, passando a língua nos beiços. Assustada, a mocinha apalpou e sentiu. Ah! Então era isso… Deste dia em diante, olha o rapazinho levantando no tardão da noite, às escondidas, lisando, sorrateiro, as coxas da irmã. Boba é que Ção não era! Não pôs a boca no mundo, muito menos fez alarde. Armou-se de um porrete, escondeu-o no jeito, uniu sua cama com a da irmã. Um só ameaço de porretada, na moleira, pôs o desgramado pra correr. Uma noite – que essa hora sempre chega – todos acordaram a um só tempo com o velho num ronco feio, revirando-se nas palhas. Nem vela na mão deu tempo. Juntos, a boca seca, benzeram-se rezaram a Ave-Maria. Ção chorou desatado. Gostava do velho, seu pigarro, seu café de rapadura. Três dias, três noites, os cinco, com tirinhas pretas na roupa, voltam para o cabo da enxada, mataréu pedia foice. Tempos depois, de tanto calejar as mãos com pouco resultado, o irmão mais velho, já apontando pelos na cara, ajeitou os trecos numa carroça e, juntos, vida nova na cidade.

A venda do terreno rendeu-lhes, em troca, casinha ajeitada e cada qual seguiu seu rumo, serviço é que não faltava: as moças, emprego em casa de família, ordenadinho ralo, mas já servia; tinha o de comer e ainda sobrava para um vestido novo e sandálias de abotoar. Para os machos, a novidade das raparigas feiticeiras danadas de carinhosas, velhacas como elas só. Conceição virou moça bonita, todo mundo falava. Morena jambo, olhos claros, rasgados, e um par de pernas – que Deus me ampare – só formosura! A irmã, desbotada, caladinha, muito das rezadeiras, era da casa pra igreja e só. Tinha a tal beleza por dentro que, nesse mundão do diabo pouco acrescenta. Ção, Conceição, acha a cidade uma maravilha! A patroa é sovina, serviço pesado, mas o que é peso na mocidade? Nos bailes, rodopiava de roupa nova, uns moços atrevidos querendo dançar colado, hora em que ela se lembrava o que lhe contara o safado do irmão do meio. Moça virgem é o que era, sim senhor! Por esse tempo, num parque com roda-gigante, conheceu Zé, o Izé, moço de fino trato que lia e escrevia com letra boa também, olhou, olharam-se. E foi na roda-gigante, bem no alto, que riram, riram muito quando ouviram Cauby Peixoto, a voz bonita saindo do alto-falante.

Conceição, eu me lembro muito bem

Vivias no morro a sonhar

Com coisas que o morro não tem

Foi então que do namoro ao casamento andou rápido. Vestido branquinho, buquê de manacá, os dois de automóvel – era a primeira vez -, tudo um sonho, Zé impertigado, casinha nova, mulher caprichosa, tudo nos trinques, flor no cabelo, banho tomado pra esperar o marido. Ção empinava a barriga, Zé todo prosa, com pouco seria pai. E foi. Quatro machos que nem ele, um por ano. Conceição alegre que nem passarinho em tempo de fruta no pé. Da vida na roça, do pai, lembranças enfumaçadas; do irmão do meio, certa mágoa, mas, com o tempo… O que é que o tempo não desbota, esmorece? Zé, bom chefe de família, fartura na mesa, eis senão quando recebe proposta: Trabalhar no Belo Horizonte, serviço de chefe, ganhame dobrado, mais conforto pra família, “brinco de ouro pras suas orelhas, minha nega” – falou pra Conceição. E partiu. A princípio tudo certo, fora a saudade doendo, noite afora, longe do marido. Mas e os sábados? Coração aprumadinho na janela, os filhos também. Era o trem apitar na curva, o gesto de mãos abanando na ânsia da chegada. Conceição bonitona, meninos sadios, vida resumindo-se nos sábados e domingos, com frango ensopado e doce de leite. Mas, companheiro, tudo na vida tem o “mas”. Com o tempo, Zé começou a ficar esquisito. Chegava caladão, sem paciência, queixando carestia, o que seria aquilo meu Deus do céu? Cadê o chamego? Agrados para os meninos? Ção caprichando na lida, na camisola perfumada, Zé virado pro canto: “to cansado, dor de cabeça”… Depois, vindas espaçadas, desculpas, até que sumiu de vez. Assim, sem mais nem menos, sem rastro nem poeira. Conceição em lágrimas, boatos fervendo, morrera matado? “Mãe, cadê o pai?” “Cadê ele, mãe?” Conceição, sozinha. E os irmãos? A irmã, a tal desbotada, caladinha, fisgou viúvo rico, se mandou pra Goiás. Os machos, a essa altura, cada qual pegou seu rumo; o da violinha morreu ofendido de cobra; já o caçula, um raio torrou sem dó. E agora? Sozinha… O irmão do meio soube do sumiço do cunhado e apareceu serelepe, prestativo. “Vamos, vamos, você e os meninos, crio todos no bem bom, na macieza”. Ção, Conceição, mandou-o para o inferno, arregaçou as mangas, foi à luta. Pegou roupa pra lavar, fez sabão, catou ferro, fritou tripas de galinha ganhada de esmola no abatedouro. Viu os filhos comerem com boa boca feijão puro e um ovo partido em quatro pedaços. Os meninos… caixa de engraxar debaixo do braço, caixote nos ombros, olha a manga, quem quer comprar abacate, almeirão, cebolinha? Quem ? Meu Deus, cadê nosso homem? Cadê o Izé, meu Deus? E o Zé amoitado, longe do Belo Horizonte, nos braços de um rabicho cria de zona, medonha no chamego, corpo de dar inveja à Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot. O trem passando, o apito, o tempo abaixando areia no fundo do copo. Aos trancos e barrancos, filhos crescidos, abandono, coisa morta. Ção continuou a labuta, estimada nas casas por onde passava, tanque, fogão, ferro, tacho, varrer, lavar. Assim viu os meninos um a um se aprumando, enquanto ela, devagarinho foi se curvando, encrencou as juntas , aprumou-se em bengala. Sogra não é parente, esbravejou uma das noras, e as outras responderam: Amém. Izé? Fumaça… “O fumo vem, a chama passa”. Que fosse pro inferno, se é que lá já não estivesse. Decidida, quis viver no asilo, de onde me diz: “aqui é bom, tem sossego, alegria”. Hoje, companheiro, sei que ela vai fazer cara feia pra mim. Esqueci de trazer-lhe o pacotinho de doces.

  • Conto finalista na FLIP LITERÁRIA DE PARATI/RJ 2014
Maria Lúcia Mendes

De versos: Instantes

Hoje apresento a vocês mais um autor publicado pela Editora Ramos, através do COLETIVO LITERÁRIO 2020. Pedro Nilo de apenas 20 anos, estudante de medicina pela Universidade de Itaúna, estreia na literatura com um livro de poemas e afirmo que se trata de uma grande promessa para as letras itaunenses.Vocês terão a oportunidade de conhecer um pouco do autor e ler os textos de amigos elogiando os poemas publicados no livro. Prestigiem nossos talentos, curtindo, comentando, compartilhando e comprando seus livros. A literatura somente se concretiza quando um autor é lido. (Toni Ramos Gonçalves – Editor e escritor contista).

Toni Ramos Gonçalves (à esquerda) entregando o primeiro livro de Pedro Nilo

“A poesia é a “mortal beleza” (necessária) que renova o olhar para a realidade. E precisamos que, aliado ao da experiência, o olhar jovem incida sobre nossas virtudes e nossos vícios. Porque eles serão, portanto, duplamente renovados. Os poemas deste livro encontram raivosos e intimamente os velhos maus hábitos do ser humano… E também celebram, com a intensidade da descoberta dos próprios caminhos, os bons sentimentos que ainda persistem nesse mesmo ser, às vezes perdido em suas conexões com o outro. E para que lê-los? Por que nos ler sob a perspectiva do outro permite compartilhar e multiplicar as descobertas sobre nós mesmos. Viva a poesia! E estaremos, então, vivos.” (Pedro Augusto Camargos Diniz – professor de literatura).

Nesta singular coletânea de poemas, Nilo faz transbordar aos nossos olhos a sua essência e seu inconsciente de maneira magistral. De sua mente, faz surgir fragmentos de delicadezas, esperanças, belezas, indignações e espantos diante do mundo que nos cerca. De suas palavras, às vezes duras às vezes cálidas, nascem poemas que transmitem a essência de um coração puro e verdadeiro, não tolhido por regras de moralidade hipócrita, pelas quais ele demonstra especial aversão. Oscilando entre cruéis e inocentes, os poemas nos transmitem o sentimento de um compromisso de absoluta entrega à verdade, ou de busca dela. Sua obra nos convida a uma jornada tanto de fascínio quanto de angústia gerados pela busca da pura essência humana, do sentido da existência, como no poema Solitude quando diz “Calmamente, tudo parece fazer sentido/ e posso ver significados tão inequívocos/ nas mais profundas sensações daquele instante”. Estes poemas nos fazem sentir menos deuses e mais humanos.” (Charles Anacleto).

Sim, instantes de versos são também diversos. Mas o problema dessa construção é que não julgo os versos, tematicamente múltiplos, breves. Alguns me parecem até bem demorados. Basicamente, o que seu autor quis dizer a você é que se trata de uma variedade de momentos escritos em versos. Daí, De versos: Instantes. Achei que fosse o melhor modo de transmitir essa ideia. Pode ser também que tenha me faltado qualquer outra criatividade mais prática. Assim como, em relação a perspectivas ópticas, um simples ponto pode ser um núcleo atômico, uma célula, uma pessoa, uma cidade, um continente, um planeta, uma estrela, galáxia ou até um buraco negro; a vida toda também não é nada mais que um encadeamento de instantes. Todos eles são emoções após emoções, conectados sim, não nego, mas também potentes demais para serem dependentes uns dos outros. Cada instante é intenso o suficiente. Se a intensidade é boa, esse momento deixará saudade em nós. Mas se é ruim, parece não passar nunca! Momentos existem e a realidade sentimental se resume a esses pequenos pontos infinitamente grandes de sensações. (Apresentação do livro por Pedro Nilo).

Pedro Nilo

VÁCUO POÉTICO – (poema de Pedro Nilo)

E se, ao fim da folha

 ainda resta espaço à criação,

que dirá o poeta?

Que espaço vazio é tempo desocupado

por letras apagadas que ainda acenderão…

Pedro Nilo Vilaça e Silva, natural de Itaúna, MG, tem apenas 20 anos e é apaixonado por artes e literatura. Desde criança gostava de criar e tentava escrever suas próprias histórias. Formou bandas com amigos durante a juventude, tendo papel importante como letrista. Aos 17 anos, iniciou os estudos em Medicina, mas continuou sua produção literária, até então, escondida dos olhos da grande maioria das pessoas. Agora, em “De versos: Instantes”, seu livro de estreia, Pedro finalmente exterioriza suas criações.

MÁRIO MATOS – O PIONEIRO DA LITERATURA ITAUNENSE

Por Toni Ramos Gonçalves

É sabido que Itaúna não se preocupa em preservar sua memória e muito menos busca levar ao conhecimento do povo itaunense os grandes escritores que nasceram na cidade e conquistaram fama além de nossas fronteiras.  Lembram-se daquele ditado? Santo da casa não faz milagres. Então, apesar de boa parte da população brasileira ser preconceituosa com toda arte tupiniquim (cito aqui literatura, teatro, música e cinema), eu simplesmente adoro e faço questão de prestigiar toda arte made in Brazil e principalmente a regional, sem querer ser bairrista.  

Na fundação da Academia Itaunense de Letras (eu fui um dos fundadores e primeiro presidente na gestão 2015-2017), um dos principais objetivos era preservar a memória de nossa literatura. Exemplo disso foi a escolha para patrono da AILE o nome de Oscar Dias Corrêa (sugerido por Wagner Andrade, poeta itaunense). Ele foi o único itaunense até o momento a ocupar uma vaga na Academia Brasileira de Letras. Em minha opinião, uma justíssima homenagem. Porém, essa informação poucos itaunenses conhecem. E assim acontece com outros escritores desta cidade.

Pois bem, caro leitor, por isso torna-se necessário levar esse conhecimento a todos, numa forma de incentivar novos talentos e assim mostrar que podemos sim ser destaque no cenário nacional. Por eu ser muito curioso, há muito tempo pesquiso sobre quem seria o pai da literatura itaunense – aquele que publicou seu primeiro livro. A princípio, em primeiras conversas com outros escritores, eu disse que provavelmente o pioneiro seria Mário Matos.  Como sempre fui questionado e ignorado pelos letrados, algo normal. Bem, como eu não sou muito de dar atenção a críticas, continuei minha pesquisa e conclui até o presente momento que o pioneiro da literatura itaunense é Mário Matos. Pode ser que futuramente apareça algum outro documento que prove o contrário, pois a história quando pesquisada a sério pode resultar em surpreendentes revelações.

Discursos (1927) – primeiro livro de Mário Matos,
segundo o colunista Cosme Silva em seu artigo de jornal.

Nesse momento, não vou me aprofundar em detalhes sobre a vida e obra de Mário Matos, pois tenho pretensões de escrever sua biografia e publicar pela Editora Ramos.

Mário Gonçalves de Matos nasceu em Sant’Ana do São João Acima (atualmente Itaúna – MG), em 23 de setembro de 1891 (ou em 1888, já que faleceu com 78 anos). Dedicou-se, com êxito, ao jornalismo, à literatura e ao teatro. Escreveu em Itaúna, 1912, o teatro de críticas aos costumes, à revista “A chegada do Presidente”. As revistas “Seu Anastácio chegou de viagem” no ano de 1914, “Itaúna em fraldas de camisa”, de 1920, e a bela opereta “Cigarras do Sertão” em 1925.

Foto gentilmente cedida por Charles Aquino

O seu livro “Discursos” foi publicado em 1927, seleta de discursos, ensaios e conferências literárias, que lhe valeu a eleição unânime para a vaga de Diogo de Vasconcelos na Academia Mineira de Letras, que chegou a presidir por quatro biênios, a saber: 1935-1936; 1937-1938; 1955-1956 e 1957-1958. Em 1935 publicou um ensaio crítico sobre Afonso Arinos, intitulado “O último bandeirante”. Completa sua bibliografia os seguintes livros: Machado de Assis, de 1939; Último canto da tarde, (poema) de 1938; O personagem persegue o autor, (ensaio) de 1945.

Foto gentilmente cedida por Charles Aquino.

Mário Matos durante sua permanência no Rio de Janeiro enquanto cursava Direito (entre 1918 e 1920) auxiliava o inesquecível ébrio de nossa literatura Lima Barreto, publicando suas crônicas no Jornal ABC (pesquisadores ainda buscam informações mais detalhadas sobre a revista ABC). Também foi elogiado por Carlos Drummond de Andrade pelo seu livro “A casa das três meninas” (1949). Segue o comentário do ilustre poeta:

“Os contos da “Casa das três meninas” são uma delícia. Gostaria de reencontrar nas livrarias este volume para oferecê-lo de festas aos amigos, no ano novo. Quem o possui, aconselho que o abra e leia ao acaso uma das histórias, e terá a impressão de estar vendo e conversando Mário Matos, em seus momentos mais encantadores (…)

Ele foi braço direito e responsável pelos discursos de Benedito Valadares (Político brasileiro e natural de Pará de Minas).

Mário Matos faleceu em Belo Horizonte em 28 de dezembro de 1966, deixando um grande legado na literatura e política. Em 05 de janeiro de 1967, Ivan Lins fez uma homenagem na Academia Brasileira de Letras para ele, publicado no dia seguinte no jornal Correio da Manhã.

Foto: Internet / Correio da Manhã

Foi o seguinte discurso do acadêmico Sr. Ivan Lins (reprodução do jornal):

Grande claro é o que ocorre, nas letras de Minas e do País, com o falecimento de Mário Matos. Escritor de altos méritos, a ele se deve a um dos mais penetrantes ensaios sobre Machado de Assis, onde estuda o homem e a obra, explicando o autor pelos seus personagens.

Notável também é seu livros sobre Afonso Arinos, por ele publicado em 1935: O Último Bandeirante, onde revela muitos traços significativos que haviam escapado a fina obra de arte e gosto consagrada, ao escritor mineiro em 1922, por Tristão de Athayde.

Conversador admirável, era capaz de manter, horas a fio os seus interlocutores presos a magia de sua palavra.

Depois de ter sido deputado federal, havendo grampeado, no Rio, grande círculo de amigos e admiradores, retirou-se para seu estado, onde exemplarmente exerceu a magistratura, tendo sido um dos mais respeitados desembargadores do Tribunal de Justiça de Minas.

Foi também um jornalista de valor e um dos mais destacados membros da Academia Mineira de Letras. Pela sua obra e pelo seu excepcional talento, Mário Matos é dos muitos elementos não só da Academia Mineira de Letras, como de outras Academias Estaduais do Brasil, que já deveriam ter tido ingresso na Casa de Machado de Assis, que a timidez, o distanciamento do Rio de Janeiro e demais percalços ligados às eleições desta casa nos tem nos privado da glória e do prazer de seu convívio.

Poeta lírico, tendo composto belos sonetos com pseudônimo de Alberto Olavo, no qual deixara transparecer os seus entusiasmos pelos epígonos do nosso parnasianismo, aderiu, de certa forma, ao modernismo, dizendo em 1929, com malícia mineira, ao responder um inquérito promovido pelo Diário de Minas, ser o soneto um dos entraves a economia brasileira. Ninguém calcula o desperdício de energia que um homem desbarata para fazer um soneto parnasiano. E se o soneto se torna célebre, persegue o autor como um remorso vivo.

Como salientou Carlos Drummond de Andrade na crônica que lhe consagrou no Correio da Manhã, de 30 de dezembro último, os contos de Mário Matos enfeixados na Casa das três meninas, são de uma delícia a quem os ler terá a impressão de estar vendo e conversando com Mário Matos em seus momentos mais encantadores – o mesmo que, ainda a pouco, dizia em conversa, comentando as bolsas econômico-financeiras em experimentação no país: “Antigamente eu comprava e pagava, hoje, não compro e continuo pagando…”

No volume de Vivaldi Moreira: Figuras, Tempos e Formas, que tive o prazer de oferecer a Academia, em agosto do ano passado (1966), o brilhante criador de Minas em foco, estuda Mário Matos em três lúcidos ensaios que bem o definem como homem e escritor: Mário Matos em três tempos. Rendendo homenagem ao seu talento de escritor e a sua formação moral de mineiro da velha guarda, é com o mais sincero pesar que registro seu falecimento, o qual representa imenso desfalque na intelectualidade brasileira de nossos dias.

***

A sua vida e obra são extensas. É preciso pesquisar e buscar mais informações sobre esse grande escritor. Além dele existem outros grandes talentos itaunenses que precisam ser relembrados pela sua ótima qualidade literária.  Por isso, convido aos curiosos, estudiosos, historiadores, instituições acadêmicas a buscarem essas informações em busca do merecido reconhecimento.

Agradeço o apoio dos amigos Charles Aquino e Patrícia Nogueira pelas informações gentilmente cedidas, que ajudarão na composição da mencionada biografia desse pioneiro da literatura itaunense.

Toda informação será bem vinda!

No mais, até breve!!!

Foto da internet. No livro A história de Itaúna tem foto idêntica.

REFERÊNCIAS:

História de Itaúna Volume 1 (1986) – Miguel Augusto Gonçalves de Souza

Glycose no sangue (1936) – Tese de Oromar Moreira

A messe de um decênio (1932) – A. A. de Lima Coutinho

Lima Barreto – Triste Visionário (2017) – Lilia Moritz Schwarcz

Tributo a Rubem Fonseca

Por Toni Ramos Gonçalves

O meu mundo não será mais o mesmo.

Digo isso, não por estar enclausurado em casa há quase trinta dias, devido a Pandemia do Covid-19, que veio mostrar a toda humanidade a nossa fragilidade e nos forçar a repensar certos valores capitalistas.

Na tarde, do dia 15 de Abril de 2020, via redes sociais, li a notícia da morte do escritor mineiro, Rubem Fonseca de 94 anos, vítima de um infarto. O baque foi imediato. Não queria acreditar. Motivo? O meu estilo realista de escrever eu devo a ele.

Rubem Fonseca
Foto: Internet

O estilo fonsequiano influenciou muitos escritores de minha geração que em algum momento no passado o leu. Isso pode ser conferido no estudo de doutorado “Escritores e assassinos – urgência, solidão e silêncio” em Rubem Fonseca, do escritor Tony Monti onde o pesquisador aponta Fonseca, nascido em 1925, em Juiz de Fora (MG), como uma importante referência para a literatura que se faz hoje no Brasil:

 “Ele inaugurou no Brasil um modo literário extremamente urbano e violento. Existem aqueles, como Patrícia Melo, de O Matador, que declaram essa fonte, mas uma série de outros autores têm Fonseca entre suas fontes literárias, ainda que não o declarem explicitamente.”

Meu primeiro contato com a obra de Rubem Fonseca foi no ano de 1990. Eu finalizava o ensino médio e preparava-me para prestar o vestibular para a faculdade de Engenharia Mecânica (que passei, mas não consegui me matricular devido ao alto custo da mensalidade). Um dos livros indicados para o vestibular era Vastas emoções e pensamentos imperfeitos (1988) de autoria dele. Peguei o livro na biblioteca do CESU, quando esta funcionava do prédio do SESI. Era um dos meus lugares favoritos na juventude.

Foto: Do autor

Até aquele momento eu lia somente livros fantásticos e estrangeiros como obras de Júlio Verne, Alexandre Dunas, Sidney Sheldon, Agatha Christie e não tinha interesse nenhum na literatura brasileira. Sempre houve preconceito com a nossa arte escrita (Ainda existe, infelizmente).

A leitura do livro de Rubem Fonseca foi um nocaute. Nunca havia lido algo tão explícito. Com seu estilo direto e nada formal marcado por um cotidiano violento, às vezes gratuito, mostrava o submundo do crime, as mazelas humanas. Na narrativa usava um vocabulário repleto de palavrões, cenas eróticas, além de descrever brutalidades e insanidades imagináveis (tudo isso você confere num único conto: O cobrador, de 1979). O escritor me conquistou logo nas primeiras páginas. Não que eu fosse sádico.  Aquela forma de narrar nunca havia lido nos livros de literatura tradicional. Mas, nem todos gostaram deste estilo. Criticado pelos conservadores e ofendidos (ele não poupava ninguém) o livro Feliz Ano Novo (1975) foi censurado em 1976 sobre a alegação de atentado à moral e aos bons costumes, além de ser uma incitação à violência. Somente em 1980 liberaram a obra. Mas isso, não o abalou.  Mesmo criticado viu com o passar dos anos alcançar um grande número de leitores.

Nesse sentido o escritor Tony Monti em sua pesquisa nos diz:

“A violência faz parte de uma série de práticas sociais. Ler relatos sobre agressões, semelhantes aos escritos por Rubem Fonseca, pode ser uma maneira de nos fazer experimentar a agressividade sem nos arriscarmos nas consequências da agressão na vida concreta.”

A verdade é que aquela realidade retratada em sua obra era a que eu vivia desde a infância: bruta e miserável. Naquela época, eu já me arriscava a rabiscar algumas estórias. Então tive a ideia: Por que não escrever a minha própria realidade?

A partir disso, busquei outros livros do autor. Agosto (1990) foi o segundo livro que li. E não parei mais. Sempre que visitava uma livraria (sempre gostei de ter minha própria coleção) eu buscava um inédito do autor. O único livro que não me cativou foi O Selvagem da Ópera (2011). Merece uma releitura.

  Em sua bibliografia podemos citar vários livros de sucesso como: Feliz Ano Novo (1975), O cobrador (1979), Caso Morel (1973), A grande arte (1983), Agosto (1990). O último livro dele foi Carne Crua (2018).

Foto: Do autor

A criatividade do autor nos presenteou com personagens inesquecíveis como o criminalista Mandrake do livro A grande arte (1983), o poeta assassino em O Cobrador (Quem deve quem???), o assassino profissional em O seminarista (Que no seu código de honra não matava anão).

Mesclou conflitos sérios, absurdos e hilários (Leia o conto O Bordado, do livro Pequenas Criaturas, pois nunca ri tanto na vida).

Seus diálogos, afiados e infalíveis, com o passar dos anos, muitos de seus fãs o denominaram como o Tarantino brasileiro (Quentin Tarantino, grande roteirista e diretor de filmes americanos).

E cito algumas de suas frases memoráveis:

“Eu sempre vivo dizendo: escrevo para me vingar.”

“Adote um animal selvagem e mate um homem”.

“Quando a dor é muito grande o sofrimento é silencioso.”

“Um ladrão é considerado um pouco mais perigoso do que um artista.”

“Para seu inimigo não deseje o mal, planeje-o.”

“Não existem coisas erradas e coisas certas, é tudo a mesma merda.”

“Rir é bom, mas pode foder a vida de uma pessoa.”

“Escrever foi a mais agoniante de todas as lutas que enfrentei.”

“Quando não se tem dinheiro é bom ter músculos e ódio.”

“Ler nos torna melhores, permite que a gente entenda melhor o outro e a nós mesmos.”

Diferente dos escritores atuais, Rubem Fonseca teve uma vida reclusa. Em relato recente a escritora Nélida Pinõn revelou ele era uma pessoa muito educada, diferente daquilo que escrevia em suas ficções (mentir é a arte do ficcionista), onde não se intimidava em mostrar todo o abismo da maldade humana.

Para nós que não o conhecíamos em pessoa física, continuará sempre vivo, pois as letras não morrem, se eternizam. Por gerações e gerações.

Muito obrigado pela ótima companhia nestes últimos trinta anos.

Vai em paz, mestre!!!

Minha coleção de livros de Rubem Fonseca
Foto: Do autor

Na escuridão de nosso olhar

Por Toni Ramos Gonçalves

Bento abriu os olhos, ao primeiro alarme do despertador. Buscou os óculos sobre o criado-mudo, verificou as horas no celular e o desativou. Sentou-se à beira da cama, com seus cinquenta e dois quilos, ainda sonolento. Sentia uma leve dor de cabeça. Sobre a escrivaninha, uma garrafa vazia de vinho tinto chileno.

Levantou-se, calçou os chinelos de pelúcia do Bob Esponja, arrastou-se até o banheiro. “É hoje, é hoje…”, pensava insistentemente, enquanto a água da ducha escorria pelo seu corpo extremamente magro e longilíneo, até ser engolida pelo ralo.

Após o banho, dirigiu-se ao quarto do pai, de noventa anos, como fazia todas as manhãs. Encontrou-o ainda dormindo, algo raro a cada dia. Fazia anos que precisava de cuidados frequentes. Perdeu a conta das noites em claro, durante as crises alucinatórias do pai, ainda mais frequentes, desde o falecimento de sua mãe, havia poucos meses.

Na cozinha, preparava o café, sempre conferindo as horas no relógio no pulso ou no outro pendurado na parede. A lentidão do ponteiro, o tictac irritante, os segundos infinitos e aquela inquietação crescente que aos poucos dominava sua mente e corpo.  Às vésperas de completar cinquenta e cinco anos, ainda vivia na casa dos pais. Pronto o café, bebeu um gole sem adoçante, buscando diminuir um pouco os sintomas da ressaca.

De volta ao seu quarto, vestiu seu terno preto: impecável e acima de qualquer suspeita.  Verificou as poucas mensagens no celular. Nenhuma valia a pena responder. Ouviu o pai se levantar e o silêncio indicava que ele acordara lúcido. O latido do cão no jardim anunciou a chegada da cuidadora de idosos. Olhou novamente o relógio no pulso e constatou um atraso de cinco minutos. Pediu a bênção ao pai, carinhosamente, beijando-o na face; exigiu da enfermeira mais pontualidade e a orientou sobre os novos remédios indicados pelo médico. Disse também que a faxineira viria naquele dia para a limpeza semanal e que ele chegaria mais tarde devido a um compromisso inadiável e sem hora para terminar na cidade vizinha.

Um cachorro vira-lata imenso, preto, focinho branco e orelhas caídas, o esperava na porta que dava acesso à garagem. O rabo balançando, de um lado para outro, buscava o carinho do dono. Limitou-se a afagar a cabeça do cão.

Bento atravessou o que restou do jardim da mãe, sem notar as rosas que desabrocharam durante a madrugada, e nem o céu azul, que anunciava mais um dia quente de verão. Pelo retrovisor central do carro, ajustou a boina cinza italiana, para proteger a calvície.

Decidiu ir pelo trajeto mais rápido para o local marcado para o encontro. O trânsito mais lento do que nunca, naquela hora do rush, servia apenas para irritá-lo. Dava golpes no volante.

“Trânsito de merda e motoristas estúpidos”, esbravejava.

A lentidão, o calor incomodando, o suor a escorrer pela testa, ligou o ar- condicionado. Irritou-se com dois motoristas, buzinando e distribuindo novos xingamentos, o braço magro para fora da janela, indo do punho cerrado ao gesto obsceno. Sair ou entrar numa grande metrópole às vésperas de um feriado prolongado era um teste de paciência.

No final da tarde do dia anterior, acomodado na poltrona de sua sala refrigerada na multinacional onde trabalhava como diretor administrativo havia mais de vinte anos, seu celular tocou e na tela surgiu o nome do contato que conhecia.

“Boa tarde, meu querido”, saudou a voz masculina do outro lado.

“Boa tarde, Calebe”, respondeu num tom seco.

“Pelo visto continua chateado.”

“Por que não estaria?”

Houve uma breve pausa.

“Quero me desculpar pelo problema da última encomenda e oferecer uma cortesia em compensação. Aliás, você e seus amigos são meus melhores clientes. Preciso me redimir.”

Respirou fundo, passando a mão na barba grisalha. Avistou pela janela envidraçada o alto do Corcovado onde o Cristo Redentor vigiava de braços abertos. Um avião cortava o céu azul.

“Fala”, continuou num tom de voz mais suave.

“Já tenho o que o senhor quer, doutô.”

E ali, estava ele, a caminho do local de encontro que ficava numa rodovia pouco movimentada, a duas horas da capital. Chegou faltando cinco minutos para o meio-dia, verificou isso no relógio digital do painel do carro.  Era um restaurante discreto, à beira da estrada, deteriorado pelo tempo, onde no passado se vendia comida caseira para os viajantes e caminhoneiros que por ali passavam, antes da construção da nova rodovia.

Um homem grandalhão, com uma jaqueta de motoqueiro, estava atrás do balcão. Com o olhar mostrou um cliente sentado numa mesa no fundo do bar que estava vazio.

Calebe era um homem baixinho e feio, o cabelo comprido tingido, um rosto inchado e vermelho que o recebeu com um sorriso amarelo. Cumprimentaram-se sem aperto de mão e evitaram o contato visual além do necessário.

Sentaí, doutor! Como foi a viagem?”, disse com uma voz de fumante.

Como não houve resposta foi logo jogando uma maleta sobre a mesa e retirou de dentro um álbum com inúmeras fotos daquilo que era ofertado. O olhar de Bento saltava de uma página para outra, as mãos trêmulas, admirado com o produto oferecido.

“Mercadoria boa, né doutô?”, disse com um sorrisinho maroto. “Muita variedade… Atende a todos os gostos.”

Não houve resposta de imediato.

“O preço é o mesmo?”, disse após conferir todas as páginas.

“Que isso, doutô? Assim você me quebra. Produto assim é mais caro, se é que me entende”, disse dando uma piscadela de olho.

“Sei… E a cortesia? Está aqui também? Tem foto?”, disse folheando o álbum novamente sem saber o que procurar.

O homem deu uma risada estranha, balançando a cabeça negativamente.

“Tá me tirando né, doutô? Você é cliente especial. O produto é novo, zero bala. Guardei justamente para você”, disse colocando uma chave sobre a mesa. “Sem mágoas, doutô, pelo incidente anterior? Fechamos no mesmo preço e mantemos o contato com seus amigos com um acréscimo de dez por cento?”

Bento desceu seus olhos até a mesa e fixou-os na chave.

“Sim… Sim… Lógico.”, concordou enxugando o suor que escorria da testa com um lenço que retirou do bolso da calça. “É justo!”

 “Está lá no fundo. Pode ir lá. Você já conhece o caminho”, disse Calebe arrastando a chave até ele.

Levantou-se rapidamente, olhou as horas no relógio de pulso e ofegante dirigiu-se aos fundos do estabelecimento. Ao sair pela porta voltou-se ao ouvir a voz de Calebe.

“Não tenha pressa, doutô”, disse enquanto acendia um cigarro.

Atravessou um caminho cheio de entulhos e outras coisas que para nada mais serviam. O barracão ficava no fim do quintal onde com habilidade abriu a porta fechada a chave. Uma nesga de sol penetrava pela janela e se deparou com uma menina ruiva extremamente magra e frágil sentada na beira da cama, olhando para o chão, contemplando o nada. Se tivesse treze anos, era muito. Ao vê-lo entrar, ela ficou de pé. Os cabelos caindo sobre o rosto. Vestia um pijama rosa curto que mal escondia as novas formas de seu frescor adolescente. O homem fixou seu olhar no rosto cheio de sardas ou espinhas e principalmente nos pequenos seios que ainda brotavam.

“Olá”, cumprimentou-a, após verificar mais uma vez as horas e descobrir que tinha tudo ainda sob seu controle. “Como é seu nome?”

“Pode me chamar de Maria”, respondeu a menina em voz baixa e cabisbaixa.

“Maria, tudo vai ficar bem”, disse enquanto a porta vagarosamente fechou atrás de si.

O sol já se punha no horizonte, quando a porta voltou-se a abrir. Bento parou visualizando o horizonte vermelho. Após alguns segundos olhou mais uma vez para o interior do barracão e viu a menina acabando-se de vestir. Puxou a carteira do bolso da calça, e por compaixão foi retirando algumas notas no intuito de agradá-la. Nisso a menina veio na sua direção, com um semblante apavorado.

“Não precisa, não precisa”, dizia enquanto tentava recolocar o dinheiro de volta na carteira. “Calebe, meu pai já tem tudo acertado com você. Pode ir embora. Vai… Está tudo certo.”

E dizendo isso Maria fechou a porta.

Foto: Pexels

Pedra bruta

Por André Alvez*

A nossa casa ficava nos pés de uma montanha. Em volta, muito verde, um campo florido e a plantação de arroz.

Num canto da mata, de repente, nasceu um punhado de verde. A mãe disse que era praga, mas logo viu o erro, eram girassóis.

“Você, menino, cuide do arroz e esqueça o girassol, isso não dá dinheiro, não é alimento, só serve para ficar cuidando o sol, é uma planta besta.”

Mas eu gostava do girassol.

O pai trabalhou cinco anos sem parar, juntou um bom dinheiro, à custa do suor de todos nós, minha mãe, meus irmãos e principalmente o dele – o meu pai – labuta severa retratada nas mãos calejadas e a testa marcada de cansaço, pares de rugas acima das sobrancelhas escuras, caminhos de gotas grossas de suor.

Na hora do almoço, o pai reunia todos em volta da mesa; minha mãe, calada e atenta, se postava na outra ponta da mesa, contemplando o silêncio respeitoso em nome de Deus.

O pai era o único que sabia ler, ou ao menos assim nos fazia crer, abria a bíblia numa página qualquer e contava sempre o mesmo sermão, algo sobre glorificar o alimento e agradecer ao pai do céu pela graça alcançada.

Nunca entendi muito bem: éramos nós que acordávamos cedo, o dia todo trabalhando, as mãos doloridas pelo cabo da enxada, para no fim somente Deus ser elogiado.

Falei disso para Neidinha e ela me deu uma bronca: “Se Deus não tivesse lhe dado pés para caminhar, olhos para ver e mãos para trabalhar, você não seria nada”.

Estranho. Deus também deu tudo isso para carrapatos e eles se tornaram uma praga. Outros bichos também, todos os outros, mas nunca gostei dos carrapatos. Foram eles que fizeram doença no cavalo baio, um bicho doce e bom, trabalhador, pobre fim teve o Jeremias.

Por que Deus não cegou e tirou as patas dos carrapatos? 

O trator já não funcionava bem no fim da colheita, mas agora o pai tinha vendido muitas sacas de arroz e, com o dinheiro, podia comprar um trator novo.

O tempo todo nos alimentamos com as sobras do arroz e peixe pescado no riacho, que ficava bem perto, depois dos girassóis. Abençoado riacho. Além do alimento, nos dava o sabor do banho e levava para longe o cansaço.

Era difícil, mas, nos fins daqueles dias, o pai quase conseguia sorrir.

A mãe trabalhava muito, dava conta dos seis filhos, da casa e ainda ajudava o pai na lavoura. 

Eu nunca tive nenhuma vantagem por ser o caçula, também acordava cedo, junto com todos, nas mãos a enxada, pouco depois do chá com pão de milho, adorável alimento feito pela mãe, de madrugada, antes do cantar do galo, ainda na luz da lamparina.

Até pouco tempo, imaginava que a mãe nunca dormiu.

Por aqueles dias, logo depois da tempestade, apareceu um homem com um diamante nas mãos. Era uma pedra bruta, sem brilho, sem vida.

A mãe não gostou do que viu, mas o visitante não se importou com a cara feia da mulher que lhe abriu a porta, caminhou rumo ao pai nos passos caprichosos de quem carrega um tesouro. Arfava feito um javali ferido, esticando o corpo muito magro, combinando com a tez morena, a testa profunda, sobrancelhas de pelos grossos e esticados. Abriu as mãos e o diamante calou a voz do pai.

Disse ter encontrado a pedra na correnteza de um rio, depois de passar fome por nove dias e aprender a dominar os delírios nas noites sem luar. “Eu via coisas, sonhei pesadelos!”. Os dentes eram brancos, os da frente separados, a voz mansa, os cabelos ensebados, já embranquecidos, separados ao meio.

“Nasci em trinta e nove – ele disse, fazendo pose de orgulho, como se fosse algo muito especial nascer naquele ano – foi quando a guerra começou e ninguém sabia – completou, num brilho estranho nos olhos, como se visitasse paisagens distantes. Depois piscou, olhou de lados, deu de frente com o rosto severo da minha mãe e pouco se importou quando ela ameaçou fazer com as mãos o sinal da cruz. Bebeu o café da caneca e cuspiu o resto no chão sem nenhum pudor. Senti um cheiro ocre, algo forte, parecido com tudo, menos com café. Uma nuvem de serenidade finalmente baixou até a cabeça do sujeito, acalmando tudo em volta; parou de arfar, conseguiu suavidade no tom de voz decorado, mas mesmo sem descarrego, denotava pressa. A chuva ameaçava voltar e ficamos todos presos pelos cantos da casa, ouvidos atentos à fala do visitante inesperado: “sou homem do mato e vi um anjo quando a lua estava cheia, e o anjo me garantiu a existência desse diamante, levemente escorando num barranco do rio. Em gestos com as mãos, círculos invisíveis no céu, mostrou-me certinho o trecho e até os perigos para chegar até lá. Larguei tudo que fazia e me meti mata adentro. Fiz armadilha na árvore e a onça morreu espetada, misturei venenos com pedaços de carne e as cobras morreram com as línguas esticadas em carvão, juntei cambucá aos montes e dei aos macacos, os bichos entraram na mata, as jaguapitangas foram atrás deles para um lado, eu segui para o outro, porque o anjo mandou fazer assim.” Suspirou profundamente e riu com a boca torta pouco antes de o vento apagar a lamparina. Minha mãe acendeu a lamparina e seu rosto tingiu a parede numa imagem trêmula. O homem olhou a imagem na parede e tentou ser ligeiro: “Ora, quem sou eu para duvidar de um anjo? O rio estava quase seco no trecho, e na encosta, bem no lugar que o anjo indicou – enxugou o rosto com as mãos, jogou longe o suor que lhe derretia a testa – o diamante estava lá me aguardando, do jeito que o anjo falou. – novo suspiro ligeiro e as mãos limpando a testa que ardia. Logo a palidez retornou e prosseguiu narrando como quem conta a história de um livro e nós, boquiabertos, queríamos saber o final. Menos a mãe, desconfiada como sempre do visitante e do vento que balançava as roupas no varal. “Ah, o maior diamante de toda a terra, era sim senhor, o apanhei sem dificuldades e depois corri para longe, até a vista cansar e os uivos dos lobos se tornarem distantes, porque o vento era de tempestade e minhas mãos queimavam guardando o diamante. Só olhei para ele duas ou três vezes – E sorriu pela primeira vez, abrindo novamente as mãos que guardavam o diamante. Meu pai fez que não viu, o homem magro não se aquietou: “pedra bruta não tem brilho, precisa lapidar para se tornar brilhante, mas isso tem um custo que não possuo. – A testa prosseguia ardente, mas dessa vez ele ignorou o suor que caía no chão feitos pingos de chuva –  O anjo sempre soube disso e me pediu para vendê-lo às mãos de um homem de bons modos, temente a deus e aqui estou. Quanto me dá?” O pai sabia fazer contas, resmungou alguma coisa que não conseguimos ouvir, mas o homem magro, sim: “cinco mil cruzeiros é esmola, vale bem mais”. A rudeza do pai não o impedia de ser um bom negociante, e o vozerio dos dois homens ecoou pelos cantos da casa: leve embora então, não apareça mais aqui, vendo por vinte mil, vale muito mais, dou dez e não falamos mais nisso, já dobrei o preço, ninguém vai pagar mais, eu fecho nos quinze, baixei cinco, é uma boa pedida, pode ir embora então, não lhe dou nem mais um tostão, doze e não falamos mais sobre isso, aceito se for embora hoje mesmo e não mais voltar, o senhor paga em dinheiro, preciso viajar.

E o vento apagou novamente a lamparina. O pai não esperou a mãe acender novamente a lamparina, ele mesmo riscou o fósforo e a luz fraca iluminou os rostos dos dois. Ambos suavam numa intensidade de machado quebrando toras de árvores.

Apertaram as mãos. O pai passou por nós sem nos olhar, o caminhar duro e decidido, hipnotizado pela ânsia tão verdadeira quanto assustadora. Foi até o quarto e de lá voltou com um pacote de dinheiro amarrado num cadarço. A mãe engoliu a seco a aflição, os olhos arregalados em direção ao pai que solenemente a ignorou.

E lá se foi o homem magro, pouco se importando com a chuva fina e o sibilo do vento, ajeitando o chapéu na cabeça, a testa profunda refletindo um brilho de alívio, sem mais dizer, deixando a pedra sobre a mesa, bem abaixo dos olhos do pai, as mãos esfregadas uma contra a outra, o riso escapando junto ao brilho nos olhos desenhados na face dura: vale mais de cem – ele disse – olhando para nós como quem se vê pela primeira vez.

A mãe ouviu tudo num olhar sem falas.

Nunca antes eu tinha visto o pai sorrir. Naquele luminoso instante, afagando o diamante, ele sorriu com tanta intensidade que o vento, já pronto para apagar novamente a lamparina, fugiu pela janela. Aquele riso do pai foi como se tivesse guardado na aspereza da vida toda a felicidade que só então permitiu deixar escapar.

O pai estava feliz e felicidade de pai é o mesmo que frieira, pega em todo mundo. Rimos junto dele numa algazarra de gritos e abraços. A mãe não sorriu. Ela era de poucas falas e do rosto sempre fechado, mulher justa, criada nas regias da bíblia, não disse nada, mas desaprovou o negócio num olhar de profundo lamento.

O pai prosseguiu sorrindo, o brilho no rosto aumentado, indiferente à testa hirta da mãe.

Como a mãe não se juntou ao nosso abraço, o vento contornou a janela, retornou mais forte e apagou a lamparina num sopro feito lamento de gente triste.

O silêncio só foi rompido pelo barulho do fósforo sendo riscado nos dedos trêmulos da mãe. E algo havia mudado.

Eu e meus irmãos nos dividimos, as mulheres concordaram com a mãe, fincaram no rosto o mesmo silêncio e o olhar de desaprovação, eu e meus irmãos sorrimos abraçados ao pai, garantida estava a mesa farta até o final do ano e a geada já tinha nos castigado demais. E agora tínhamos o diamante.

Veio a noite, a primeira de tantas, e o pai não tirava os olhos do diamante. Minha mãe o chamou para o quarto num gesto de olhar: “e se aparecer um ladrão?” Indagou numa fala sincera, como se perguntasse para as sombras, a pedra bruta cuidadosamente postada no meio da mesa, calada e sem brilho, na risca dos olhos do pai.

“Vão todos dormir – disse o pai – eu fico vigiando.”

Desde então passou a comer farelos, bebia a água do pote sem ter sede, cuspia uma espécie de euforia, os dedos aos poucos marcando a crosta do diamante.

“Vou mandar lapidar, vai dar uns doze ou treze brilhantes, valerá trezentos mil contos cada um”, e não falava de outra coisa, só mudava o valor dos pedaços brilhantes do diamante depois de lapidado, valeriam duzentos, quem sabe no total daria mil contos, imaginava falando, a voz numa euforia indomável, o tempo todo sentado de frente à mesa, admirando o diamante, sequer saía lá fora; despercebeu o campo florido pelos girassóis olhando com amargura para o céu, aos poucos coberto pelas nuvens escuras, não buscou agasalho quando chegou o frio repentino e a lavoura, do verde intenso de antes, se transformou em espessos tons de cinza; não se preocupou em nenhum momento com o intenso piar dos jacus destruindo o resto do arroz – os dias trocados pela noite – dormia sentado diante da mesa, abarrotado de ânsia, tossindo seco, os dedos alisando suavemente o diamante.

“E se aparecer ladrão?” Falava todas as vezes quando passávamos perto dele.

Com as sobras do dinheiro, a mãe comprou banha e torresmo e o gosto do torresmo haverei de carregar na boca até o fim dos meus dias, como se fosse uma lembrança daqueles primeiros dias de vida escorada no diamante.

O pai mandou abrir todas as janelas durante o dia, ficava mirando a porta, feito um vigia, olhando ao longe, como um abandonado à espera do retorno de alguém.

Quando a noite chegava, fechava tudo, encostava as cadeiras na porta e usava pedaços de pedra para segurar ainda mais a trinca.

Escorria suores intermináveis de sua testa e ele sequer se importou com a bíblia caída no chão. Não tinha lugar para mais nada em cima da mesa, apenas o diamante.

“E se aparecer um ladrão?”

As irmãs deixavam a comida, torresmo e farinha, ele só comia quando não tinha mais jeito, reclamando da perda de tempo, as mãos mantidas ocupadas, protegendo o diamante.

E se o homem do diamante fosse o diabo? Desconfiava a mãe. Ele era muito magro e o diabo é muito magro, repetia quase sempre. E a mistura de medo e certeza foi se instalando.

Gaspar, o irmão mais velho, partiu numa manhã de domingo, dia de céu nublado, foi embora deixando em nossas vistas assustadas o adeus marcado pelo rosto parecido dos outros cinco irmãos que ficaram; “volto no mês seguinte” – disse num sorriso, num claro confronto aos nossos rostos aturdidos. Nunca cumpriu o prometido.

O pai nem deu pela falta, o diamante era mais importante que qualquer outra coisa.

Neidinha se juntou com o vendedor de mandioca, também foi embora, estava prenha, mas disso só soubemos tempos depois.

Um dia o pai chamou por Neidinha e nós, apressados, falamos ao mesmo tempo da desdita e ele balançou os ombros, “já foi tarde, mulher quieta demais tem pouca serventia, logo vai se encher de filhos e acaba voltando, até lá já lapidei o diamante e com o dinheiro vou comprar um trator e as terras dos vizinhos”.

Carlos, o irmão da cabeça ruim, foi picado por cobra, o pai nem ligou, a mãe cortou-lhe o dedo com faca, já estava rocheando, “deu sorte”, ela disse, “pegou na ponta dos dedos e dedo não faz muita falta, ainda mais a esse pobre que não consegue pensar”. Restou mais medo, porque cobra é serva do diabo e a figura magra do homem do diamante ainda passeava no pensamento da minha mãe, “era o diabo, certeza que era, levou embora todo o dinheiro e deixou a maldita pedra bruta cegando o seu pai” – dizia para cada filho que encontrava pelo caminho.

Carlos morreu no fim de dezembro, quando o ano estava acabando e para ele acabou de verdade. O dedo ferido de cobra foi a causa, mas a mãe culpou o diabo.

“E se aparecer um ladrão?” Disse o pai, quando soube. E nem foi ao enterro, ficou cuidando da pedra, que já ofuscava a sala, apagava quase tudo, só não gastava a vista do pai.

“Vou vender e comprar as terras dos vizinhos, uma camionete e um trator, um montão de sementes e um pouco de aguardente, para alegrar a vida, ah se vou, vou, sim senhor” – disse um dia, sem olhar para mim, mas para a porta trancada, como se a porta tivesse ouvidos.

Eu gostava da Nazária e senti muito quando o caixeiro viajante a levou. Ela era a mais bonita e, entre todas, a única que conseguia labutar sem demonstrar dissabor.

Vai minha irmã, mas me prometa voltar, volto sim, assim que a primavera chegar.

Vieram tantas estações e ela… Ai, que dor.

O barulho das rodas da charrete daquele dia, fazendo o som de coisas se acabando enquanto amassava a terra seca, nunca haverei de esquecer. Entretanto, aos poucos, as tantas estações me fizeram esquecer detalhes da voz e parte do rosto de Nazária.

Ela também nunca mais voltou.

A mãe foi que mais sentiu a falta de Nazária, era ela que cortava a lenha e fritava o torresmo. Quando a mãe resolveu cortar a lenha, uma lasca de madeira a cegou de um olho.

“Deve ter sido o diabo”, ela disse, “só ele para causar tanta dor”.

E dos olhos antes castanho, restou uma bola murcha, leiteada, completamente apagada, feito a pedra bruta em cima da mesa.

O pai reclamou um olho a menos para vigiar o diamante.

“Vai que aparece um ladrão!”

Já era dia de frio quando Nadir apareceu morta no matagal. Uns disseram que se enforcou, outros que foi molestada, as pernas sangravam e a cabeça permanecia firme em cima dos ombros; não tinha marcas brutas na pele, mas o peão e o padre garantiram que a tiraram de cima de uma árvore, com uma corda em volta do pescoço.

Pobre Nadir, quase nunca falava, muito menos agora, depois de morta.

O pai nada perguntou sobre Nadir, mas quis saber se o delegado sabia se existia por perto algum ladrão. O delegado fez a mãe marcar com o dedo tingido uma folha de papel. Ela ficou calada por um bom tempo, até o olho ferido chorava a morte de Nadir. Quando enfim retornou a falar, apontou os dedos para a estrada, num rompante desabafo:

– Foi o diabo!

Mal o meu corpo se cobriu de pelos quando percebi que somente eu restara para acudir o pai. A mãe quase nada falava, reclamando da dor no olho furado, da falta sentida por Nazária e as preces para cuidar das almas de Carlos e Nadir. De Neidinha se esqueceu completamente. Esperava o retorno de Gaspar e nem percebia a minha presença. Ora e vez dava ordens para cobrir o espelho do quarto, mesmo quando não estava chovendo, porque – dizia – o diabo gosta de olhar a própria imagem.

O pai continuava imaginando um novo dia e respirando o pavor. “Amanhã vou fazer dessa pedra três ou quatros brilhantes e depois comprar um novo trator e as terras dos vizinhos. Mas e se antes aparecer um ladrão?”

Nada falei quando o torresmo acabou.

E a luz fraca da lamparina ilumina os olhos do pai, faltosos de brilhos, a contemplar a pedra bruta já um tanto escurecida em cima da mesa. Entre cismas, o olhar passeando pela parede até voltar diretamente na direção da pedra bruta, a voz quase consumida pela ronquidão: “e se aparecer um ladrão?”

O brilho da lamparina, os raios fugidios dos relâmpagos ao longe e dos pirilampos lá fora, tudo brilhava mais do que o diamante.

Gaspar mandou um telegrama pedindo dinheiro. A mãe juntou o resto das moedas. ‘Um dia Nazária volta’, ela dizia enquanto batia o machado na tora de madeira, serviço feito quase às cegas, a mão esquerda protegendo o olho bom e ainda guardando um resto de cuidado com o diabo.

Eu nada disse, abarrotado no receio de causar mágoas, mas era evidente, muito mais do que diamante, a vista do pai precisava ser lapidada para retomar o brilho de antes.

Lá fora o mato tomou conta de tudo, os jacus fizeram ninhos nos espantalhos, enquanto o bando de girassóis – feito os olhos do pai presos ao diamante acima da mesa – vigiam o sol, mesmo em tempos de nuvens.

– Venha, pai, vamos tentar ligar o trator.

“Vou não, vai que aparece um ladrão!”

A mãe já não reclama, sussurra cegos lamentos, a casa transformada numa retumbante escuridão de lamparinas quase sempre apagadas pelo sopro do vento.

“Era o diabo!” – diz, na voz carregada de certezas que somente eu consigo ouvir.

Além do silêncio abraçando a escuridão, resta a pedra, a brutal pedra sem brilho, exposta em cima da mesa da sala, fincada diante dos olhos opacos do pai.

Quando amanhece, talvez seja mesmo outro dia. Sou o resto, aquele que sobrou e os girassóis parecem saber disso, ignoram o sol, se voltam na minha direção enquanto tento consertar o trator. Retiro o suor da testa e lanço um olhar de esperança para a porta, na vã esperança de ver surgir a figura do pai. Mas só ouço o som repetitivo da sua voz, cada vez mais fraca:

“E se aparecer um ladrão?”.

“Ele já veio, era o diabo!”, responde a mãe.

André Alvez – 2º lugar na categoria conto, versão nacional, do Prêmio Castro Alves de Literatura 2020

André Alvez

*André Luiz Pereira Alves – cujo nome literário é André Alvez – nasceu em Campo Grande/MS.

Formado em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda pela UNISA-SP, é cronista do caderno B do jornal Correio do Estado, principal jornal diário de Campo Grande e do Estado de Mato Grosso do Sul, desde 2008.

Participou da coletânea de Crônicas e Prosas “Retratos Urbanos”, lançada pela Editora Andross de São Paulo em 2007. É autor dos livros: “No Pantanal não existe pinguim” – Editora Agbook – São Paulo, 2011; ”O santo de cicatriz” – Editora Life – Campo Grande/MS, 2013; “Crônicas da cidade” – Chiado Editora – Lisboa 2016; “A Bruxa da Sapolândia” – Chiado Editora – Lisboa 2017; “Nossas Crônicas” – Coletânea de crônicas, juntamente com as autoras: Lucilene Machado, Raquel Naveira, Maria Adélia Menegazzo e Theresa Hilcar. – Editora Life – Campo Grande-MS, 2019.

Catorze

Por Fabrício Odassi*

Quando acordei percebi que já não existia. Não ouvi Peter Gabriel no despertador mas o mostrador ficou maluco. Seu Antônio, do bar da esquina, ainda não sabia que perdera seu melhor freguês das manhãs de domingo. Agora, catorze. A torneira da pia pingando, foi quase o tempo do tilintar da gota pingando… catorze noites, quando um outro alguém trocará sua vedação. Há alguns momentos, é difícil saber, alguém pronunciou meu nome, uma, quatro vezes…

É um sonho ruim e dentro dele há seres cheios de maldade. Sonhos são poemas, vigília, prosa.

Catorze versos, catorze elefantes, a uma amante somam-se quatro, cinquenta e seis facadas nas costas e fui morrer quando.

Catorze, eu, catorze.

Gatos têm sete.

Não posso afirmar que usei todas. É correto dizer que não as usei como deveria, nem mesmo vivi sete e tenho a impressão que morri setenta vezes e o lado direito da cama está vazio e ficará assim até catorze… Alguma marca do corpo que por costume persistisse se dissipará, apesar da nostalgia incômoda. A vidraça e os postes da rua vistos através desta vidraça não perceberão que já não há quem os observa e os rumores da vizinhança, todo aquele vozerio fofoqueiro e pianíssimo, serão violentamente arrancados do meu desprezo.

A poeira acumulará sobre a madeira da estante e alguns livros, invariavelmente os mesmos, talvez sintam falta do dedo indicador a puxar-lhes pelas lombadas. Bentinho gozará de paz e Capitu será tão desinteressante quanto a retidão de seus olhos. Gabriela, imóvel em seca e miséria, terá de aguardar seus desenredos e jamais conhecerá Nacib e nunca o trairá, todavia, Nacib será traído todas as vezes. Dante amargará no inferno à procura de Beatriz. Ficção paralisada. Mas será só por catorze.

Rip van Winkle e fábulas. Não durmo, não rezo, não trabalho mas também não descanso. Mas há um imenso catorze.

Baalzebub. Formigas, moscas e cigarras. Catorze paralisa o avançar do sol e quem é surpreendido em falta, catorze.

Aquele bêbado do Zé Nosso e seus vômitos dominicais hão de esperar sem nenhuma pressa. O velório municipal ficará vazio, ninguém morrerá em catorze, tampouco haverá nascidos de parto normal ou programado. Azar de quem for pego a meio-termo, de ir ou vir, ficará em espera de angústia por catorze eternidades.

Os amantes terão seus momentos eternizados como numa foto instantânea. Todavia amarelecerão e desbotarão, deixando o papel novamente vazio, sem traço de existência e seus movimentos serão calculados e abstraídos em equações quadráticas, descritos em cinemática inversa e registrados em notação com base dez.

Há desejos infinitos dentro das catorze vidas, que fossem uma só, e todos os desejos, meus desejos inconclusos, estes jamais esfriarão mas serão partes amputadas do corpo, cicatrizes onde coçarão como um membro fantasma.

Catorze. Fiz anos, hum…, deixe-me ver, noves fora… É tempo.

Tempo de continuar e sou obrigado a puxar o tempo pelo rabo, ele vem urrando, berrando e suas unhas riscam o chão e o chão geme como um quadro negro arranhado: arrepios sob as coxas e embaixo do maxilar salivante. Vinagre e sal. Limão, sal… Morder os dentes inoxidáveis de talheres.

Passo e aquela manhã também passa, ignorante do relógio estacionado, alheio à pulsação da vida, inconsciente do grande metrônomo. Não há mais quem dê corda no relógio ou substitua a célula de energia, não sei, nunca usei marcadores depois do catorze, ponteiros, areia, sombras, conchas, contas, ábaco. Há fanáticos para o sete e meio, outros se matam por notas de cem.

Eu, catorze. Ele me encontrou.

Relógios antigos badalam até doze. Treze e uma varejeira bota ovos dentro do meu ouvido.

Catorze é número real, hiato medido, um oco no meio. Catorze e já não é possível estar, sentir o sabor do espaço ou saborear a realidade segura do centro gravitacional. Aquele cão faminto habita um número qualquer, talvez o treze, ou o treze com oitocentos noves depois da vírgula. A alma de quem morre fica entre o zero e o zero seguido de vírgula, seis e setes. Depois de catorze a alma vai para qualquer outro número irracional.

Catorze e eu penso coisas descartáveis.

Nada durará depois do catorze.

Escrevo onde é possível mas um funcionário com cascos fendidos apaga logo depois. Paredes, piso, vasos, pele, testa dos outros mas tudo desaparece tão logo escrevo, condenado a escrever palavras na flor da água. Reescrever e reescrever sempre. Rabisco uma equação no ar e ninguém apagará. O ar é invisível. Rabiscar na areia da praia. Vem o vento. A alma é o vento, escultor da rocha do corpo.

Fios de cabelo: setecentos e setenta; dois mil, cento e oitenta e quatro; quatro mil, cento e quarenta e quatro.

Entre a morte e a vida ou se durmo e condenado à madorra sem fim, persegue-me o 14. Aquela sexta-feira foi treze e olhei para o mostrador digital

— 14:14

— 14 14

aconteceu tudo num sopro. Um sopro. Catorze é o infinito que existe entre cada piscada, dois olhos, duas gotas. Entre a explosão de uma gota e antes que a próxima gota caia há o catorze e fui violentamente arrancado de mim.

Alguém que entrasse poderia ver meu primeiro beijo escorrendo na parede, a última mulher pingando do lustre, filhos que não tive espalhados pelo chão.

Fabrício Odassi – 1º lugar na categoria conto, versão nacional, do Prêmio Castro Alves de Literatura 2020

Fabrício Odassi
Foto: Acervo do autor

Luís Fabrício de Lima Odassi – ou simplesmente Fabrício Odassi – nasceu na cidade de Dracena/SP, em 1970, atualmente reside em Agudos, interior de São Paulo. Escreve desde que percebeu que a palavra é via de compreensão da angústia humana. É bacharel em design, escola de mestres que lhe são credores por toda vida. Mantém o blog https://fabriciodassi.blogspot.com/

Parabéns, campeão!