Transmitância

Por Toni Ramos Gonçalves*

“Vamos, Carlos! Estamos atrasados”, disse o homem ao atravessar a faixa de pedestres.

“Calma, pai! Que ansiedade! E não é Carlos… É Samantha, viu?”, disse a moça alta, muito magra, o cabelo amarrado no estilo rabo de cavalo mais preto do que loiro e se equilibrando sobre o salto alto.

Subiram por uma rampa que dava acesso ao saguão do fórum, num atropelo de gentes que desciam e subiam apressadamente. A multidão, a maior parte estrangulada por gravatas, perdiam-se por aqueles corredores mal iluminados. O pai, com seu indisfarçável incômodo pelo número excessivo de olhares direcionados a sua filha, buscava encontrar logo o seu advogado, no meio daquela confusão.

Dr. Heraldo, amigo de faculdade, estava num canto defronte a um janelão de onde se avistava uma praça e suas árvores centenárias. Conversava no celular e o doutor, ao ver que se aproximavam fez um sinal com a palma da mão pedindo que aguardassem. A ligação durou uns três minutos. O pai lembrou que o colega era bem legal no passado, mas com o tempo tornou-se muito formalista (diferente de seu passado boêmio) além de, agora, falar constantemente de vinhos, uma chatice. Não mudara muito fisicamente e mantinha o velho cavanhaque e a longa cabeleira, grisalha. Nunca entendeu por que ele não se casara.

Finalizada a ligação, o advogado estendeu a mão aos recém-chegados e cumprimentou-os demorando um pouco mais ao segurar a suave mão de Samantha.

“E sua recuperação, querida?”, perguntou, colocando sua mão no queixo dela, carinhosamente, verificando as pequenas cicatrizes naquele belo rosto.

Com um sorriso ela retirou os óculos de grau e deixou ser observada.

“Melhorando, né, doutor”, disse, numa voz suave.

“Por qual motivo você nos ligou, Heraldo?”, interrompeu o pai, não agradando daquela súbita intimidade.

“Desculpe por não atendê-los em meu escritório, mas é que tenho três audiências durante o dia e precisava falar com vocês com urgência”, explicou recompondo-se de sua atitude anterior. “Bem, os advogados do agressor da Samantha entraram em contato e propuseram um acordo extrajudicial”,

“Como assim? Eu quero aquele babaca na cadeia”, levantou a voz Samantha, chamando a atenção de alguns transeuntes.

“Calma, deixe-me explicar. O agressor é o filho caçula de um candidato à presidência, aquele com os filhos deputados. O que lhe agrediu é o filho pegador, segundo falam.”

Samantha soltou uma gargalhada.

“Pegador? Com aquilo daquele tamanho?”, zombou, mostrando o dedo mindinho para os dois.

O pai beliscou a filha, irritado.

“Componha-se!”

“Para, pai!”, disse, dando-lhe um tapinha na mão.

“Aconselho vocês a aceitarem. Eles não querem escândalo, ainda mais com a proximidade das eleições. Eles me ofereceram esse valor, caso concordem. Aquele vídeo que conseguimos no estacionamento foi ótimo”, concluiu o Dr. Heraldo entregando um papel com o valor ofertado.

O vídeo mostrava toda a agressão e reforçava a versão da vítima. As imagens mostravam Samantha e o agressor abraçados, indo em direção a um carro. Antes de entrarem no veículo se beijaram durante longos minutos, até que a vítima parece querer dizer algo, mas o agressor era insistente e continuou com as carícias. Minutos depois ele se afastou, assustado, e percebeu-se um início de discussão. Pelo visto, ela tentou se explicar e subitamente recebeu um soco de esquerda, bem no rosto, que a lançou contra o carro. Em seguida viu-se uma sequência de socos desferidos contra o rosto e o tronco da vítima até cair no chão, onde levou mais uma série de pontapés. Depois o rapaz se afastou e somente após vinte minutos apareceu outro casal que socorreu Samantha.

“Isso tudo?”, surpreendeu-se o pai ao conferir o valor.

“Ainda é pouco”, disse Samantha com o olhar distante, para além da janela. Era um lindo dia azul. Nos olhos vermelhos, o choro engolido.

Dr. Heraldo se aproximou, colocou as mãos em seus ombros tentando acalmá-la.

“Sei que é difícil para você, Samantha, mas, você sabe que esse processo pode se estender por anos e no final sempre saem impunes. Lembra que a imprensa não divulgou nada quando aconteceu? Foi tudo abafado. Eles têm poder e dinheiro. Podem alegar um monte de coisas durante o processo, como um surto inesperado por uso excessivo de drogas. E além do mais, pode ser perigoso. Todo mundo sabe do envolvimento deles com os milicianos. Você não vai querer que seu pai a encontre morta em algum terreno baldio ou fique anos em busca do seu corpo desaparecido, vai? Ter opção é melhor do que não ter nenhuma.”

Samantha não resistiu ao choro, abraçou o advogado e soluçou em seu ombro.

O pai observou a tudo calado. Nunca soube lidar com a transformação do filho, ocorrida há pouco mais de um ano. Sua criação religiosa dificultava ainda mais o entendimento.

“Pois bem…”, interrompeu o pai.  Os dois se afastaram e desconcertados o ouviram. “Vejamos pelo lado bom. Com esse dinheiro você pode terminar sua faculdade ou até fazer aquela cirurgia estética tão desejada por você, quem sabe?”

“Verdade”, falou Samantha enxugando as lágrimas com as costas da mão e esboçando um sorriso discreto.

“E o valor será pago a vista”, completou o advogado. “Precisaremos retirar a queixa, anulando-se assim o processo e a vida segue, apesar de ficar toda essa dor física e mental. Cedo ou tarde ele vai ter o que merece. Pode ser assim, então?”

Apertaram as mãos em concordância.

“Vamos embora, Carlos”, chamou o pai. “Obrigado, até mais Heraldo.”

“Carlos não, pai… É Samantha! Com um H entre o T e o A”, explicou bufando e revirando os olhos de raiva.

O pai saiu resmungando algo indecifrável, sem dar muita atenção. Samantha retardou o passo, e virando-se para o advogado gesticulou os lábios, a mão quase fechada, girando e desenhando no ar o sinal de mais tarde passo lá. O Dr. Heraldo conteve o sorriso, deu uma piscadela e olhando ao redor tornou-se sério, não antes de ver Samantha sumir pela rampa, com todo seu requebrado.

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ANALISE CRÍTICA POR WAGNER ANDRADE (POETA E ESCRITOR)

Por um lado, vivemos numa época em que infelizmente, impera o poder do dinheiro que, tantas vezes, faz com que a impunidade, hoje tão reinante em nossa sociedade, em diferenças esferas governamentais, se torne cada vez mais patente e dilatado. O mais triste é que, se utilizando desse meio corruptivo tão sórdido, os poderosos buscam “comprar” o silêncio e, quando necessário, a própria dignidade daqueles que se veem ultrajados, humilhados, agredidos, não apenas fisicamente, como também moralmente. E o poder da corrupção é algo tão forte e devastador, que empana o brio, a moral mesmo daqueles que se põem à sua prática.

Por outro lado, em outro extremo, deparamos com um problema hoje nada latente em nosso cotidiano: a questão da violência associada à intolerância sexual. As dificuldades em aceitar as tais diferenças, se manifestam ora por meio da rejeição homofóbica e preconceito, ora através de abuso, humilhação, podendo redundar na utilização de agressões corporais.

No âmbito familiar, por vezes, tais “transformações” são difíceis de serem ingeridas e compreendidas pelos próprios genitores. O fato é que as nossas crônicas policiais insistem em abordar a violência sofrida por aqueles, cujo comportamento difere dos ‘padrões aceitáveis” pela sociedade como um todo. Ainda assim, não obstante toda a rejeição que sofrem, ao mesmo tempo que procuram se expor, se fazer presentes, se manifestar, passam a filiar-se à luta em nome do respeito às próprias diferenças e à dignidade humana. Uma forma de “transmitância” social e sexual.      Assim o título vem a ser bastante coerente com a proposta da narrativa que consegue expor e conjugar muito bem esses dois fenômenos tão frequentes no nosso meio.

*Toni Ramos Gonçalves é escritor e editor.

(S)Cem dias

Por Toni Ramos Gonçalves

“Eu tenho essa tristeza rigorosa, que me faz feliz.” Sérgio Sant’Anna

Hoje é meu centésimo dia de isolamento social. Da varanda de meu apartamento vejo o pôr do sol num laranja intenso e a brisa fria do início da noite faz com que eu feche meu agasalho. Gosto de ver o momento em que os raios do sol refletem na cruz do alto da torre da igreja, cujo brilho ofusca meus olhos. É um momento lindo, inesquecível, que só acontece durante os meses de inverno. Depois, aos poucos vejo a penumbra da noite avançar sobre a cidade que começa a se iluminar com as luzes dos postes e dos faróis dos carros, na maioria trabalhadores retornando ao lar. Lá fora tem um vírus mortal. Não é um vírus de uma simples gripezinha, nunca foi. Com o passar dos dias percebo que ter um líder ignorante pode ser uma desgraça maior que a doença. A soma das vítimas da Covid-19 ultrapassou os cinquenta mil no último fim de semana. Isso somente no Brasil. E o número diário de contaminações é preocupante. Sou hipertenso, asmático e meus sessenta e um anos fazem com que eu faça parte do grupo de risco. E sem ter cometido crime algum durante toda vida, estou aqui nessa tão necessária prisão domiciliar.

De um dia para o outro acordamos num mundo pré-apocalíptico. Não foi uma guerra nuclear, nem uma invasão alienígena, muito menos um meteoro gigante, como aquele que extinguiu os dinossauros. Foi um vírus, invisível a olho nu, que quer somente se reproduzir, que veio nos mostrar toda nossa fragilidade e pequenez. O governo decretou quarentena e pediu que todos ficassem em casa, evitando assim a propagação do vírus. Iniciou-se, então, uma correria aos supermercados, o comércio não essencial foi obrigado a fechar, assim como as escolas, as fronteiras, as igrejas e outros templos religiosos, justamente no momento em que mais precisávamos dos milagres de Deus. Numa tarde de sexta-feira, assisti pela TV à benção do Papa Francisco no pátio vazio da Basílica de São Pedro, diante do crucifixo de São Marcelo, o Cristo Milagroso. Caía uma chuva fina e o céu estava escuro e sombrio. Naquele dia a Itália completava nove mil mortes. “É o fim da humanidade!”

Adaptar-me à nova rotina não foi nada fácil. Sou aposentado há cinco anos e continuo escrevendo artigos e críticas literárias para jornais e periódicos acadêmicos, em home office (brasileiro adora palavras em inglês), e na verdade nem gosto mais de escrever. O que me pagam supera esse desgosto, por isso transformei o quarto de meu filho em escritório. Ele se casou recentemente, poucos meses antes da pandemia e desde então moro sozinho já que minha mulher foi embora bem antes dele. Um dia ela veio a mim e disse sem rodeios, impiedosa:

_ Cansei. Você se tornou um velho muito aborrecido e insuportável.

 Nem ao menos quis ouvir meus apelos para que ficasse. Pegou sua mala e foi morar com sua irmã, depois de vinte e oito anos de casados, foi embora sem remorso algum. Há muito tempo que nosso relacionamento estava por um triz. Por um tempo a espionei pela rede social (a inveja tem Facebook), visualizei suas viagens, festas, ao lado daquelas amigas divorciadas e viúvas, mostrando sua felicidade descaradamente, talvez até falsa, para quem quisesse ver, de preferência eu. Com o tempo, deixei para lá. Eu até penso que ela suportou muito. Sempre fui conservador, autoritário, muito certinho, uma besta para dizer a verdade, mas acredito que seja consequência da educação que recebi. Fazer o quê? Tem hora que nem eu mesmo me aguento.

Bem, nos primeiros dois meses da quarentena, meu filho ligava quase todos os dias por videochamada. Ordenou que eu não saísse de casa, que pedisse tudo que precisasse por delivery. Ainda bem que antes da pandemia aprendi a usar a tecnologia, principalmente dos celulares modernos, smartphones, que meu filho me ensinou, na maioria das vezes, sem muita paciência. No último mês as ligações dele diminuíram bastante. Teve que retornar ao trabalho. É assim mesmo. Cada um tem sua própria vida. Minha ex-esposa também ligou semana passada perguntando como eu estava. Respondi que estava mais aborrecido e chato do que antes, mas sentia muitas saudades dela. Na verdade sinto saudades de mim mesmo, de todos e de tudo. Envelhecer dói no corpo e na alma.

E na construção desses cem dias, em meio à solidão e tristeza crescentes, perambulo pelos quartos da casa de pijama, ora escrevendo, outras lendo um bom livro, noutras ouvindo música clássica e na maioria das vezes na frente da TV. Quando se noticia a morte de algum artista que eu sou fã eu choro. E quando alguém me liga e avisa que um amigo de longa data foi vítima da doença, choro em dobro. A morte parece escolher a dedo quem quer levar. Fica aquela impressão que ela prefere boas companhias. E falando em companhias, às vezes me pego recordando dos recentes eventos culturais nas cidades históricas e das viagens à beira-mar, dos amigos a prosear nos botecos de copo sujo tomando aquela cachaça com torresmo, falando e julgando a vida alheia. Tem momentos em que viajo para bem mais longe em minha mente, onde o tempo aos poucos apaga as lembranças da infância na roça junto dos meus pais e irmãos naquela vida miserável que vivíamos.

Agora tudo parece tão distante e irreal, inclusive o futuro. O mundo parece revirado ou do avesso. Essa nova realidade assusta e enlouquece, não somente a mim, mas a todos. Em meio ao caos social, político e econômico do momento atual do Brasil, exemplos de loucuras não faltam. Pela TV e redes sociais assisto ao pesadelo que se tornou nossas vidas. Nega-se a ciência e receitam-se medicamentos sem comprovação científica; ministros da saúde demitidos ou que se demitem; gente ignorando o isolamento social pelo simples fato de não acreditar na existência do novo Coronavírus; teorias conspiratórias sobre a China querer dominar o mundo; várias manifestações fascistas pelo país pedindo o retorno da ditadura militar; a falta de diálogo entre os poderes legislativo, judiciário e executivo; manifestações contra o racismo pelo mundo, após a morte de um homem de forma covarde por policiais nos Estados Unidos; sobrecarga no sistema de saúde com hospitais e seus leitos de UTIs lotados; corrupção com desvios de verba na compra de respiradores hospitalares; dificuldades do povo e pequenas empresas em receber auxílio emergencial do governo (emergencial somente no nome) e até quem estava sumido apareceu, né, Queiroz?

Há vinte dias iniciou-se a flexibilização do comércio em plena ascensão da doença pelo interior do país. Desde que o mundo implantou o capitalismo, o dinheiro sempre será prioridade. Existe certo pânico e um receio das empresas irem à falência ou que a população morra de fome. “CPFs ou CNPJs?”, penso, com essa reabertura, que começamos a perder essa guerra contra o vírus. “Aliás, quem necessita da ciência?” E o brasileiro em nada ajuda. Mal educado, afobado e por muitas vezes irresponsável. Neste mundo injusto e egoísta, é cada um por si e Deus por todos, caso “Ele” realmente exista. Só saberemos as consequências desse erro com o tempo. “Errar é humano”. Mas, na verdade somos resultados de nossos próprios erros.

E eu também erro. Idoso é teimoso e eu não seria diferente dos demais. Digo isso, pois, mesmo sabendo dos riscos, decidi sair de minha reclusão. Todo mundo tem o direito à liberdade de ir e vir. Então optei por quebrar a regra, logo eu tão certinho, decidi revelar uma foto em que a família estava reunida (pai, mãe e filho) numa forma de recordação e assim abrandar um pouco a saudade. Diante do espelho, nem me preocupei com o avanço das rugas, a barba branca por fazer e a calvície cada vez mais visível. Troquei meu pijama encardido pelo meu terno cinza e engomado e, ao vestir a roupa, percebi o quanto havia expandido horizontalmente durante a quarentena. “E agora, José?”, como disse o poeta Drummond. “Agora que ela não volta para mim mesmo.”

Coloquei a máscara, lambuzei as mãos em álcool em gel e sai para meu destino, a três quarteirões de minha casa. A sensação de estar em liberdade, mesmo condicional, não foi das melhores. É como se a morte espreitasse a cada esquina. Cruzei com várias pessoas mascaradas. “Quem é você? Aliás, quem somos nós?” Apesar dos inúmeros avisos, havia aglomerações nos ônibus lotados, filas em frente às lojas desrespeitando a distância de segurança. Um caos total. Disseram que o mundo vivia um novo normal, mas os velhos costumes ainda persistiam. “Quando a humanidade vai evoluir?” Querendo ou não, percebi que o local mais seguro era dentro de casa ou dentro de mim. Fiz o que tinha que fazer de forma automática e retornei o mais rápido que pude para o apartamento.

Na verdade, agora começo a me arrepender de minha saidinha da prisão. Por mais cuidadoso que sejamos, estamos sempre à mercê da fatalidade. Faz dois dias que não estou bem. Hoje pela manhã acordei com febre. Tem ainda essa tosse seca e insistente, que por algumas vezes me causa falta de ar, além de sentir a todo instante um pouco de canseira, diferente daquele cansaço da vida. O certo é que preciso terminar um artigo para jornal sobre a pandemia, mas não sei se vou conseguir a tempo. Também preciso ligar para meu filho. Com certeza me dará um sermão, como sempre. Puxou ao pai, então é melhor ligar amanhã. Preciso repousar, quem sabe dormir um pouco, só um pouquinho. O sol já se foi e a noite avança sobre a cidade. E lá fora tem um vírus que mata.

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SEMI-CONTRAFAÇÃO*

Por Ana Guimarães**

O tempo se gasta. Rumino o que digo e penso como baba de boi: cai e não cai. Quem-quem remexendo no esterco, pra lá e pra cá. Ando caçando errado, quanto mais procuro, menos acho. Canso de vigiar, de perseverar, e nada. Corre o coração a ajudar o pensamento, a confundi-lo, para melhor conhecer: a gente só sabe bem aquilo que não entende. Deus (o inconsciente) é que me sabe. Deixo-me penetrar por esse conhecimento maior. Vem, me ensina o que eu já sei.

Amanheço toda e cada manhã num pouso diferente. Virgem, tabula rasa, página em branco. Nenhum juízo pré-concebido, pura interrogação. Ensolarado dia, chuva, tanto faz. O rio só parece ser o mesmo, acaso ele parou de correr? Espia a terceira margem. No entanto, tréguas são necessárias. Que se revezem com as tormentas – uma calmaria, vez em quando, é bem-vinda.

A hora em que o meu ser tão veredas mais se revela a mim (e, quando consigo, transcrevo-o, deixando-me cavalgar pelo diabo da inspiração, afinal a vida também é para ser lida) é no lusco-fusco entre o sono e a vigília, na frente do acordar. No nada. Quando os olhos ainda nem se abriram para o exterior é que eles mais vêem o de dentro. Não temo ter medo, aprendi, porque não adianta dar as costas, ele volta. Receio apenas cansaço de esperança.

Há que frear a excitação. Fazer silêncio e reverência, igual ao momento em que o peixe vai fisgar a isca, na pescaria. Cuidar de anotar de imediato, todavia com delicadeza (é todo um equilíbrio instável), senão a clareza se esvai feito nuvens desmanchadas pelo vento, a visagem se desfaz como um sonho que escapa nas asas do instante. Depois, só acionando hábeis sentinelas da memória, com sorte, de prontidão.

Estendo tapete vermelho, ladrilhos, seixos, pedrinhas de brilhante para o meu amor (a palavra) passar. Ah se essa rua já fosse minha, mas não, autorizo-me ao longo do caminho (e existe outra maneira de?), uma viagem intima, narcisicamente falando. Elíptica, sinuosa, não em linha reta. Viator ao centro do meu mundo (no meio do redemunho), ou ao mais próximo que dele possa chegar. Desejo fáustico porque impossível de ser realizado, tem sempre um resto que resiste.

O fenômeno é espontâneo, porém precipitá-lo é possível. Começo por espera ativa, embora sem contornos definidos. Não me deixo enganar, toda quietude é aparente – águas paradas escondem correntezas no fundo. É só ficar de ranger rede, a ver ou fazer coisa nenhuma, a aguardar, como dia de véspera, que acontece: o sertão vem. Aí é aproveitar. Escrever é duro, penoso, mas inevitável: põe grades entre mim e as feras, amortece o contato com o Real.

Cerzidor, aquele que costura estórias, era um dos apelidos de Riobaldo. Cerze-dor, quem tapa com a linguagem os buracos abertos pelo sofrimento. Talvez o leitor distinga, mais do que o escritor, a verdade: são muitas, são meias. Meu monólogo é diálogo, tantas sou, tantas vozes me habitam. Fora visitantes mariposas e borboletas voando de passagem, além das que batem temporárias asas para, em seguida, retornar ao solo de onde saíram, feito tanajuras.

Dou de comer à fantasia, sem pressa. Associação-livre a meio-galope. Permite o reconhecimento do terreno e seu registro, com o paroxismo que só a liberdade carreia: sensação de proteção debaixo de árvore galhuda a conviver com a inquietude da vastidão de sítio aberto, quase agorafobia. Viver não é caminhar alegre, inda que descalço sobre espinhos? É isso ou ter a consciência pesando que nem saco cheio de pedras, por nada ter feito, arrependido.

Curvo-me à equivocação das nuances do sentir: nem amor nem ódio (também não indiferença), nem bem nem mal (e não se trata de neutralidade), nem grito nem sussurro: falo, e não é tão simples como parece encontrar o tom. Em todo caso, é preferível procurar do que achar – esse último verbo cheira à morte.

*Guimarães Rosa justificava assim nomear seus textos por considerá-los plágios dos escritos que os antecederam e influenciaram.

Foto: Pexels

**Ana Guimarães

Parodiando um famoso texto, se pudesse viver novamente minha vida trataria de cometer os mesmos erros porque foram eles, mais do que os acertos, que me trouxeram até aqui e me fizeram quem sou. Corri todos os riscos que pude e quis. Tive muitos problemas reais e imaginários, também a coragem para enfrentá-los e a humildade para pedir ajuda quando não conseguia resolvê-los. Mas, acima de tudo, além de ler, sempre curti muito escutar (sou psicóloga) e escrever. Em ambos os ofícios a verdade da fantasia é o que importa, cuidar da arquitetura da ficção. Acredito não deter nenhum controle sobre os bastidores da criação, ao contrário, a inspiração é que se impõe, determina, fala através de mim, ou apesar de mim. Não escolho, sou escolhida: pura entrega, passagem, corredor.

João Guimarães Rosa, médico, amigo e humanista do Centro-Oeste de Minas

Por Ana Maria Nogueira Rezende*

Nesta data comemorativa pelos 112 anos de nascimento do genial João Guimarães Rosa não me atrevo a falar da espacialidade que o universo da obra rosiana exige.  Vou atrever-me a falar do médico, pesquisador e humanista, Guimarães Rosa que escolheu Itaguara, distrito de Itaúna, emancipado política e juridicamente desde 1943, à capital, na década 1930, para clinicar, logo depois de formado.

João Guimarães Rosa, chegou ao distrito de Itaguara, indicado pelo Dr. Alysson de Abreu, primo do farmacêutico Ary de Lima Coutinho, que a gerenciava a “Pharmácia Santa Luzia”, em abril de 1931, na Semana Santa. Dizia João Guimarães Rosa ter escolhido Itaguara para clinicar, porque haviam dito que na região não existia médico e, na verdade, era excelente começar o exercício da profissão sem concorrência. Comenta-se que um dos motivos que levou João Guimarães Rosa foi a residir em Itaguara, foi a curiosidade que tinha acerca do cotidiano das pessoas de lugares simples.

Ficou hospedado na Pensão Lima. Depois alugou casa do sr. Virgílio Brugnara, estabeleceu consultório e foi buscar a esposa Lígia, grávida de Vilma Guimarães Rosa que nasceu em 05 de junho de 1931 e que,  nesse dia levou a única palmada  de seu pai por toda a vida.

João Guimarães Rosa fez amizade com padre José Viegas da Fonseca, o  sr. Ary, Durval Lima,  João da Costa Guimarães, farmacêutico e chefe político de Itaguara e Sebastião do Couto com quem dava razão à boa prosa e ao seu desejo literário.

O médico Guimarães Rosa não desprezava o conhecimento dos raizeiros e curandeiros. Fez amizade com Bite e com Sr. Manoel Carvalho, residente na fazenda do Mambre, na região dos Gentios e Sarandi, possuidor de uma vasta biblioteca, como títulos de Alan Kardec, “A grande síntese” de Pietro Ubaldi e “Depois da Morte” de Leon Denis. Como o sr. Manoel Carvalho, Rosa manteve amizade, troca de correspondências compartilhando os cuidados médicos com ele, julgando-o  importante num lugar distante de recursos.

Guimarães Rosa clinicou, fez amigos e coletou dados no distrito até junho de 1932, quando foi servir como médico em Barbacena, na 9ª B.F., durante a Revolução Constitucionalista, que eclodiu em 09 de julho de 1932. Em 1958, retorna a Itaguara para as bodas de ouro de seus pais, sr. Florduardo Pinto Rosa e dona Francisca Guimarães Rosa, pois, d. Maria Luíza, irmã do escritor, conhecida como d. Isa,  casou-se com  dr. Antônio Geraldo de Oliveira, e levou os sogros  para residir em Itaguara.  Nessa ocasião, já escritor e diplomata, aproveitou pra visitar amigos. Na casa de Dona Marieta, chorou abraçado a ela, ao ver o retrato do falecido amigo, Juca Doido, companheiro de visitas ao acampamento de ciganos que ficava próximo à construção da rodovia que ligava São Paulo a Belo Horizonte, passando por Crucilândia, Bonfim e Brumadinho. O progresso já fazia parte do contexto do antigo distrito, emancipado, com ruas calçadas, diferente do que deixara em 1932.

Sr. Floduardo, doente, não podia falar por um mal acometido na garganta. Mesmo assim, ficava a ouvir os casos, nos lugares antes freqüentados pelo filho, tomando nota de tudo, para enviar mais tarde a ele que morava em Barbacena, depois no Rio de Janeiro e na Alemanha, onde serviu como Diplomata. Seu eu pai, trabalhava no comércio em Cordisburgo, lidava com as mais diversas pessoas. Imaginemos a sua tristeza, sentindo-se inválido, distante do filho.  Então, Guimarães Rosa pedia que anotasse tudo e lhe enviasse para que usasse futuramente em suas obras. Emociono-me ao pensar que já escritor consagrado, diplomata, valorizava a participação do pai, eternizando em sua obra literária os dados enviados à distante Alemanha. Passados alguns meses da morte de Guimarães Rosa, sr. Floduardo faleceu.

Guimarães Rosa, homem letrado, poliglota, porém supersticioso, ao visitar o amigo, dr. Coutinho em Itaúna, em sua camisa faltavam dois botões a que lhe incomodava, percebendo isto d. Nair se ofereceu para pregá-los. Diante da insistência para que Guimarães Rosa permitisse o conserto, deixou que ela o fizesse, desde que pronunciasse três vezes: “ Coso a roupa e não coso o corpo, coso um molambo que está roto…”.

Sagarana é um livro que gosto de ler, pois retrata minha gente, casos e lugares conhecidos meus. Tenho preferência por algumas novelas: “Corpo Fechado”, “O burrinho Pedrês”, “Duelo”, “Sarapalha” e, o meu preferido, “A volta do Marido Pródigo” ou “Traços bibliográficos de Lalino Saläthiel”.

Na novela “A volta do Marido Pródigo” ou “Traços bibliográficos de Lalino Saläthiel”, Guimarães Rosa retrata Itaguara, antiga Conquista e municípios vizinhos, ressaltando peculiaridades apenas conhecidas por moradores mais antigos da região.  

“_ Caprichada! É ainda estou por conhecer lugar melhor para se viver. Essa gente da Conquista é que diz que lá só tem fumaça de pretos… Mas isso é inveja, mas muita! (Lalino passou a declamar: Qual!… Criação de cavalo é no Passa Tempo… Povo p’ra saber discurso, no dom Silvério… E, festa de igreja, no Japão… Mas, terra boa, de verdade, e gente boa de coração, isso é só lá no Rio-do- Peixe!” (pág. 74, Sagarana, A volta do Marido Pródigo)

Na referência acima, Guimarães Rosa usou os antigos nomes das localidades, como Rio-do-Peixe, atual Piracema; Conquista- Itaguara; Dom Silvério- Crucilândia; Japão- Carmópolis; apenas Passa-Tempo mantém o mesmo nome e a cidade ficou conhecida através da Fazenda Campo Grande, por ser a mais antiga criadora de cavalos do Estado de Minas Gerais.   Nessa novela outro fato que me marca profundamente, é que o personagem Major Anacleto foi inspirado na pessoa de meu trisavô paterno, major Antônio Luiz de Oliveira Vilela. Em Sarapalha, fala-se da febre amarela que dizimou boa parte da população do povoado do Pará dos Vilelas.

Falar de Guimarães Rosa em Itaguara e adjacências, causa–me certo orgulho: saber que Itaguara e sua memória encontra-se em cada cantinho do universo rosiano, de maneira única.

Bodas de Ouro dos pais de Guimarães Rosa em Itaguara-MG, no ano de 1958. Foto: Enviada por Ana Maria Rezende

*Ana Maria Nogueira Rezende, formada em História pela Universidade de Itaúna, membro do Instituto Cultural Maria de Castro Nogueira- ICMC e professora de História da Medicina lotado no Centro da Memória da Medicina da Faculdade de Medicina da UFMG.

A casa que adormeceu no tempo

Por Wandick Robson Pincer*

Por qual razão destruíram a casa?

E a sua fachada formosa?

Tudo isso começa, mas passa,

Ficando Guimarães Rosa!…

***

E seu jardim coberto de flores?

E suas janelas abertas ao sol?

Guimarães Rosa chora em dores

E, junto com ele, o velho arrebol!…

***

Foi-se tudo ao chão num instante só.

No lugar de paredes – nuvens de pó.

Perdeu-se o amor naquele momento…

***

Tudo descansa tranquilo em papel.

No lugar da casa – um arranha-céu.

A casa de Guimarães Rosa dorme no tempo…

***

PINCER, Wandick R. O Poeta pra escrever pensa um pouco, 1ª ed., 1982, pág.18

Arte encontrada na casa da escritora Maria Eneida Nogueira Guimarães / Foto: Toni Ramos Gonçalves

*Wandick Robson Pincer escreve desde os 13 anos, e publicou três livros de poesia, de forma independente: O poeta pra escrever pensa um pouco? (1982), Entranhas Abertas (1990) e Sempre (1998). Participou da Antologia dos Poetas Itaunenses, editada pela Universidade de Itaúna, em 1990. É servidor público de carreira do município de Itaúna-MG e formado em Letras pela UEMG/Divinópolis.

No Sertão de Diadorim

Por Maria Lúcia Mendes*

Visita de Maria Lúcia Mendes ao Museu Sagarana em Itaguara – MG Foto: Toni Ramos Gonçalves

Com licença de João Guimarães Rosa

Compadre meu Quelemém me escuta, não duvide, te asseguro, me escuta. Ao depois mire e veja, me dando razão nos conformes: era setembro! Aquele desparrame de fulô amarelando a mata, solão brabo desses de matar até cobra. Seguia eu por uma estrada, montando cavalo manso, quando de repente o dito cujo estacou, arfando as ventas.  No duvidoso, corpo arrepiando, fiz o sinal da cruz, finquei esporas, sacolejei as rédeas: o diacho nem buliu.

– Ara! Caminha, diabo! Caminha que eu careço mais é de chegar ligeiro – berrei, limpando a goela. Nessa hora, o que vi reconto. No razoável. Sem tirar, nem por uma vírgula que seja: na banda  esquerda da estrada, rodeada de uma cerca, serviço de escravos, vi uma tapera, aos pedaços. Mirei e te conto: rente à ela uma cruz com tabuleta de banda escrita com letras desgraçadas de tão tortas.

            Penção Cereia do mar. Aqui, nesse locau, o Zé Cumbuca sangrou o João Bigorna com sete punhalada: Deus leva a alma do João pro cel.

Cumpadre meu Quelemém é matuto o linguajar mas entendível. Ou num é? Ora pois, me benzi, rezei; o cavalo já no controlável, relinchou, deu marcha. No restante do caminho a ideia zanzou atordoada, rezei de novo segui. Eu que peno de amor por Riobaldo, o tatarana, senti foi estranheza de lembrar o que decorei no tempo de escola quando dei de pegar paixão por Bilac:

                        “Última flor do Lácio inculta e bela/ És a um tempo esplendor e sepultura.”

Folguei o peito, matei a sede num riachinho, enchi de novo a cabaça e prossegui, trotando no descaminho do chão:  

Compadre meu Quelemém vê se concorda: Tudo é Bíblias, tudo é grande sertão.

Bruna Lombardi como Diadorim na minissérie Grande Sertão Veredas Foto: TV Globo Divulgação

*Maria Lúcia Mendes nasceu em Itaúna MG. Em 1983, publicou seu primeiro livro: “Recado em pedras e pétalas”; seu estilo simples, o quotidiano visto de modo singular renderam êxito na publicação de suas obras. Recebeu prêmios literários em concursos realizados em vários pontos do país. Pertence a Academia Itaunense de Letras, Academia Municipalista de Minas Gerais e Academia Divinopolitana de Letras.

Poema da história

Por Antonio de Paula Apoli*

Dormitava alquebrado

Por sonhos alentados entre a cruz e a espada.

Pensamento longínquo, derramado,

No caminhar nas ruas de pedra lascada.

***

Ergueu aos céus o olhar,

Entregou-se à sorte atou o laço.

Avistou uma luz, quis rezar.

Caminhou para a Igrejinha do Senhor dos Passos.

***

Nos adros, as pedras-sabão

Que o congado corteja.

No estalido do bastão,

A bênção do Divino almeja.

***

Ao pisotear, a poeira se esguia

Ritmada pelo atabaque de Angola.

O retumbar, a fé que guia,

O alegrar da alma que consola.

***

Na travessia, o Sagarana

Toda obra de Guimarães Rosa.

Turíbio e Silivana, Diadorim e Taturana,

Na obra-prima

da prosa.

***

Doutorou nos Campos Gentios,

Levou tratamento assisado.

O tropel seguiu o horizonte pelos trilhos

No sossegar do andejo compassado.

***

Nas serras azuis das Gerais,

O uivar do lobo que acuara.

Campos Vertentes, Senhor Deus, abençoai

A harmoniosa população de Itaguara.

***

João Guimarães Rosa iniciou sua carreira de médico em Itaguara Minas Gerais. Para lá, se mudou com a recém-esposa: Ligia Cabral Penna. Foi em Itaguara que nasceu a primeira filha: Vilma Guimarães Rosa. Ela também se tornou escritora e escreveu Relembramentos: uma obra grandiosa que retrata toda trajetória do seu pai. Em Itaguara e toda região, João Guimarães Rosa exerceu a importante profissão de médico nas comunidades rurais, o único médico da região, naqueles idos de 1932. Foi no Campo das Vertentes, região onde fica Itaguara, que João Guimarães Rosa teve os primeiros contatos com os lavradores. Em seus atendimentos médicos, ele ficava horas ouvindo as pessoas e seus relatos. Anotava em um caderninho de bolso, todo linguajar coloquial sertanejo. Foi ali em Itaguara, que Guimarães Rosa se alicerçou para seu primeiro livro: Sagarana e toda sua obra. Em seu livro Relembramentos, Vilma Guimarães Rosa registra toda trajetória do pai. Afirma que a passagem de seu pai Guimarães Rosa por Itaguara o influenciou determinantemente para a temática literária da obra Rosiana.

— “Manuelzão, da cá, tua besta de cela arreada, quero passar na fazenda do Tonico Paulista (meu avô) para pegar uns angorás que ganhei do amigo. Depois dar uma idazinha na venda, preciso levar uns trenzinhos para Lígia, coitada, está de resguardo da Vilminha, nem tem saído porta a fora.”

Toda admirável obra de Guimarães Rosa é universalmente apreciada, ela nos leva aos lindes do sertão para viajarmos no neologismo lexical do grande mestre.

Igreja Nossa Senhora das Dores – Itaguara MG (Foto: Toni Ramos Gonçalves)

*Antonio de Paula Apoli nasceu em Itaguara-MG onde passou a infância. Entre o colégio e a fazenda, pode vivenciar bem próximo do campo a riqueza literária que o influenciou na literatura. Aos dezesseis anos, se mudou para Belo Horizonte, onde intensificou a leitura no Campo da Puc.Autor de três livros, artigos para jornais e coletâneas. Hoje reside em Goiânia com a família.

O pedantismo da impedância – Um conto rosiano

Por Nivaldo Resende

Ensimesmado, sentado na velha cadeira de palhinha que tinha lugar cativo sobre as quase apodrecidas tábuas na rangedeira varanda da fazenda que, contra tudo e contra todos, insistia em manter nos Macaquinhos, a meio caminho entre Joanésia e Dores de Guanhães, o velho Nacreto cofiava a barba comprida e esbranquiçada, cheirando a Aqua Velva, e dizia com uma certeza redondamente absoluta, ainda que desconfiadamente suspeita:

“O mundo fica estranho purdimais, Sô Jão, quando a capacitância se torna muito mais importante e necessária do que a capacidade que nos espreme de dentro para fora pela força do tempo”.

E dizia isto assim calmamente, muito mais de si para si mesmo do que para quem mais pudesse ser, conversando com os já esgarçados botões da sua velha camisa de flanela xadrez. Falava com e para os seus próprios fantasmas, ainda que, ao seu lado, picando sem qualquer pressa o cheiroso fumo curtido no melado que dentro em pouco a sedosa folha de palha de milho iria agasalhar, estivesse João Natório, um companheiro de jornada renitente nas lides campestres, tão teimoso e rançoso quanto, senão com certeza mais, ou não mais estaria lá, porque tolerar ordens exige se atoleimar dentro da própria inteligência e conhecimento.

Ocorre que a pedra do velho munho d’água que durante várias gerações moera a fubá e a quirera que alimentaram gentes e bichos de todos os tipos e estilos da Tronqueira Torta – esta era o nome da fazenda desde os tempos reinóis – cismara de repente de não mais dar conta do recado.

A profissão de lavrador de pedra mó definitivamente entrara em extinção, após um longo desuso e devido à pouca necessidade. Até que ainda havia quem ousasse escalavrar as peças de madeira macia, aquelas que faziam o moinho supitar e cuspir os subprodutos do dourado milho que era ali mesmo plantado, mas a pedra, ah… a pedra. Se uma só deles, pequenina, fizera o itabirano vate trupicar até nas palavras, o que dizer de nós e mós?

Milho fraco em pedra dura, tanto faz até que a pedra gasta. Foi quando um dos parentes da última e mais recente linhagem da família de Nacreto veio com a salvadora ideia de substituir o velho e cansado munho d’água por uma traquitana elétrica, uma modernosa coisa que produzia fubá, farelo, quirera e canjiquinha da boa e da melhor, e que fazia isto muito mais rápido do que o velho fazendeiro conseguiria dizer um trigo, dois trigos, três trigos.

Pedante, o moleque conselheiro estudava na cidade grande, e não por isso, mas creio que mais pelo topete que saía do alto da cabeça, dava a volta ao pescoço e quase se enrolava na língua, achava que já sabia tudo, e mal sabia o tamanho da fralda e para que ela servia.

E toca a discutir a potência do motor, volts e watts, a impedância, a capacitância, o disjuntor, os retentores, bitola da cabância, eixo rotor, corta-corrente, ticéteras e quetais, nefandos e quejandos. E era tudo aquilo como grego ou turco fosse para Nacreto e Natório, enquanto ouviam as explicações que quem queria instalar e de quem queria vender o que precisava e o que não precisava para substituir o velho munho d’água.

Nacreto, que a vida inteira lutara sem sustos e sem pressa com as bicheiras no lombo dos animais que criava na fazenda, para montaria uns, leiteria outros, e para comeria a maioria, tinha dificuldade em entender aquelas palavras difíceis e a urgência delas, principalmente. Cascavéis e urutus, assim como uma ou outra suçuarana ou pintada que ousasse invadir suas terras, sabia bem ele o que fazer com elas. Mas aquelas palavras, ah… batiam no seu grogomilho e devorteavam.

Às tantas, foi se enfumaçando por dentro o fazendeiro. As botinas puídas e ainda embosteladas após a tiração do leite ficavam mudando de lado, acima e abaixo, de conforme e de acordo Nacreto ia cruzando as suas impacientes e um tanto que cansadas pernas. Rangiam e rilhavam, as botas embaixo e os dentes em cima.

O fazendeiro mastigava trocos e ignorâncias verbais, mas não tinha certeza de devia de fato proferi-las ou não. Na dúvida, engolia-as, mesmo com vontade de regurgitá-las tal e qual faziam as vaquinhas e boizinhos com o seu delicioso bolo forrageiro.

Não há como lutar contra a modernidade e a tecnologia, entretanto, vez que agora são elas que movem o mundo, seja dos limpos ou dos imundos, chamem-se eles Nacretos, Natórios ou Remundos.

E mesmo tugindo e mugindo, mesmo mastigando brocas, moscas e barbantes, o velho Nacreto teve que aceitar a troca do equipamento, visto a que era grande a precisança. Tugiu e mugiu não pelo gasto, mas pelo desgosto. Fora, afinal, uma vida inteira mantendo uma relação quase de amor milharal com o munho, levando-lhe sacos e mais sacos de grãos novos e pegando em troca o cheiroso fubá, que depois virava uma quente e doce caneca de jacuba com café e queijo, virava farinha torrada, angu, mingau, farofa doce, paçoca, fubá suado e pamonhas assadas enroladas na folha de bananeira, tidas, havidas e consumidas com o nome de cubus.

Sabia muito bem Nacreto que o produto resultante do moinho elétrico era bastante diferente, não tinha o mesmo gosto do outro, nem o cheiro, menos ainda a textura. Até que servia, seguindo a teoria de que “se não tem tu, vai tu mesmo”, mas não era a mesma coisa. Com a língua amargosa, depois de muito remoer e remugir, chamou Natório num canto e disse: “Vou castigar aquele catarrento mequetrefe que veio com essa ideia de jirico”. Mal pensou, e logo fez. Chamou o indigitado herdeiro e ordenou: “Só deixo trocar o munho se, enquanto um não toma os jeitos e obrigações do outro, você moer o milho do meu fubá no pilão”.

Crente que estava agradando, concordou o jovem com a imposição. E ao que parece, cumpriu-a. Parece, não sei, porque ver, não vi. Ouvir contar, também não. E que minha língua não apodreça debaixo da terra se verdade isso não for. Só sei que, até hoje, Nacreto e Natório, pachorrentamente sentados na varanda rangente da velha Tronqueira, ainda se pocam de rir do causo. E as cicatrizes na mão do desditoso patrão da ideia não me deixam mentir sozinho, ara… A vida é um gozo, num é mermo, inhô?

Foto: Pexels

*Nivaldo Resende é jornalista e escritor. É titular da Cadeira 17 na Academia de Letras de Ipatinga e na Academia de Letras, Artes e Ciências do Brasil de Mariana, além de integrar o Clube dos Escritores de Ipatinga. Tem dois livros individuais publicados e participação em dezenas de antologias de contos, crônicas e poesias.

Receita rosiana

Por Almir Zarfeg*

De maneira descontraída e paternal, Guimarães Rosa deu algumas lições de iniciação literária à sua filhota e futura contista, Vilma Guimarães Rosa, sobre como escrever um bom conto: “Vilminha, vou te dar uma dica de escrita. Sabe o que é mais importante na hora de escrever um conto? É o começo”. A filha responde, perguntando: “Por quê, papai?”. “Para a pessoa se interessar e ler inteirinho.”

Mas, afinal, existirá uma receita para a criação de um texto literário – um poema, um conto ou uma novela – como existe para a produção de um bolo de fubá? Certamente que não. No entanto, em se tratando de Rosa, é bom levar em conta seus conselhos e considerações.

A lição prossegue: “Vilminha, tenho mais uma dica para você. Sabe qual é a outra coisa mais importante num conto?”. Vilminha, de novo: “O quê, papai?”. “É o fim. Para que a pessoa tenha vontade de ler o próximo.”

Como se depreende do diálogo acima, Rosa foi bem direto e pragmático ao orientar a aprendiz de escritora que, mais tarde, escreveria o livro de contos “Por que não?”, dentre outros. Com o jovem Fernando Sabino, o autor de “Grande Sertão: Veredas” procedeu de modo ainda mais incisivo. Ao saber que Fernando Sabino insistia em escrever crônicas, Guimarães Rosa não pensou duas vezes: “Não faça biscoitos, faça pirâmides”. Sabino não se fez de rogado e, em 1956, apareceu com a Pirâmide de Quéops “O encontro marcado”.

Independente da implicância de Guimarães Rosa, a crônica continua sendo vista como um gênero menor que, historicamente, teve cultores do naipe de um Machado de Assis, Paulo Mendes Campos, o próprio Fernando Sabino e, óbvio, Rubem Braga. Este dominou, como poucos, a crônica – essa mistura de jornalismo e literatura –, a ponto de gozar de grande prestígio na literatura brasileira como “papa” dos nossos cronistas. Uma crônica? It’s easy: o velho Braga perseguindo uma borboleta amarela em pleno centro do Rio de Janeiro, enquanto o vizinho do apto. 903 reclama do barulho provocado pelo do 1.003…

De volta aos conselhos literários, veja este proposto por Drummond no poema “A procura da poesia” aos poetas iniciantes: “Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos. / Estão paralisados, mas não há desespero, / há calma e frescura na superfície intata. / Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário”. Tal advertência foi parafraseada por um baianeiro nestes termos: “O verdadeiro sentimento poético se revela na criação/perdição/libertação e não pode, em hipótese alguma, ser confundido com o estado emotivo de quem se apaixonou à primeira vista ou simplesmente descobriu que a vida é um barquinho à deriva navegando num mar de m… O bardo mineiro estava com a razão. Definitivamente, isso ainda não é poesia”.

Rilke, nas cartas que trocou com o jovem poeta Kappus, entre fevereiro de 1903 e dezembro de 1908, foi mais, digamos, filosófico: “Não dês atenção à crítica, mas afunda-te na solidão”. No final, porém, prevalece a sensação de que estamos diante de um manual de auto-ajuda, no qual, mais que orientação estética, sobressaem os conselhos de humildade, honestidade e perseverança.

Ainda bem que a qualidade literária está acima dos gêneros, normas e rótulos. Tanto que – ao contrário de Aristóteles, que classificou os gêneros em narrativo, lírico e dramático – Bakhtin chamou a atenção para a constituição, conexão e interação dos gêneros com as atividades humanas. Ao enfatizar o caráter social dos gêneros, o teórico russo sinalizou que o conceito de gênero deve englobar as diferentes modalidades textuais empregadas nas situações cotidianas de comunicação. Oral ou graficamente.

Por outro lado, uma simples visita à obra de Guimarães Rosa – criador de pirâmides como “Sagarana”, “Corpo de Baile” e “Grande Sertão: Veredas” – vai nos revelar um artista completamente avesso à mesmice e à previsibilidade literária. Pelo contrário, trata-se de alguém que soube aliar como poucos a invenção fabular e a experimentação formal. Por isso sua obra continua causando impacto, aquém e além-mar.

Muito inventiva, densa e universal, a obra rosiana é considerada – na mesma proporção – difícil, desafiadora e hermética. Enfim, “um matagal indevassável” só para iniciados. Com certeza há exagero nisso, bem como é indiscutível que ler Rosa é diferente, por exemplo, de ler Jorge Amado. Aliás, o próprio Guimarães Rosa faz uma última recomendação: “Minha literatura é para bois, não é para ser engolida de vez”.

Foto: Toni Ramos Gonçalves / Óculos e relógio de João Guimarães Rosa em exposição no Museu Sagarana.

*ALMIR ZARFEG – ou simplesmente A. Zarfeg – é poeta e jornalista. Atualmente preside a Academia Teixeirense de Letras (ATL). Ele é autor de mais de vinte livros envolvendo os mais diversos gêneros textuais: poemas, crônicas, contos, novela, infantojuvenil e reportagem. Zarfeg participa de inúmeras instituições literárias dentro e fora do país. Iniciou-se na literatura em 1991 com o livro de poemas “Água Preta”, atualmente na 4ª edição. Nos 25 anos de sua trajetória literária, celebrados em 2016, ganhou a biografia “De A a Z”, assinada pelo jornalista Edelvânio Pinheiro. Premiado e celebrado, seu nome virou verbete de dicionários e enciclopédias de literatura, como o “Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia” e a “Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos”. Em 2017, recebeu o título de “Personalidade de Importância Cultural” da União Baiana de Escritores (UBESC).

O menino Valtei

Por Aleilton Fonseca*

Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço… – o que é a coisa mais custosa que há.      (Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas)

— Mire veja: se lhe digo, foi assim ou não foi? O homem, com ares de urutu branco, conforme narrou, e a mim me contaram o fato.  O menino Valtei, único filho de Pedro Pindó, tresvariava na malvadeza com os seres menores, esses do campo, viventes na terra e nos galhos. Era certeiro em usar bodoque, dar paulada, passar caco de vidro, atirar pedras. Se pegava em mãos, aí estrangulava todo bicho ou criaçãozinha pequena. Desse mau trabalho, tirava um jeito de estar contente.  Obrava os malfeitos e suspirava feliz. – “Eu gosto de matar…” –, ele dizia, com os olhos ruins nos rebrilhos. Era solto? Era não, senhor! O pai e a mãe repreendiam, com castigo e cascudo, davam peias no menino. De tanto que surravam o teimoso, pegaram gosto nos maltratos, cada vez mais: botavam o menino sem comer, amarravam em árvores no terreiro, sempre nuelo de Jó, fosse em tempo frio ou quente, com chuva ou com sol. Exemplavam: lanhavam o corpinho dele na taca de couro, ramos de cipó, o tanto de cortar a pele e o sangue escorrer, daí lavavam com cuia de salmoura. Com certo tempo, Valtei estava por um fio, magrelo e sofrido, em pele e osso, que podia até logo morrer. O povo falando, a notícia correu pelos caminhos. O avô soube e veio buscar. Nhô Berto trouxe o meninozito pra cá, com o tino de criar o neto, logo alegre por não estar mais sozinho no seu terreiro. De primeiro quis mesmo cuidar, com o jeito certo e, na precisão, logo amansador, mostrando onde eram o nascer e o pôr do sol. E o menino quis? Não senhor. Ele se socava nas pirambeiras, decretado pelas picadas, só pelos matos, indo dali aos demais. Apetecia-se de matar passarinho, os bodoques nos bolsos da calça curta, os olhos ariscos sobuscando os ninhos. O avô desconcertava ao reclamar, dava nele palmadas, e daí bons conselhos: que deixasse as criaturas livres no voo, soltas a cantar. Ele, por si, somente desobedecia. Cada morte valia as sovas, que o prazer de caçar superava os zelos e os ensinos.  Daí, por bondade vivida, Nhô Berto atinou com a forma de alcançar um milagre. Conversou com o Padre Antero e conseguiu lhe emprestar o neto para cuidar da horta e ajudar na Igreja, nas missas e na limpeza. Valtei, avexado em público, fez crisma e se confessou, sem sentir nenhum gosto de culpa. A penitência, para ser bom cristão, foi rezar cem vezes ao dia, repetindo os pedidos de perdão. A vida na casa de junto à igreja era sossegada. E ali ele deu proveito, que em pouco tempo sumiram os ratos, que amanheciam no quintal desencorpados, em pronto serviço de degola e retalho. Às vezes uns gatos também restavam iguais aos ratos, por simples variação do costume. Nas missas do Padre Antero, o rapazinho, já crescido, aparecia em trajes inocentes, com olhar bondoso, disposto a ajudar na purgação das almas. Auxiliava o padre com os paramentos e as obrigações de ofício, de semana a mês, daí foram uns anos. Naquela freguesia, Nhô Ananias matava boi e fornecia as carnes na feira; era pessoa de vista simpleza, um homem bom e devoto. Matava sem gostar. Já velho, um dia precisou de substituto: o reumatismo entortava sua espinha. O médico que vinha ao povoado em dia certo, recomendou aviar remédios e guardar repouso. Que deixasse o ofício, ao menos por uns tempos. Isto feito, sobreveio uma crise na feira. Havia outros açougueiros, mas a oferta pouca fez o preço aumentar. A carne começou a faltar nas mesas humildes. Não aparecia uma pessoa disposta a assumir a vaga do velho magarefe. O assunto correu de boca em boca, entrou na igreja, nas conversas de sacristia, por entre as orações. Que o padre orasse, intercedesse pelas melhoras do povo. Assim, desafiada a fé, no meio de uma homilia, o Padre Antero pediu aos céus que aparecesse um servo dignado, capaz de prover as famílias, baixar a carestia, trazer sossego e saúde aos irmãos. Foi assim, no sobredito, que um braço se levantou. O rapaz Valtei se oferecia em sacrifício, disposto a deixar o manto de sacristão para empunhar o cutelo no matadouro. Ao que o povo todo aplaudiu, como dádiva de uma graça. No serviço novo, desde logo Valtei dava excelente produção. Sem demora, nem espanto, sangrava o boi com calma e saber. Satisfação às vistas, certamente pelo prazer de levar comida aos lares. Com o tempo, se viu bem o ademais. Seu gosto era mais que sangrar o animal, também destrinchava, quase que só, desfazendo em partes, encharcado de vermelho da cabeça aos pés. Sorria alto, ao ver o bicho esguinchar. Só se via, em meio ao sangue, o branco de seu sorriso de prazer.  Notaram, porém, que ele, por seu desejo, fazia o animal morrer, matado em atroz sofrimento. Não sangrava o boi de uma vez, não por imperícia, por jeitoso modo, exibindo formas de causar mais dor, fincando o chuço com finas estocadas. Quem via, mesmo os de antes, acostumados ao serviço, muito se agasturava. No seu modo de abater havia um prazer feio de pura diversão. Isso correu pelos dizeres do povo, em toda feira, a conhecida fama: o matador famigerado. Os fiéis foram cobrar atitude ao padre. Em ordem e petição, clamaram a Nhô Ananias que retomasse o posto. Muita gente parou de comer carne, como se fosse em dia santo da quaresma. Era uma vez de mudar a história. Aconteceu assim, por bem? Não senhor, por bem não foi.  Uê-uê, então?! Adivinhe os apuros. Mandaram avisar a Valtei? Não sei, o senhor soube? Ou faltou coragem a quem se fizesse portador? Ao chegar ao matadouro, pelas cinco da manhã, o posto estava ocupado. Nhô Ananias e dois ajudantes iam começar o trabalho. O rapaz cresceu o corpo, saltou com ganas de leão faminto. Espantou todos dali, com gritos e ameaças. Que não largava o serviço! Não agora, não nunca! Ameaçado, ameaçador. Matava boi, matava gente, quem se metesse entre ele e sua faca amolada. Juntassem homens para prender sua fúria. Não havia ali. Pulou ao pátio de abate, sangrou e degolou dois bois de um zás, destrinchando as carnes com ferros e dentes, deixando tudo na sujeira do sangue, em ponto de picadinho, que nem se pudesse aproveitar. Os homens reagiram, de pacatos a prevenidos. Chamaram a força para dar cobro àquela doidera, só os homens armados! Valtei urrava, feito onça parida: “venham me pegar, que passo a faca e bebo o sangue de um por um”. Aloucado, tomado por uma voz de demônio, a bestafera das trevas. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. Era dívida de outras vidas, que agora pagava. Não sendo como lhe conto, então que explicação é que o senhor dava? Eu, de mim mesmo, nem não sei o certo ou o decerto. Valtei, cercado pelos homens, todos de tiro aprontado, não se entregava, em grande aflição. E clamava que não podia ficar sem matar, já sentia demais a falta, que precisava sangrar um corpo, ver o cheiro de sangue para acalmar seus nervos, em vício de mau prazer. Puxou a faca, e riscou no ar, diante de todos que, ali na espera, assistiam com medo e cautela. Ele encarou a multidão, e correu o fio de corte sobre si mesmo, mostrando onde ferir. E começou a dar estocadas no próprio corpo, e lanhar os braços e as costas, diante do pavor que se via nos olhos do povo. Oficiava contra si, aos pouquinhos, com estranha satisfação. O sangue escorria, borbotando, de empapar a roupa em farrapos. Ele, sem gemer, apreciava com gosto o horror e o sofrimento dos homens, mulheres e meninos presentes. Um dos homens quis acudir mas recuou, senão morria como bicho estripado. Valtei, à luz, alucinado, acertou no peito um golpe soberbo e feroz, sentindo gozo com a própria dor. Daí que se dobrou quieto, e caiu com a faca cravada no coração. Matou-se, matado por si, abatido boi brabo, após um perverso viver pelas mãos da morte.

Foto: Toni Ramos Gonçalves / Portal do Sertão em Cordisburgo -MG

*Aleilton Fonseca é natural de Firmino Alves-Bahia (1959). Viveu a infância e adolescência em Ilhéus e reside em Salvador. Desde jovem, passou a escrever e a publicar em jornais e revistas. Sua produção literária abrange ficção, poesia e ensaio. É graduado em Letras pela Universidade Federal da Bahia (1982), com mestrado pela Universidade Federal da Paraíba (1992) e doutorado pela Universidade São Paulo (1997). É professor de Literatura no curso de Letras desde 1984, na Universidade Estadual de Feira de Santana, onde desenvolve pesquisas sobre as relações entre literatura, imagens urbanas, sertão e ecologia. Participa de eventos literários e científicos no Brasil e no exterior, como conferencista, pesquisador e escritor.  Fez palestras e/ou apresentou trabalhos em universidades brasileiras e em várias instituições estrangeiras, em seis países. Tem textos traduzidos em francês, espanhol, inglês, italiano, alemão e neerlandês. Publicou cerca de 20 obras, entre as mais recentes os livros de contos O desterro dos mortos e As marcas da cidade, o ensaio O arlequim da Pauliceia, e os romances Nhô Guimarães: romance-homenagem a Guimarães Rosa e O pêndulo de Euclides. É membro da Academia de Letras da Bahia, da Academia de Letras de Ilhéus, da Academia de Letras de Itabuna, da União Brasileira de Escritores-SP e do Pen Clube do Brasil.