Dos sinos: o soar do perdão

Livro de Antonio de Paula Apoli

PREFÁCIO DO LIVRO POR CINTIA ARAÚJO

Entregue a si mesmo, o autor vai marcando os caminhos com palavras carregadas de poesia para que possamos seguir suas trilhas e sentir a beleza dos lugares nos quais se passam algumas histórias e até mesmo a realidade das mazelas sociais brasileiras que assola determinadas personagens.

No primeiro conto, “um trem corta a escuridão delineando as montanhas em um balançar solitário, levando alegria e tristeza, tangendo a nossa alma com resquícios de esperança[1].

De repente, um doce personagem nos acena: – Venha.  Vamos “subir a ladeira por uma estradinha que margeia o despenhadeiro”, e a gente “já começa a ouvir o fragor das águas rolando sobre as pedras relançantes à luz do sol principiado. O orvalho começa a umidificar nossos pés, mas os pés do personagem estão tão acostumados que ele nem sente o friozinho da manhã”.

É assim que tudo se passa na primeira parte deste livro constituído de 22 contos. Além da poesia em estado bruto, há no autor uma capacidade de mesclar passado e presente de uma forma tão singular que a gente se sente dentro da própria história, caminhando lado a lado com o narrador até mesmo por lugares nunca imaginados e tempos talvez esquecidos na soleira da porta de alguma fazenda, onde pingos de sol ainda teimam em brincar com a saudade.

A gente se vê no início do fio do tempo, ouvindo o violão tocar “Entre o medo e o perigo, desvencilhar não consigo. Sou valente, salto o muro. Sou menino. Tenho medo do escuro”.  Somos criança, correndo no riacho, aprontando travessuras numa maldade inocente, com Tomé Dídimo e seus irmãos.

Personagens enigmáticas nos acompanham durante todo o percurso dos contos, um deles “arrastando a batina preta surrada sobre a terra úmida”, sussurrando aos novos ouvidos tragédia; outro “dando amor, acariciando o corpo, saciando os desejos nas noites sombrias (…)” e, como uma Sherazade às avessas, “ouvindo as estórias longínquas e intermináveis de sua patroa”.

Mas, de repente, um homem está embevecido a olhar uma foto… Uma volta ao passado dá início à segunda parte desta obra, composta por 52 poemas, nos quais o poeta nos conduz, verso a verso, a lembranças e saudades de uma mãe, de uma amada, da infância de suas filhas, de outros tempos…

Nesse compasso, vamos sendo levados a contemplar os cabelos de Amaralina, a delicadeza de Ester e de Rosa-Rose, a doce fonte inesgotável de amor das mães a seus filhos e a amabilidade de Bruna e Juliana, até que nos vemos nas Minas Gerais, dentro da Maria Fumaça, ouvindo “O peixe vivo fora d’água” e “Amigo é coisa pra se guardar e levar no coração”. Ler Antônio é de uma doçura impertinente. Mesmo quando fala das mazelas sociais, como da dura realidade vivida por Clarice, uma de suas personagens nos contos, ou de ausências, saudades e vazios nos poemas, há sempre um enigma a ser descoberto, como se estivéssemos vivenciado o fato sob as lentes do autor que, passo a passo, vai trilhando a realidade e a natureza, o presente e o passado, como uma máquina de tecer palavras-imagens. Assim é o livro “Dos sinos: o soar do perdão”.


[1] Trechos entre aspas pertencem ao autor Antônio de Paula e fazem parte desta obra.

Antonio de Paula Apoli

Contato com autor: (62) 99198-0744 (Whatsapp)

E-mail: antoniodepaulaapoli@gmail.com

Facebook: Antonio de Paula Apoli       

Instagram: @antoniodepaulaescritor

TRECHO DO CONTO DOS SINOS: O SOAR DO PERDÃO

Subia a ladeira por uma estradinha que margeava o despenhadeiro, podia ouvir o fragor das águas rolando sobre as pedras relançantes à luz do sol principiado. O orvalho umidificava seus pés, mas estava tão acostumado que nem sentia o friozinho da manhã. Era um trajeto diário, fora aos domingos, quando ficava sentado nos adros do casarão de fronte para o aquecer do sol. A subida era mais cansativa, precisava sentar-se sobre alguma pedra para descansar, e uma das paradas era sempre bem próxima da cachoeira. As águas espumantes se espalhavam em tombos, roliçando de saltos em saltos, até o remanso bem abaixo no encontro do outro riacho.  À meia altura, no avistar, já se viam as cumeeiras do casarão e toda adjacência, mas distante do belo vistar no topo do platô. Contava a lenda que na abertura entre as duas rochas, atrás da cachoeira, morava um espírito que afugentava todos os males do lugar. Alguns homens meeiros diziam que entre a rocha de cima e a de baixo havia uma gruta sem fim. Quem ali entrasse era engolido pelo buraco do fim do mundo e jamais voltaria. Outros mais astutos praguejavam o diabo soprando as águas nos que ali ficassem em tempo. Ele observava com afeição, mas jamais se aproximava do lajeado por trás da cachoeira.

Cada passo o aproximava do topo da montanha. Era um demorado caminhar sobre o seixo ressequido, solto abaixo dos seus pés. Àquela hora, o sol ainda era morno, facilitava na subida, contudo lhe consumia bastante tempo. Tinha o lugar escolhido para descansar durante a subida. Quanto mais subia maior era o horizonte do seu avistar. Lá embaixo, as casinhas dos meeiros se esparramavam com pequenas clareiras, não muito distantes do casarão. Daquele modo de observar, eram miúdas, quase apagadas com adobes da mesma cor da vegetação ressequida. Ergueu o olhar ao céu, repentino e decidido seguir a subida. Pouco antes de alcançar o platô, olhou abrangentemente toda a vastidão do campo aberto muito abaixo dali. Alcançar o topo da montanha lhe parecia corriqueiro, mas era uma satisfação sem igual para ele. 

Naquela manhã, teve a mais formidável visão do centro do platô. Girou o olhar e apreciou a vastidão lá embaixo. Do lado poente, os campos gerais: as pequenas montanhas, os riachos, as plantações, algumas capoeiras e juquiras que intercalavam com as pastagens. Ao centro, o casarão era imponente. Mesmo distante, dava para ver toda a grandiosidade da construção. Uma mancha verde delineava até o riacho. O pomar fora sempre verde, mesmo em tempos de sequidão.  Seu casebre era o mais próximo da casa central. Isso o tornou o rapazinho de confiança do fazendeiro. Era um olhar conciso, pois do outro lado estava o mundo desconhecido, jamais visitado por ele, imaginado como poderia ser, tão desejado, um desejo inconcebível, distante. A estrada de rodagem descia a serra em curvas muitas, erma; carros, caminhões e ônibus. Os ruídos eram desiguais, a ligeirice era para ele incompreensível. Muitos desciam, outros tantos subiam combinadamente em lados opostos. Longínqua se estendia a cidade, muitas casas grudadas umas as outras, brancas na maioria, telhados opacos, algumas casas encima das outras, novinhas, tão bonitas! – Achou. (Continua no livro)

Dos Sinos: o soar do perdão/ Editora Ramos/2020/ 258 páginas

O treinador – Parte 3

Paulo Siuves e Toni Ramos Gonçalves

Um homem totalmente nu estava deitado sobre uma mesa de inox ao abrir os olhos ainda sonolentos, tentando entender o que acontecia. Percebeu que o local estava todo revestido de plástico transparente. Tentou falar algo e não conseguiu, a boca não se abria, pois, a tinha costurada, mas isso ele não sabia. Tinha os punhos presos por uma correia de couro junto à mesa. Cintos prendiam seu corpo na altura da barriga e dos joelhos.

Com a visão embaçada viu a aproximação de Galdino, que usava uma capa de chuva, além de uma máscara Shields protegendo-lhe o rosto. Por um momento enxergou com nitidez os olhos frios e mortos que o fitavam. Tentou reagir, fugir, mas o corpo não lhe respondia. Galdino se posicionou diante das pernas do homem nu. Entre elas, colocou um pedaço de madeira separando as canelas do prisioneiro, que levantou a cabeça buscando enxergar o que estava prestes a acontecer. Seus olhos tremularam em desespero. Ele inutilmente tentou gritar, porém ouviam-se apenas os seus gemidos desesperados ao perceber a marreta de cinco quilos na mão de seu agressor, que sorriu quando deu o primeiro golpe.

A perna direita torceu facilmente para o lado interno do corpo. No segundo golpe, na perna esquerda, o agressor excedeu um pouco mais na força, o que provocou uma fratura exposta. O homem nu se contorceu até perder os sentidos. A urina e restos de fezes que escorreram se misturaram ao sangue, que se acumulava na mesa. Galdino aprendera aquela tortura ao assistir o filme Louca Obsessão, onde a personagem Misery, interpretada por Kathy Bates, quebrava as pernas de seu autor favorito logo após uma tentativa de fuga.  Antes prevenir do que remediar, pensava Galdino enquanto colocava o dedo na ponta de osso lascado que emergira da perna.

***

Todo aquele mistério envolvendo a traição de Raquel começou a ser desvendado, quando Galdino soube do inusitado pedido de desligamento de Hugo do clube antes mesmo dos jogos finais. Tudo levava a crer que a traição era fruto de uma grande mentira. O ex-diretor anunciou que seria o novo empresário do goleiro e zagueiro, destaques do time, e seriam vendidos por uma fortuna para o futebol europeu. A venda dos craques lhe renderia uma ótima comissão. Nos meses anteriores, Galdino investigou a vida de Raquel minuciosamente e não conseguira nenhuma evidência que comprovasse sua traição. Até os suspeitos quando investigados, descobriu-se que seria impossível qualquer relação amorosa entre eles. E tudo levava a uma direção. O sucesso do time no campeonato traria bons negócios para o então amigo. Por isso ele se preocupava com seu retorno ao trabalho. Somente Hugo sabia a fragilidade que a ausência de Raquel provocava nele. Bastava cutucar com ferro quente a ferida mais dolorida. Quando há traição, todo homem vira uma fera.

E quando Hugo caminhava em sua direção com aquele sorriso falso, sua mão tremia de ódio mudo enquanto bebia um copo d’agua. E se fosse ele o amante?

***

Quando a raiva alcança um extremo, ou vira homicídio ou silêncio. Galdino sentia uma raiva lhe consumindo vagarosamente, desde então. Viveu aqueles últimos meses, atormentado pela dúvida, repleto de ódio. Tudo baseado em mentiras, que ganharam contornos de realidade e que ele, como um verdadeiro idiota, passou a acreditar.

Quando ainda existia a dúvida da traição, buscou nos livros, filmes e series de TV informações que orientariam numa possível vingança. Dexter e C.S.I eram as favoritas. Com toda eficiência da polícia científica nas soluções de crimes, varava as madrugadas buscando entender cada detalhe para não errar e cometer o crime perfeito. Tornou-se fã de Stephen King e Edgar Alan Poe. Então, para cometer o crime perfeito precisava agir rápido. Em pouco mais de vinte dias, Hugo embarcaria para Europa para fechar os contratos dos jogadores.

A primeira ação do plano foi comprar um carro usado, bem antigo. Depois pesquisou as estradas de acesso para o aeroporto na capital. Deveria evitar qualquer uma que utilizasse câmeras de tráfego e contar com a sorte para que nenhuma pessoa o filmasse acidentalmente por um celular, este que por sinal deveria ser evitado, pois era possível rastreá-lo pelo GPS.

Na véspera da viagem, enquanto o diretor Hugo se despedia do grupo, Galdino colocaria seu plano de vingança em ação. Combinou com o amigo de beberem algo num bar próximo ao aeroporto antes do embarque.

– Hugo, façamos o seguinte. Você deixa o carro no estacionamento por volta do meio-dia e eu o busco para irmos naquele bar que íamos durante a faculdade. Devemos brindar este momento. Vou ter que ir a capital mesmo comprar umas peças para meu carro usado.

E assim se fez. No trajeto para o suposto bar, depois de pegar o amigo conforme combinado, desviou da rota entrando numa estrada vicinal e de pouco trânsito. Num trecho da estrada parou o carro no acostamento alegando algum problema no motor.

– Que merda é essa Galdino? – reclamou ao sair do carro sentindo-se irritado. – Cara, meu voo sai à noite e estou achando que…

Antes mesmo de completar a frase, Galdino o surpreendeu aplicando-lhe uma injeção que o fez apagar imediatamente. Jogou-o no porta malas do carro, antes que alguém surgisse. Em seguida parou num posto de gasolina escondendo o celular de Hugo numa das carretas estacionadas com placa de uma cidade do nordeste. E então partiu para sua vingança.

***

Galdino esperou Hugo recobrar a consciência, acordando mais zonzo do que antes.

– Bonita, né? – disse ele se aproximando e mostrando a foto da sua bela esposa.

O diretor balançava a cabeça negativamente e começou a chorar.

– Você a queria para você, né? Sempre percebi sua inveja. Você nunca prestou mesmo. Este seu jeito arrogante, se achando melhor do que os outros, com suas mentiras e farsas.

Dizendo isso, caminhou até uma mesa onde dispunha de várias ferramentas. Escolhia a mais adequada para o golpe final.

– Essa dor que você vai sentir nem se compara com a dor que vivi os últimos meses. – disse com o machado em mãos passando o dedo conferindo a lâmina afiada.

– Prometo que vou levar o time para primeira divisão. Será minha homenagem a você.

O machado subiu e desceu numa fração de segundos até acertar a vítima. Porém, a mira foi equivocada. A lâmina entrou na boca quebrando dentes e mandíbula sem decepar a cabeça de Hugo, que era a verdadeira intenção. Irritado com seu erro proferiu outro golpe rápido e seco, desta vez no pescoço, arrancando a cabeça do resto do corpo em um jato de sangue, rolando pelo chão, revestido de plástico. Em pouco tempo o piso se cobriu com uma enorme poça de sangue.

 Deu mais uma olhada para o cadáver de Hugo ao sair do porão. Na varanda, livre das vestimentas de plástico, recebeu no rosto um vento frio que anunciava a chegada da noite, enquanto a lua cheia despontava entre as nuvens no horizonte.

***

O jogo decisivo que daria acesso ao time à primeira divisão aconteceu no estádio local e a torcida lotou a arquibancada. Bastaria uma simples vitória para que a festa fosse completa. Logo, aos dez minutos, o camisa 10 deixou claro que ainda tinha muito futebol para mostrar. Driblou três, tocou para o lateral esquerdo que errou o passe de volta, mas a bola bateu na canela do zagueiro adversário, e sobrou para o centroavante marcar o primeiro gol. A torcida ficou alucinada. Terminou o primeiro tempo e, no retorno, o time se retrancou tentando surpreender no contra-ataque. Porém, nos acréscimos da etapa final, o zagueiro sensação do campeonato, num vacilo, perdeu a bola que iria deixar o atacante adversário cara a cara com o goleiro. No desespero, derrubou o atacante dentro da área, cometeu o pênalti e ainda foi expulso. A torcida ficou em silêncio, temerosa. O craque do time adversário pegou a bola, beijou-a e, quando o juiz apitou autorizando, partiu para cobrança. O goleiro pulou para direita, ainda assim, conseguiu desviar a bola com a perna esquerda. Ninguém estava acreditando no milagre ocorrido, a torcida vibrou como nunca. Inacreditável, diziam os locutores de rádio e TV. Logo depois, o árbitro apitou o fim da partida. Os torcedores invadiram o gramado e comemoraram com os jogadores. Nesse meio-tempo, os torcedores carregaram o treinador no meio do campo exaltando seu nome:

– Galdino, Galdino, Galdino…

O treinador – parte 2

Paulo Siuves e Toni Ramos Gonçalves

Foto: Pixabay

Acordar era o pior pesadelo que o treinador Galdino vivia desde o acidente que vitimou sua esposa. Sentou-se na beira da cama, iluminado pela luz opaca de mais um dia nublado que atravessava a fresta na cortina. Uma dor de cabeça latejante o incomodava. Pegou a latinha de cerveja na mesinha em busca de um gole, mas, ao balança-la, notou que estava vazia. Dirigiu-se praticamente se arrastando entre a luz e a sombra para o banheiro da suíte. Diante do espelho, não se reconhecia: a barba por fazer, os cabelos grisalhos desgrenhados, os olhos vermelhos e com olheiras. Abriu a torneira do lavabo e ficou ali perdido em seus pensamentos. Lembrava-se das fotos recebidas no seu celular horas depois da tragédia, disseminados pelos curiosos que passaram pelo local. O impacto do caminhão desgovernado foi tão forte que partiu o corpo dela em dois. Os órgãos esparramados sobre o carro e pelo asfalto, o tronco à beira da estrada e as pernas destroçadas naquele rastro de sangue. O velório, com o caixão fechado, o impediu de vê-la uma última vez. Chorou por alguns segundos sua dor, até que um aroma de café o trouxe de volta a realidade.

– Raquel??? – Sussurrou para si mesmo, saindo do quarto em direção à cozinha.

Para sua decepção encontrou o diretor Hugo encostado na pia com uma xícara de café na mão.

– Bom dia, bela adormecida! – Saudou-o com um sorriso matreiro.

– Vai à merda. – Respondeu o treinador abrindo a geladeira à procura de uma cerveja.

– Você bebeu tudo. Senta aqui. – puxou uma cadeira – Precisamos ter uma conversa séria.

Galdino coçou a cabeça, percebeu a recente limpeza da casa e acabou cedendo.

– Organizei o seu chiqueiro, me lembrou os tempos de república, hein? Você sempre foi o mais desorganizado.

– Fala logo o que você quer e me deixa em paz…

– Meu amigo, há quanto tempo nos conhecemos? Quantas vezes passamos perrengues juntos? Você sabe que eu quero o melhor pra você, afinal, você é meu irmão, somos praticamente da mesma família, eu me preocupo com você!

Galdino e Hugo eram amigos de longa data. Estudaram na mesma universidade apesar de o treinador ter cursado Educação Física e o diretor se graduado Administração. Moravam na mesma república e, mesmo depois de formados, mantiveram contato. Há pouco mais de dois anos, Hugo o convidou para treinar um time da terceira divisão, ao saber que o amigo estava desempregado.  A parceria foi um sucesso. O time conseguiu subir para segunda divisão do campeonato nacional. Isso atraiu patrocinadores das cidades vizinhas que investiram para que a equipe conseguisse acesso à elite do futebol. Ia tudo bem; até o trágico acidente.

– Você precisa reagir. – Continuou o diretor – O campeonato está prestes a voltar. Os jogadores já estão nas atividades físicas e existe uma pressão imensa sobre mim. Preciso de você. Não pode me deixar na mão.

– A Raquel foi a melhor coisa que me aconteceu na vida. – lamentou-se com os olhos lacrimejantes.

– Como eu disse, somos irmãos, crescemos juntos, tudo o que te afeta, me afeta também. Sabe de uma coisa? Mais cedo ou mais tarde você vai ficar sabendo de toda a verdade e vai cobrar de mim a razão de eu não ter te falado, então… antes tarde do que nunca.

Galdino estranhou o tom de seriedade do amigo e fitou-lhe diretamente nos olhos.

– O que você quer dizer com isso? Desembucha logo.

– Bem, a Raquel era muito mais jovem que você. Acredito que ela estava pulando a cerca. Você sabe, essas mulheres de hoje em dia…

– Acho que você perdeu o juízo, isso sim! Invadir minha casa e levantar falso contra minha mulher morta? Ela vivia para nós. Isso é impossível. – Disse batendo os punhos fechados sobre a mesa. – De onde você tirou essa loucura? Lave sua boca para falar dela, seu cretino.

– Veja com os olhos da razão. O que ela tinha que fazer naquele local do acidente? Além do mais, quantas vezes ela saía sem lhe dar alguma explicação? Aposto que ela sempre lhe negava sexo alegando dor de cabeça.

– Ah, seu filho da puta!!! – Praguejou o treinador levantando-se e pegando o amigo pelo colarinho. – Vai embora daqui, antes que eu arrebente a sua cara.

O diretor se desvencilhou, ajeitou o colarinho e, dando-lhe as costas, se dirigiu para saída da casa.

– Tudo bem. Espero você até amanhã. Depois disso, não me comprometo mais. – disse seguido de um sorriso irônico, sem que ele percebesse.

***

Galdino andou de um lado para o outro no interior da casa, depois que o amigo saiu. Buscou explicações para as palavras acusatórias, tentando afastar a imagem da traição da cabeça. Irascível, imaginava quebrando, com o martelo de carpinteiro, o rosto do amigo, numa mistura de miolos, ossos, carnes e cabelos, o sangue nas mãos e paredes, enquanto resgatava a honra de sua amada falecida. Na sala, abraçou uma almofada imaginando Raquel. No corredor, a caminho do quarto esmurrou a parede à sua esquerda. O pior que Hugo levantara suspeitas que, até então, Galdino não percebera. “O que ela estaria fazendo naquele bairro? As saídas constantes, a falta de sexo, a gravidez sempre adiada. Se fosse verdade, quem seria o amante?” Essas dúvidas o intrigavam. O local que ela mais frequentava era a parte social do clube de futebol e, para que o amigo suspeitasse, o amante só poderia ser alguém da equipe. portanto, era preciso voltar ao trabalho.

***

No dia seguinte, Galdino saiu de casa cedo para se apresentar no centro de treinamentos. Teve uma recepção calorosa entre os funcionários e os jogadores, que aprovavam com alegria seu retorno. Hugo, quando o viu, lhe deu um forte abraço. O treinador não deixou por menos e foi logo perguntando:

– Com quem ela me traía?

– Deixa disso, homem. Temos muito trabalho pela frente. – Desconversou dando-lhe novamente as costas.

Antes das atividades físicas, houve uma conversa motivacional com os atletas no auditório e a apresentação do cronograma para os próximos jogos. Galdino ouvia imerso em pensamentos enquanto observava cada um dos atletas. Quando foi convidado para ser treinador do time, seu casamento completava cinco anos e, por causa do desemprego, o relacionamento definhava. O sucesso durante a competição e o dinheiro investido pelos patrocinadores deram uma injeção de ânimo em suas vidas. Ela sempre participava das confraternizações da equipe após as vitórias, era comum vê-la conversando com um ou outro jogador. “Mas quem seria o desgraçado?” Uma boa parte dos jogadores eram conhecidos da cidade e região, impossível imaginar tamanha traição. Para a disputa da competição vieram alguns jogadores encostados nos clubes da primeira divisão. O lateral esquerdo foi o primeiro a chegar, mas era carta fora do baralho por ser muito afrescalhado. O outro reforço foi o zagueiro afro-brasileiro de quase dois metros de altura, um verdadeiro guarda roupa. O camisa dez e craque do time era um mulherengo, tivera uma carreira de sucesso, havia jogado em times na Europa e jogar na segunda divisão era sua decadência no futebol, sempre cercado de mulheres, promovendo baladas no seu condomínio de luxo. E por último o goleiro, o salvador do time com defesas difíceis e milagrosas. Clubes europeus já demonstravam o interesse por ele e faziam sondagens. O próprio time da primeira divisão já queria o seu retorno.

Aquela dúvida só fazia aumentar sua angústia e ódio. O que ele queria era trancar todos ali dentro e tocar fogo. Assistiria a tudo à beira da piscina enquanto ouvia seus gritos de dor e desespero. Queimaria todos sem compaixão alguma.

***

A primeira partida no retorno do campeonato foi em casa e o time conseguiu vencer por um placar mínimo de 1 x 0, o que deixou a torcida animada. O jogo seguinte foi fora de casa contra o time favorito da competição e o empate diante o adversário motivou e deu esperanças para todos, jogadores e torcedores.

Galdino, durante os meses seguintes, reduziu seu consumo diário de bebida alcoólica e dedicou seu tempo a outras tarefas. Na casa herdada dos pais, ficava horas no porão onde eram guardados os produtos de limpeza, as ferramentas diversas, máquinas como furadeira, lixadeira, serra mármore, parafusadeira, motosserra, aparador de cerca viva, roçadeira, martelete, pá, enxada, todo material que precisava para fazer os reparos domésticos. À noite, quando não lia um livro, assistia a filmes ou séries de TV. Mas isso, não o impediu de procurar o possível amante de sua esposa. E sabia exatamente o que faria com ele quando o descobrisse.

Continua em 23/10/2020

O Treinador – Parte 1

Paulo Siuves e Toni Ramos Gonçalves

Divulgação

Chovia forte naquele entardecer, quando o carro estacionou em frente à casa de dois andares localizado numa pequena comunidade rural, distante apenas dois quilômetros da cidade.

Dentro do carro o motorista fez uma chamada pelo celular e através dos vidros embaçados procurou enxergar alguma movimentação na casa, como o acender de alguma lâmpada. 

– Merda, Galdino! Atenda o celular. – Irritou-se. 

Como ninguém atendeu, bateu com uma das mãos no volante do carro. O jeito era enfrentar aquele aguaceiro caindo do céu. Desceu do carro e para sua sorte o pequeno portão de acesso estava aberto, então correu até a varanda. 

Tocou a campainha. Enquanto aguardava, olhou ao seu redor e percebeu o descaso com a propriedade. Um jardim abandonado, o matagal se alastrando pela entrada e arredores. Andou pela varanda e olhando para os fundos da casa viu que o carro do seu amigo estava numa garagem improvisada. Retornou à porta e bateu forte com a mão em punho. 

– Galdino, sou eu, o Hugo. Eu sei que você está aí!

Há pouco mais de quarenta dias encontraram-se na capela do velório.  O treinador Galdino chorava copiosamente a morte de sua esposa. Não existia palavras que o pudessem consolá-lo. Ele aproveitou o recesso do campeonato e se recolheu na casa de campo que herdou de seus pais. Desde então, o diretor Hugo, amigo de longa data, era o único que conseguia falar com ele. Porém, havia três dias que suas ligações e mensagens não eram atendidas e respondidas. O campeonato estava próximo de recomeçar e existia uma pressão da diretoria pela volta do treinador, uma vez que os jogadores do time de futebol já retornaram às atividades físicas e as chances de acesso à primeira divisão da elite de futebol eram excelentes, devido ao bom trabalho desenvolvido pelo técnico Galdino. 

O diretor Hugo esperou mais algum tempo para que alguém o atendesse e não resistindo à ansiedade levou a mão à maçaneta e constatou que a porta estava aberta. Deixou que o resto de luz daquele dia cinzento invadisse a sala escura. Um cheiro desagradável o fez levar a mão ao nariz. Tentou acender a luz, mas possivelmente, devido à tempestade tudo indicava que não havia energia elétrica na casa. Chamou novamente pelo treinador, mas sem resposta. Caminhou lentamente pela sala, com objetos jogados pelo chão, latas de cerveja amassadas sobre uma mesa e alguns móveis revirados. Assustou-se quando a porta bateu às costas devido à força do vento. Lá fora, a chuva se tornara um dilúvio seguido de relâmpagos e trovões. Mergulhado na súbita escuridão, recorreu a lanterna do celular vasculhando a parte inferior da casa. Não encontrando ninguém subiu pela escada de acesso ao segundo andar.  Cada passo era acompanhado por um rangido do degrau.

Passou por um longo corredor conferindo as portas. Na última, deparou-se com o treinador apagado sobre a cama, ao lado, no chão, o vômito ressecado. Todos sabiam o amor que ele sentia pela esposa. O trágico acidente abalou profundamente seu emocional. Não tinham filhos, o que na maioria das vezes serve de consolo e estímulo para se viver o luto, e o desconsolo já era visível. As duas derrotas contra adversários considerados fracos ao fim do primeiro turno ligaram o sinal de alerta do principal patrocinador do clube. Havia muito dinheiro envolvido, principalmente para ele, o diretor. 

Sentou-se ao lado da cama pensando em algo que reerguesse o treinador. Após um relâmpago viu sobre uma cômoda a foto do casal diante da torre Eiffel. Aproximou-se e iluminando-a com o celular observou. Era uma mulher bela, sem dúvidas, impossível de não se encantar, qualquer um se apaixonaria e mataria por ela. Olhou para o amigo estendido sobre a cama e sabia que a única coisa que o traria de volta seria denegrir a imagem da esposa. E para isso, sabia que precisaria mentir. E mentir era um dos seus talentos.

CONTINUA em 16/10/2020

 

Entrevista com Wagner Andrade

Entrevistado por Toni Ramos Gonçalves

Nesta conversa com o psicólogo, poeta e escritor Wagner Andrade destacamos a importância da filosofia, psicologia e política na literatura brasileira.

1- Fale-me um pouco sobre quem é Wagner Andrade e como você está lidando com a Pandemia?

– Uma grande satisfação para mim pela oportunidade dessa entrevista. Bem, estabelecer um autorretrato, é sempre um pouco complicado (risos), pois, muitas vezes, o ser humano, de uma maneira geral, tem o costume de se esquivar de falar de si mesmo, preferindo que outros o façam ou o referenciem. Mas eu diria que me vejo como uma pessoa ativa, sensata, otimista, equilibrada nas ações e que, acima de tudo, ama as boas coisas naturais que a vida, sem artificialidades, é capaz de oferecer. Além disso, sempre me vi inclinado para a arte, principalmente a arte literária, pois sempre apreciei bastante ler e escrever. Para mim, se torna bem mais do que uma necessidade, um hábito, um verdadeiro sentido para a vida. Como possuo formação acadêmica em psicologia, há pouco mais de dez anos, procuro, ao me envolver, tanto com a leitura, quanto com a escrita, fazer uma espécie de raio x comportamental daquela personagem, com o qual lido, no momento da atividade. Quanto ao problema da pandemia, eu confesso que quando se iniciou, não esperava que fosse chegar ao ponto que chegou, principalmente no nosso país, de modo que a princípio, me sentia bastante assustado e atordoado conforme o números de casos e de mortes, ia crescendo. Toda essa questão do distanciamento social acoplado à necessidade de paralisação das atividades econômica e comercial, penso que mexe psicologicamente bastante com o indivíduo, bem mais do que muitos imaginam. Em dado momento, veio-se a estabelecer uma situação abarrotada, sobretudo, de dúvidas e incertezas, e ainda coloca em relevo, uma grande apreensão quanto ao futuro de todos nós. Mas, se por um lado, isso tudo me gera um grande desconforto, por outro, impera o consolo por saber que não se trata meramente de um problema de cunho regional e nacional, mas de âmbito mundial. Da minha parte, procuro tomar todas as precauções, sempre que possível, ou os cuidados necessários, no tocante aos hábitos de higienização e nunca deixo de usar máscara para sair, mesmo durante as minhas habituais práticas de caminhada, e busco evitar aglomerações. Afinal, não podemos pensar somente na gente, em momentos como esse, mas também nos entes queridos que nos cercam. No entanto, me vejo extremamente otimista, pois as coisas tendem a caminhar para um prisma melhor, novos e bons horizontes ainda hão de surgir, ainda mais quando for comprovada de vez a eficácia de uma boa vacina.   

Foto: À esquerda Wagner Andrade e a direita Toni Ramos Gonçalves

    2 – Qual a importância da filosofia na literatura?

– Como a filosofia atua ativamente na busca da compreensão do homem, sob todos os seus aspectos, relacionais, econômicos, sociais, existenciais, políticos, físicos, espirituais, perante o mundo, eu diria que essa importância se constrói de maneira fundamental e positiva. Eu costumo me envolver com a abordagem fenomenológica existencial que defende o ser humano, a partir da concepção que este cria do seu próprio universo, ou como esse universo é constituído com base na sua própria percepção dos fenômenos que o abarcam. Sabe-se que estamos sujeitos a constantes mudanças ambientais; pode-se dizer que somos, o tempo todo, “bombardeados” por uma série de estímulos, mas apenas alguns farão parte da constituição essencial do homem. Ainda com base nessa abordagem, a angústia existencial é inerente a todo ser humano, faz parte existencialmente do comportamento humano, e é bem diferente de uma angústia tida como patológica que vem a se aproximar do problema depressivo. O simples fato do homem não conhecer com exatidão o seu próprio futuro, viver num mundo conturbado e conflituoso, sujeito a constantes dúvidas, mudanças, transformações, apreensões, o tempo inteiro, já o coloca à mercê de sua própria angústia existencial. O homem, com isso, se vê na eterna condição de “vir a ser”. A literatura, a meu ver, não atua simplesmente como uma arte em si, mas com um papel preponderante no entendimento dessa concepção de homem diante do mundo, dos fenômenos ou acontecimentos, independentemente da época ou do contexto abordado na história. A arte vem a se tornar representativa em torno das questões existenciais do indivíduo, ou pode-se dizer, da sua própria angústia, pois de uma forma ou de outra, busca elucidar as subjetividades associadas aos conflitos internos e externos dos personagens, entre si e com o mundo. O romance “O Encontro Marcado”, por exemplo, do Fernando Sabino, até hoje, um dos preferidos da minha estante, se mostra como um “arsenal” de perguntas e busca de respostas de cunho existencial a todo o instante.   

    

Foto: Wagner Andrade

3 – Recentemente leitores questionaram uma grande editora nacional de publicar livros, de autores considerados esquerdistas. Essa briga política entre a direita e a esquerda, em sua opinião o que ela afeta na literatura?

– Não tenho uma opinião firmada completamente em torno desse assunto, pois requereria da minha parte, investir melhor em informações mais detalhadas a respeito. No entanto, devo dizer que longe de vir a se estabelecer uma espécie de cisão na nossa literatura ou de fomentar ainda mais as rivalidades e disputas já existentes entre partidários da direita e da esquerda, há todo um caráter enriquecedor em vista, Ainda mais que vivemos numa época, em que se defende e evidencia a liberdade de expressão. Opiniões, pontos de vista, histórias adversas a uma situação vigente, são sempre interessantes de se mostrar e destacar, desde que não sejam utilizados com o intuito somente de ferir ou denegrir a imagem deste ou daquele ou de algum tipo de agremiação ou ideologia social e política. A vida em si deve ser encarada, como um universo de possibilidades, e a arte literária não foge a essa regra. Independentemente de toda essa fomentação editorial ou de toda essas divergências que se acentuam, a olhos vistos, é sempre interessante a apresentação desses autores e a captação de um público interessante. Enriquece a arte. 

4 – Nos Cursos de Escrita Criativa que fiz recentemente, uma das aulas era conhecer os transtornos psicológicos para construção de personagens fortes. Assim como a filosofia, como você vê a psicologia nas obras literárias?

– Eu começo a responder a essa pergunta com uma observação que por vezes, faço. Se pudermos ler a obra de Machado de Assis, por exemplo, e analisar com maior profundidade, o contexto, assim como os problemas psico-afetivos dos seus personagens, nem precisaremos nos ater aos compêndios específicos de psicologia ou psicopatologia. Principalmente na sua fase realista, a que veio a se tornar de maior interesse para estudiosos na literatura, em geral, o autor faz uma abordagem rica, inteligentíssima e madura, na análise das características das personalidades diferenciadas. Costumam dar bastante ênfase ao chamado “enigma de Capitu”, mas a maneira como o autor explorava as peculiaridades na conduta da personagem, o seu caráter dissimulado e tudo mais, propiciou o surgimento dessa dúvida, associada à própria ambiguidade da obra em questão, Dom Casmurro. Como se sabe, essa ambiguidade veio a se instaurar em torno da sua culpa ou inocência, da possibilidade ou não do adultério. Em Memórias Póstumas de Brás, outro livro de cunho realista, o autor procura evidenciar todos os possíveis conflitos, amarguras, fraquezas, frustrações que se mostram determinantes nos destinos dos seus principais personagens. De maneira geral, os transtornos mentais, assim como as seus devidos impactos e as implicações no comportamento humano, sempre tiveram um papel preponderante na constituição de interessantes histórias literárias. Entretanto, simplesmente adquirir conhecimentos sobre um determinado transtorno psicológico, assim como todos os sintomas envolvidos para a construção de personagens intensos, não se mostra, a meu ver, como algo fundamental e essencial, visto também que é incontável o registro existente desses transtornos, mas pode vir a colaborar para a riqueza de uma dada importante obra. Além do aparato psicopatológico envolvido, deve-se levar em tamanha conta ainda todo um contexto biopsicossocial a abarcar a narrativa em si. Visto ainda que o ser humano deve ser compreendido na sua totalidade, a considerar as dimensões afetiva, subjetiva, social, interpessoal, biológica, temporal, motivacional e espiritual que enriquecem e frutificam a arte, quando essas mesmas dimensões são investidas majoritariamente.     

5 – Como você avalia a atual Literatura Brasileira Contemporânea?

– Esse é um ponto que, a meu ver, até triste de se comentar. Se por um lado, o país apresenta tantos, e diga-se de passagem, excelentes autores contemporâneos, espalhados em toda a sua diversidade geográfica, por outro, muitos (a esmagadora maioria) não são nem conhecidos, em virtude da deficiência do hábito de leitura que impera negativamente na nossa cultura e também da falta de interesse tanto da grande mídia, como da sociedade em si, pela busca de boas obras. E infelizmente, isso ocorre mesmo com aqueles que conseguem obter importantes premiações a nível nacional como o prêmio Jabuti. Basta que se diga, que devido ao minguado interesse literário por parte da grande mídia e da sociedade em geral, ganhar um prêmio dessa proporção ou magnitude não representa necessariamente garantia de sucesso total, essa é a verdade. Mas independente ou não de premiações, são pouquíssimos os autores que conseguem adquirir sobrevivência apenas com o exercício da literatura ou com a venda das suas obras. Ainda são ineficientes as inciativas que visam alterar esses rumos que a arte vem tomando ao longo desse tempo. Todavia, nem tudo são espinhos. As chamadas bienais do livro procuram fortalecer e fomentar o mercado editorial, com vistas a investir-se em lançamentos de novos talentos ou apresentação de autores conhecidos ou já consagrados. As feiras de livros espalhadas pelo país, mesmo com dificuldades, procuram fazer o seu papel. Mas o que tem me chamado a atenção é que, vez por outra, surge uma ou outra inciativa individual em algum canto do estado ou do país, de onde a gente menos se espera. Eu particularmente, aprecio bastante a literatura de cunho regional, visto a apresentar uma boa diversidade de talentos pelo interior afora, cada qual com suas características peculiares, seus jeitos e trejeitos, o seu próprio universo inserido no contexto de sua cultura, de suas raízes geográficas e etnográficas, não importando a modalidade: poesia, conto, crônica, teatro, romance, literatura de cordel… São vários “brasis” espalhados e imersos num imenso Brasil, que necessitam ser descobertos, vistos, discutidos, valorizados, conhecidos e reconhecidos nacionalmente.

Foto: Pixabay

Entrevista: Toni Ramos Gonçalves

Entrevista cedida a Edis Henrique da Silva Peres, estudante de jornalismo, para a elaboração do Trabalho de Conclusão de Curso (TCC) do Curso de Jornalismo, e futuramente publicada na revista literária Em verso, na cidade de Brasília/DF.

Inicialmente, gostaria de perguntar um pouco sobre sua trajetória. Vi que estreou na Literatura em 1996 com a novela O Último Pôr do Sol e continua publicando e ganhando diversos prêmios e menções. Como foi que se descobriu escritor e quais são os seus projetos para o futuro?

Eu comecei a “rabiscar” os primeiros textos na adolescência, lá pelos treze ou catorze anos depois de ler muita revista em quadrinhos. Minha mãe era minha ouvinte, pois ela era analfabeta e não ficava chateada com minhas estórias. Isso me mantinha quieto, para sossego dela.

Certo dia participei de um Concurso de Crônicas da Diocese de Divinópolis e fiquei em segundo lugar. Serviu como motivação. Quando novamente fiquei em segundo lugar num Concurso de Contos e recebi uma premiação em dinheiro, não parei mais.

Ganhei vários prêmios literários na cidade onde resido, Itaúna/MG, e em outras cidades de Minas Gerais e no Brasil. A novela O Último Pôr do Sol (1996) foi bem recebido pelo público jovem e foi muito rentável. Consegui até comprar um Fuscão 76 com a venda dos livros.

Depois do sucesso do meu primeiro livro, publiquei Coisas da Vida (1998) e Calíope – Contos Premiados (2003), todos produções independentes. Em 2009, saiu Contos Premiados 2, edição financiada pelo meu ex-editor.

Eu gosto de escrever contos. Me identifico mais com esse gênero textual, apesar de ter o sonho de escrever um romance, que é algo que exige muita técnica e disciplina. Poesia, não tenho paciência nem talento para escrever.

Fiquei nove anos (2005-2014) afastado das Letras sem produzir nenhum texto para me dedicar à família. Nessa minha reclusão literária, dediquei-me à leitura. Meus autores preferidos são Rubem Fonseca (1925-2020) e Sérgio Sant’Anna (1941-2020), mestres dos contos, os quais, para minha grande tristeza, faleceram agora durante a Pandemia da Covid-19. Esses autores influenciaram demais meu estilo.

Quando voltei a escrever meus contos, percebi que minhas ficções tornaram-se mais realistas. O último prêmio literário que ganhei foi em 2018, num Concurso Literário de Contos realizado em Teixeira de Freitas/BA. 

Atualmente, estou com um novo livro pronto adiado para 2021: Silêncios (se não fosse a Pandemia já estaria publicado). Neste último ano dediquei-me aos estudos participando como aluno de três cursos de Escrita Criativa e também estou cursando Letras e História.

Tenho um Blog, um espaço cultural democrático muito acessado no Brasil e no exterior (http://toni.game.blog), que me auxilia na formação de leitores e criação de público para meus textos. Nada mal, né?

O meu objetivo para o futuro é publicar um livro a cada dois anos enquanto tiver saúde e não faltar inspiração. Assim espero.

O último pôr do sol (1996)

A informação que tenho é que atualmente está procurando uma editora para publicar dois livros inéditos. Qual a dificuldade do autor em conseguir publicações e se destacar na mídia?

Descobri que não adianta somente talento (muito talento mesmo) para conseguir ser publicado pelas grandes editoras. É preciso sorte e torcer para cair nas graças de um benfeitor com muita grana e bons contatos.

No começo, após vencer alguns prêmios literários, enviei vários originais para as editoras e, quando responderam (depois de dois ou três anos), vieram com um NÃO.

Talvez se eu ganhasse um Prêmio Jabuti, conseguiria. Quem sabe? Então, eu desisti de buscar editor e abri minha própria editora com intuito de publicar o que viesse a escrever, além de oportunizar edições independentes para novos escritores. Porém, tem escritor que não aceita a autopublicação. Na verdade esse pensamento, na maioria das vezes, são daqueles que desejam lucrar com Literatura. Posso dizer que são poucos no Brasil que conseguem esse objetivo. A verdade é que não podemos deixar nossos sonhos nas mãos de outras pessoas. Carlos Drummond de Andrade e muitos outros escritores famosos receberam um não no início da carreira. Alguns publicaram com o próprio dinheiro, acreditaram em si mesmos e alcançaram o sucesso. Quantos não investem na aquisição da casa própria, na faculdade e no carro 0Km para realizar seu sonho, por exemplo? Por que com o livro seria diferente? Hoje, temos as redes sociais para divulgar nossos textos. Houve uma globalização literária. A relação escritor-leitor se estreitou e é possível uma interação mais dinâmica no universo literário. Se soubermos utilizar essa ferramenta, podemos expandir nosso público de leitores para, quando publicarmos algo, ter a quem oferecer nosso livro. Nos tempos em que vivemos, quando vejo um escritor recluso, longe dessas ferramentas por opção ou estrelismo, penso que as chances de sucesso diminuem bastante.

Primeiro certificado de Concurso de Contos (1996)

Você também ministra palestras sobre a importância da leitura. Poderia falar um pouco sobre a importância dos livros?

Na verdade, sou um péssimo orador, mas, quando recebo um convite, não recuso. A timidez é a causa dessa dificuldade e busco me aprimorar participando de eventos assim.

 Recentemente, palestrei para um grupo de alunos da Educação de Jovens e Adultos (EJA) e gostei da experiência. Um senhor com 58 anos de idade recebeu um livro de minha autoria, dizendo que nunca havia lido um livro na vida, por não saber ler, mas que agora alfabetizado poderia fazê-lo.

A leitura forma cidadãos. Falo isso por experiência própria. Cresci num bairro pobre e violento. As revistas em quadrinhos e os primeiros livros que li (Os Três Mosqueteiros e Moby Dick) me afastavam das ruas e más companhias. Não sei se estaria aqui hoje se não fosse por isso.

Sempre vejo os pais incentivarem seus filhos a ler, porém o que vemos hoje são adultos que não leem. Onde estão as crianças que são incentivadas a ler? O País perde muito com isso. Numa população de analfabetos e não leitores é mais fácil ser manipulado por governos mal intencionados. A ignorância gera votos. Além disso, também tem a questão da rotina da vida adulta: casa-trabalho-casa e não sobra tempo para uma boa leitura. A classe mais pobre é a mais afetada por isso. É certo que temos que trabalhar, mas precisamos ter qualidade de vida e nesse ritmo alucinante é quase impossível.

Também observo que temos muitos escritores (não os bons) que não leem nada… Um escritor que não lê está fadado ao fracasso. Mesmo assim, apesar das dificuldades, é preciso insistir para que a população crie esse hábito tão prazeroso. Eu leio, mesmo cansado, todas as noites antes de dormir. A leitura é algo que vale a pena ter no nosso dia a dia, pois alimenta nosso conhecimento.

Evento de premiação do primeiro certificado. Na foto: à esquerda Maria Lúcia Mendes, Toni Ramos Gonçalves, Maria Nadir de Vasconcelos (esposa) e Dr. Guaracy Nogueira de Castro

Qual o caminho que considera essencial para formar novos leitores?

O hábito da leitura só nos traz vantagens: enriquecemos nosso vocabulário, clareamos as ideias, despertamos a inteligência. O exemplo deve iniciar-se em casa. Não adianta os pais insistirem com os filhos para ler se não dão o exemplo.

Hoje, com as redes sociais, existem grupos virtuais destinados aos Clubes de Leitura, nos quais várias pessoas leem um livro e depois comentam, criando bons debates. Acho isso muito produtivo. A leitura deve se iniciar com um livro menos complexo, com um assunto que interesse o leitor. Tem livros que exigem certo grau de maturidade (Por favor, não indiquem Grande Sertão Veredas para um leitor iniciante!). Se você sugerir um livro complexo demais logo nas primeiras leituras de uma pessoa, ela, com certeza, nunca mais voltará a ler. E não, não deem ou indiquem um livro de “trocentas” páginas para um leitor logo no princípio. Optem por um livro com poucas páginas e com o tempo o próprio leitor vai procurar livros que o agradem.

Premiação em Ipatinga – MG (2003)

Recentemente o Brasil passou por períodos bem complicados em relação ao mercado do livro. Temos a crise editorial; tivemos censura na Bienal do Rio de Janeiro; censura à autora Luisa Geisler com o seu livro Enfim, Capivaras; a proibição de livros clássicos brasileiros pela Secretaria de Educação de Rondônia e agora estamos enfrentando um momento de instabilidade devido à proposta de criação de uma nova contribuição para taxar os livros. Em sua opinião, por que a literatura incomoda tanto? Qual o poder do objeto livro?

A leitura forma cidadãos, como já disse. Vivemos tempos sombrios, pois aqueles que querem se manter no PODER sabem que um cidadão bem instruído não pode ser manipulado. Manter o povo ignorante é o projeto de governo deles. Onde já se viu criar impostos sobre livros num País de poucos leitores?

Na verdade querem dificultar o acesso aos livros, aumentando o seu preço final, considerado um produto caro pelos brasileiros. Se pudessem, queimariam todos os livros em praça pública, como fizeram antes da Segunda Guerra Mundial. É algo inaceitável. Por isso, precisamos investir massivamente na Educação e incentivar sempre a leitura. Somente com ela, o Brasil vai conseguir ser um país igual para todos. Essa gente que está no PODER usará todos os recursos para impedir que o povo adquira conhecimento. Por isso, a importância da leitura. É a única arma que temos para combatê-los. Gente que questiona sempre incomoda. É o medo deles. 

Ultima premiação literária. Primeiro lugar na categoria contos , em Concurso realizado pela FEBLACA e ATL, no Rio de Janeiro. (2018)

Quais dicas você daria a escritores iniciantes?

Leiam muito e escrevam diariamente. É preciso ter disciplina. É como se preparar para uma maratona. Busquem inspiração em séries de TV, bons filmes, jornais, observem ao redor as pessoas no dia a dia. Sempre tem algo interessante.

Depois da Pandemia, viajem, vivam novas aventuras. Aprimorem com os cursos de escrita criativa e se inspirem nos melhores autores. Além disso, deem uma oportunidade os autores brasileiros contemporâneos. Eles merecem nossa leitura.

  Há algum aspecto sobre sua carreira, Literatura ou incentivo a novos leitores sobre o qual eu me esqueci de perguntar e você acha importante salientar?

Apesar de não ser simpatizante dos livros de autoajuda, vou citar Augusto Cury: “Nunca desista dos seus sonhos. Você é o único capaz de realizá-los”.

Troféu João Guimarães Rosa (2019) Na foto a madrinha Silvia Motta e Toni Ramos Gonçalves.

Reflexões para uma vida

Livro de estreia de Wilton Ferreira

As lágrimas que várias vezes

chorei serviram para lavar os

meus olhos e expandir a minha visão.

Hoje eu enxergo melhor,

aceito mais, discuto menos,

aprecio com moderação e vivo

melhor o meu momento.

(Wilton Ferreira)

Wilton Ferreira da Silva nasceu em 1959 na comunidade de Costas e residiu no povoado “dos Pintos” e “Perobas”, pertencente ao Município de Piracema/MG. Em 1969, mudou-se para Itaúna/MG.

Dedicou sua vida ao Atletismo, sagrando-se campeão em várias provas com títulos regionais, estaduais e nacional. Foi atleta das seguintes equipes: Barroca Tênis Clube, América Futebol Clube, Clube Atlético Mineiro, Cruzeiro Esporte Clube, Fundição Corradi e Prefeitura Municipal de Itaúna.

Trabalhou no Iate Clube Itaúna como Coordenador de Esportes (gestão de Edno José de Oliveira). Foi Secretário de Esportes, Lazer e Turismo em dois mandatos do Prefeito Osmando Pereira da Silva.

Trabalhou também na Câmara Municipal de Vereadores como Assessor Parlamentar no gabinete do Vereador Rosse Andrade Silva.

Atualmente trabalha no Iate Clube como Encarregado de Operações e, nas horas vagas, como Terapeuta Holístico. É pai de Marcela Cristine Silva e Caio Magno Rocha Silva. O livro “Reflexões Para Uma Vida”, sua estreia na Literatura, é uma forma que encontrou para registrar suas emoções por meio de poemas e pensamentos.

Toni Ramos Gonçalves (à esquerda) e Wilton Ferreira (à direita)

A IMPORTÂNCIA DE SABER VIVER/ WAGNER ANDRADE (PREFÁCIO)

Sabe-se que vivemos num mundo tido como volátil, surpreendente, “imediatista”, sem contar ainda a velocidade dos acontecimentos, as transformações e mudanças que sucedem a todo instante, caracterizando este conturbado período pós-moderno que atravessamos. A sociedade, de maneira geral, possui dificuldades de parar e se deter a fim de poder pensar com mais calma e profundidade no mundo em que vive ou de direcionar as mentes para questões mais imprescindíveis e relevantes do universo.

O autor Wilton Ferreira da Silva, por meio do livro de estreia Reflexões Para Uma Vida, busca, à sua maneira, inserir o leitor nos “caminhos” de todas essas questões tão majoritárias e essenciais em nossas vidas. São tantas vivências, experiências, curvas, encruzilhadas, percalços envolvidos…

No entanto, em face às suas possibilidades e alternativas, o autor vem com a proposta de nos colocar diante de distintos tipos de universo, como o social, o espiritual e o pessoal.

Dessa forma, não deixa de valorizar, entre inúmeros pontos presentes na obra, a plena capacidade de amar e de ter esperança, o poder da crença ou da fé, os caminhos e percursos mesclados aos significados, às diferentes ações e atitudes humanas, além da busca de vitórias e conquistas…

O(a) leitor(a), ao se deparar com as páginas que se seguem, por meio dos poemas e de inúmeros pensamentos curtos, se colocará diante de várias formas de perguntas e respostas que farão com que ele(a) passe a refletir melhor, de uma forma bem mais consciente, sobre o universo em que vive ou que o abarca.

Isso passa a transcender a ideia simples e banal de começo, meio e fim, como se permitisse ainda conceder diferentes sentidos à existência ou explorar o seu próprio “eu interior”, a sua própria subjetividade ou ter a possibilidade de descobrir um “novo eu”.

O que a vida se equivalha a uma verdadeira “maratona”, em que não se pode deixar que ela passe simplesmente pela pessoa, como se esta mesma pessoa não existisse.

A arte em geral, incluindo, é claro, a escrita literária, se mostra como uma importante aliada a esse processo e uma grande fonte motivadora para tal objetivo ou finalidade.

Foto: Toni Ramos Gonçalves

RAÍZES/ DE WILTON FERREIRA

Faz tanto tempo que não vejo minha roça,

minha palhoça,

o lugar onde nasci,

um povo humilde que vive do trabalho,

cultiva a terra

e nasceu para servir,

busca esperança em cada dia que amanhece

e sua prece

é dizer ao criador

lhe dê saúde, muita paz e harmonia

pois a família

precisa do seu suor.

São tantas lutas, muita fé e esperança

que o povo alcança.

O objetivo de viver

e mais um ano lá se vai e o homem diz:

“tô” tão feliz,

o que plantei deu pra comer.

Ontem eu era um menino

Por Toni Ramos Gonçalves*

Tudo o que meu pai me deu foi um espermatozoide. João Silvério Trevisan

Naquela tarde entrei no meu escritório disposto a encontrar os documentos solicitados pelo INSS para dar entrada nos meus papéis para aposentadoria. Nunca tive paciência com a burocracia. Aliás, sempre fui pavio curto e em certos casos até rompi as barreiras da civilidade. Mas naquele momento eu não tinha outra opção. O anúncio da reforma da Previdência pelo novo governo, eu já acima dos cinquenta anos e trabalhando desde os onze, não tinha mais disposição e saúde para trabalhar por mais um longo período.

– Governo maldito, que não respeita seu povo – resmungava enquanto revirava tudo.

 Um sol de verão entrava pela janela do escritório, deixando o ambiente num calor insuportável. Havia um monte de caixas abertas resgatadas da garagem, espalhadas pelo chão, e vários papéis sobre os móveis que o ventilador, vez ou outra, insistia em esparramar. Numa das caixas, encontrei fotos sem ordem, das várias fases de minha vida. Fiquei surpreso quando encontrei um envelope com várias fotos ainda em preto e branco e cartas datadas de décadas passadas que, um dia, minha irmã deixara aos meus cuidados. Nem me lembrava mais delas. Tirei uns papéis de cima de uma cadeira e, sentado, fui revendo as fotos. Uma delas mostrava minha mãe ainda muito jovem, diferente daquela que conheci, abraçada a um homem alto de cabelos encaracolados, um bigode fino, muito usado na época, numa praça em frente à antiga igreja da cidade de Aparecida do Norte. Era a segunda vez que eu via aquela foto. Minha mãe parecia feliz, com um brilho nos olhos!

Não gosto de me lembrar muito de minha infância ou nem prefiro lembrar. São várias as más recordações. Mas, aquela foto trouxe a lembrança do ano de 1982 que, de certa forma, acabou sendo um período de muitas transformações em minha vida. Faltavam dois meses para a Copa do Mundo, na Espanha. Todo mundo torcia para que o Brasil fosse, de novo, o campeão mundial de futebol. A ausência paterna em casa só me fez interessar por futebol naquela época, próximo de completar doze anos. Eu era um menino magricela, um esqueleto revestido de pele, cabelo estilo tiro de guerra, raspado no pente zero dos lados e baixo por cima.

Minha alegria era sair da escola e ficar na rua, jogando futebol e trocando figurinhas que vinham no chiclete Ping Pong. No caminho para casa, solitário, pois sempre fui uma pessoa de poucos amigos, tocava as campainhas das residências e saía correndo. Naquele dia, vi dobrar, na esquina, no alto da rua, o negro doido que a maioria dos moleques zoava. Diminuí o passo e abaixei a cabeça, olhando-o, enviesado, fingindo não vê-lo. A figura esguia, de estiradas pernas, braços sacudidos, descia no passeio do outro lado da rua. Vinha resmungando algo, pois os doidos sempre falam sozinhos. Assim que passou por mim, vendo que a distância entre ele e mim era segura, virei, coloquei as duas mãos ao redor da boca e gritei:

– Ô, Tibeiço!!!!

Ao ouvir o grito, na calma da rua, virou-se em minha direção, enfurecido, e já foi saindo no meu encalço.

– Tibeiço é sua mãe, seu pestinha.

Corri em disparada, rindo e gritando:

– Tibeiço, Tibeiço, Tibeiço.

– Esperaí, seu saco de merda. Quero ver me chamar de Tibeiço perto de mim.

Ao olhar para trás, vi que ele se aproximava muito rápido e, como o final da rua era muito íngreme, desviei na primeira esquina que me levava à Rua Bandeirante Desbravador, rua da zona boêmia. Olhei para trás e vi o doido procurando por umas pedras no chão. A rua não tinha calçamento. Ouvi uma delas zunindo a minha orelha e cair logo à minha frente. Corri o mais rápido que pude. E, antes de sumir da vista dele, ainda ouvi a sua promessa:

– Qualquer hora eu te pego, baixinho. Você vai ver o estrago que vou fazer em você.

Cheguei em casa ofegante e todo suado. Larguei a mochila no lugar de sempre e irrompi pela cozinha. Encontrei minha mãe olhando uma foto (esta mesmo que encontrei). Ao me ver, limpou, com a palma da mão, uma lágrima que escorria pelo seu rosto. Aproximei-me e, reconhecendo o homem da foto, perguntei:

– Por que meu pai foi embora, mãe?

Fiquei olhando para ela, em silêncio, aguardando uma resposta. Talvez daquela vez, ela me respondesse.

– Vou levar sua irmã na escola. Está na casa da madrinha dela – disse sem nenhuma alteração na voz e guardando a foto num envelope branco – Fiz um mexido com ovo e cebola. Está na geladeira. É só esquentar. Você vai capinar algum lote hoje à tarde?

– Vou não, mãe. Minha mão não sarou ainda – respondi mostrando-lhe as mãos ainda com os calos abertos.

– Depois vou à casa de sua avó – disse levantando-se da cadeira, tocando de leve meu ombro. Pegou uma sacola e saiu para a rua.

– A benção, mãe!

Lembro-me de abrir a geladeira e só encontrar água gelada e a panela com a comida. Preferi vasculhar o armário em busca de uma bolacha ou biscoito e vi que não havia mantimentos. Então, entendi o motivo de sua ida à casa da minha avó. Sempre voltava com algo de lá na sacola. A minha salvação, para não ficar de barriga vazia (pois na época não gostava de cebola), foi o bule com café frio que estava sempre ali sobre a mesa e encontrar um pão duro como pedra numa das latas de conserva. Apanhei o pão e o mordi. Ainda mastigando, fui para meu quarto, tirei a camisa branca do uniforme e me larguei na cama. Não entendia por que motivo minha mãe nunca falava de meu pai. Um dia, ele saiu e não voltou mais. Meses depois, ela recebeu uma carta no qual ele dizia que voltara para São Paulo e ficaria por lá. Deitado, imaginava inúmeras justificativas para o seu abandono. Aquela ausência fez crescer em mim um grande vazio. Recordo-me do meu desamparo, mirando o nada, sem conseguir uma explicação aceitável por ser órfão de pai vivo. Na verdade, nunca encontrei respostas para isso.

Acho que adormeci pensando naquelas coisas porque, quando abri os olhos, ouvi alguém me chamando longe e enxergava tudo embaçado por causa de uma fumaça que invadia o quarto.

– Toninho? Oh, Toninho? – gritava minha mãe lá no quintal.

– Oi, mãe! – respondi no piloto automático.

– Acorda, menino! Dormiu a tarde toda. Será que está com verme de novo? Vem aqui ver o que eu trouxe da casa de sua avó?

Levantei e, ao passar pela cozinha, reparei sobre a mesa um monte de mantimentos que ela trouxera da casa de minha avó, muita coisa que fazia muito tempo não entrava em casa. Fui em direção ao quintal. Encontrei-a atiçando uns galhos secos no fogão improvisado de tijolos que usávamos para esquentar água para o banho. Não tínhamos chuveiro. Para nos lavar, pegávamos um caneco e íamos jogando água sobre o corpo. No verão, o banho era frio e de mangueira mesmo.

– O que foi, mãe?

Ela virou-se pra mim e mostrou umas seis latas de nove litros de óleo vazias.

– O Tibeiço ajudou-me a trazer. Encontrei-o na rua. Tava furioso atrás de um menino que mexeu com ele, hoje mais cedo – disse-me encarando-me, desconfiada – Aí pedi a ele que me ajudasse.

Como fingi não escutar, ela continuou:

– Agora pegamos estas latas novas, trocamos pelas queimadas e podemos vender sua sucata para ferro velho. Acho que dá para conseguir uma boa grana. Você juntou muita.

Naquele momento, percebi o tamanho de nossas misérias. Toda aquela pobreza me incomodava.

– Ok. Amanhã cedo, faço isso, mãe. Vou trocar de roupa e ir lá ao campinho. Onde está minha irmã? _  perguntei.  

– Deixei novamente com a madrinha. Vai dormir lá. E você, vê se não demora. Daqui a pouco vou fazer a janta. Vou colher umas folhas de ora-pro-nóbis, para incrementar o pé de galinha.

– Tá, mãe… – respondi dando-lhe as costas seguido de uma careta de asco.

Naquele dia, caminhando para o campinho, decidi que seria alguém na vida.

Foto: Pexels

*Toni Ramos Gonçalves é escritor e editor.

ANÁLISE CRÍTICA POR WAGNER ANDRADE/POETA E PSICÓLOGO

Diz-se que a vida se faz de pequenas coisas, de modo que simples detalhes, que, tantas vezes, parecem passar despercebidos, podem ganhar uma tonalidade maior, fazendo com que as grandes e relevantes lembranças ganhem corpo, vida e sentido.

A partir de uma fotografia encontrada pelo protagonista, diga-se de passagem, já com mais de cinquenta anos e em busca da aposentadoria, veem-se desenrolar na mente acontecimentos que marcaram, de algum modo, a sua infância, levando-se em consideração a miséria vivenciada no passado, a relação com a mãe e com o pequeno mundo que o envolvia, as obscuras dúvidas em torno da ausência paterna em decorrência do abandono do lar pelo pai, além da experiência com o preto louco Tibeiço.

O fato de retornar às questões e vivências que ficaram para trás nem sempre se mostra uma tarefa fácil, ainda mais quando aquele passado, tendo em vista principalmente a fase de meninice, se vê repleto de marcas permeadas de decepções, dúvidas domésticas e alguns desencantos pueris que podem angustiar em demasia o espírito de uma criança. Em meio a tudo isso, este conto, além de sensível, por meio dessas reminiscências, nos proporciona uma aprendizagem importante sobre o que pode ocorrer no mundo de uma criança de onze anos, tendo em vista que, mesmo trazendo em si uma forma de encantamento peculiar própria do universo infantil no seu todo, nos leva a refletir sobre a sua própria percepção das agruras e amarguras sociais que o envolvem, estabelecendo como ponto de partida o caminho para a busca de mudanças por melhores dias em sua vida.

A propósito dos 30 anos da publicação de “Águas Selvagens”, de Wilmar Silva (Djami Sezostre)

Por Almir Zarfeg*

Após ler/reler essas “Águas Selvagens”, quem vai pôr em dúvida o fato de que Wilmar Silva (hoje, Djami Sezostre) bebeu nos poetas concretos e estes, por sua vez, abasteceram suas baterias em Ezra Pound e em outras tantas modernidades, inclusive locais, como Oswald de Andrade?

Não duvidemos, portanto, que os concretos levaram a sério o lema poundiano do “make it new”. Quanto ao jovem poeta mineiro, ainda que instintivamente, fez o dever de casa ao transformar simbólico em icônico no seu 1º livro solo de poemas.

Óbvio que, nas obras posteriores, o icônico, imagético e visual iriam dar o ar da sua graça de maneira veemente, mas, já nas “Águas Selvagens”, isso se apresenta mais que mera promessa estética, senão como recurso estilístico usado com propriedade. Sem detrimento da originalidade e imaginação wilmarianas.

Os 30 poemas que compõem “Águas Selvagens” – entre os quais destaco Cantiga, Os Bichos, Zoológico, Os Meninos, Gênese, Paradoxo, Carbono, Poema do Eu, Canavial e Águas Selvagens – constituem achados linguísticos (verbivocovisuais) que o poeta elabora inspirado no passado distante e afetivo, em que rio e campo se encontram, em que lembranças e (des)encontros se fundem, ser e parecer moldam as mentalidades e, também, as personas.

Essa riqueza poética, que tem nas reminiscências da infância sua razão de ser, ganha protagonismo à medida que o fazer, conjugando forma e fundo, promove uma das trajetórias poéticas mais substantivas das últimas décadas. De Minas pro Brasil, deste pro vasto mundo.

Riqueza – repitamos – que alia ao mesmo tempo lirismo, invenção metafórica, imprevisibilidade semântica e boas doses de experimentação, esta que seria intensificada nas obras publicadas nos anos vindouros.

Em menor ou maior destaque, as três funções propostas por Pound – sonoridade, imagem e pensamento – foram muito bem exploradas pelo jovem poeta, saudoso da terra natal e apegado ao rio profundo, que se atira com bravura ao turbilhão lírico, metafórico e linguístico.

Se num primeiro momento os aspectos imagético e semântico predominam na arte wilmariana, eles seriam superados e/ou subvertidos nas obras que viriam como, por exemplo, “Dissonâncias”, “Anu” e “Cachaprego”, nas quais o recurso da sonoridade (melopeia) seria explorado à exaustão, colocando poema e melodia em pé de igualdade. A experimentação formal também seria trabalhada com vistas à expressividade.

Isto posto, não queremos outra coisa senão enfatizar a relevância de “Águas Selvagens” na longa e bem-sucedida carreira de Wilmar Silva (Djami Sezostre), na medida em que o livro instaurou o início e explicitou os meios pelos quais esse projeto de linguagem aconteceu, segue em processo e fincou suas marcas na contemporaneidade.

Essas três décadas da publicação da pequena obra-prima, portanto, não poderiam passar em branco. Daí nosso tributo a ela, ainda que despretensioso, e a nossa sugestão para que ganhe uma 2ª edição. A despeito desta situação anormal imposta pelo novo coronavírus, torçamos para que as águas doces recebam uma roupagem nova com direito a acessórios revistos e ampliados.

Como diria Ferreira Gullar, a arte existe porque a vida não basta. E a obra “Águas Selvagens” existe exclusivamente por causa do talento de Wilmar/Djami!

FICHA TÉCNICA

– SILVA, Wilmar. Águas Selvagens: Asbrapa, Belo Horizonte, 1990

– Prefácio: José Afrânio Moreira Duarte (in memoriam)

– Orelhas: Lacyr Schettino (in memoriam)

– Capa/desenho: José Renato Pimentel

– Ilustrações: Olga Tukoff – Layout/arte final: Aguilar Pinheiro

Na foto, o poeta Almir Zarfeg e o livro Águas Selvagens, de Wilmar Silva

*Almir Zarfeg é poeta e Presidente da Academia Teixeirense de Letras.

ENTREVISTA: PAULO SIUVES

Entrevistado por Toni Ramos Gonçalves

Paulo Siuves é escritor, músico e poeta. É presidente da Academia Mineira de Belas Artes (AMBA) e escreve semanalmente a coluna da AMBA no Jornal Clarín Brasil. É autor do romance “O Oráculo de Greg Hobsbawn” (CBJN-2011). Coautor em dezenas de coletâneas nacionais e internacionais. Organizador das coletâneas “AO INTENTO DO VENTO, Poesias nas Montanhas de Minas – Volumes 1 e 2”, co-organizador na coletânea “Escritores do Vetor Norte da Região Metropolitana de BH” Volumes 1 e 2. É servidor público em Belo Horizonte atuando na Banda de Música da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte como Flautista. Recentemente publicou pela Editora Ramos o livro “Sonetos e Canções.”

1. Qual a importância da literatura durante essa Pandemia do Coronavírus?

Estamos vivendo um período jamais imaginado por essa geração. Afastamento social era coisa de filmes ou livros, era somente na ficção que podíamos imaginar essa situação. Estar afastados dos nossos entes queridos e dos amigos, nos torna psicologicamente prisioneiros sem crimes. Esse período de cárcere voluntário requer estratégias para não nos tornar doentes dos fenômenos emocionais que cercam essa novidade. O acesso às artes nos liberta, a arte da leitura nos tira do cárcere emocional e nos permite conviver com a gente mesmo. Acho que, para muita gente, o mais difícil tem sido conviver consigo mesmas, desafiar a si próprio a ser diferente numa rotina que se tornou a mesma por dias a fio. Os filmes duram cerca de uma hora, um disco de música tem duração parecida, uma conversa ao telefone, ainda que por vídeo, não dura mais que isso. A literatura dura o tempo que quisermos. Isso tudo torna a literatura uma atividade muito importante, faz sobreviver o ser humano dentro de nós, abre janelas para as exteriorizações mentais. Ler é libertar a alma de um corpo confinado.

2. Você faz parte da Guarda Civil Municipal, por isso convive com vários níveis de classe social. O que isso influi na sua produção literária?

As classes sociais são influencias menores do que as diferenças humanas. Influencia pouco na minha produção textual. As diferentes nuances humanas influenciam muito mais, a variedade de seres que somos me deixam perplexo, de um modo positivo. Estar na rua exercendo a atividade de segurança pública me proporciona um vislumbre diferente da capacidade do ser humano em ser ora muito bom, ora muito mal. Temos pelo menos cinco aspectos na diversidade humana; gênero, cor, religiosa, étnica e ideológica, formando os principais tipos sociais que se agrupam e sofrem diante da intolerância do outro. Ser Guarda Civil treinou minha empatia com esses grupos e me libertou para escrever de modo respeitoso sobre cada um. Sou preto, mas isso não é o norte da minha produção literária, nem ser homem, nem ser sul-americano, nem ser cristão, nem ser hétero, nem ser pobre, nem ser cruzeirense, nem ser qualquer outra coisa. Posso criar um personagem que tenha ideologia político partidária de esquerda, de direita, de centro, ou apartidário. Estar nas ruas e ter esse olhar de quem normalmente é rotulado como rude, violento, entre outros adjetivos, e ser músico e poeta, me permite ter empatia com pessoas em situação de rua, situação de vulnerabilidade social, e também com pessoas na outra ponta do cordão social. O nível sócio cultural da pessoa humana pouco influencia na minha produção literária, a diversidade humana sim, isso me influencia muito.

3. Você é músico e poeta. Como você lida com essas duas artes? E uma arte influencia a outra?

Isso é estranho responder, porque todos esperam que eu diga que sim, que a poesia musical influencia diretamente na poesia literária, mas não. Uma não influencia intrinsecamente na outra. Não componho meus poemas de modo que possam ser musicados, nem componho músicas que fiquem bonitas quando recitadas. Eu até queria que todos os meus poemas tivessem o ritmo cadenciado da música, e queria poder recitar as músicas que compus como quem lê um belo poema, mas são coisas desligadas na minha mente. Claro que me inspiro ouvindo música e crio poemas, como “Ishtar”, e o contrário também acontece. Mas, não há uma regra que me contenha entre as margens de uma constância de produção. Faço versos livres, conheço a teoria da poesia, mas faço poemas livres dessa teoria. Consequentemente, sou livre para criar poemas com ou sem ritmo e cadências, entre outras exigências da música. Mas sou prisioneiro da música e não da literatura. Posso passar um dia inteiro sem ler um bom livro de literatura, mas não sem ouvir música, não fico sem cantarolar por mais que alguns minutos, jamais. Musica renova as células do corpo!

4. Como você explica essa explosão antirracista pelo mundo?

 Não há explicação. Sinto uma profunda tristeza ao pensar que o mundo ainda vive essa imbecilidade de intolerância racial. Não precisaríamos pensar em políticas antirracistas no século XXI onde já fomos ao espaço, ao fundo do oceano, já desvendamos a cura para doenças físicas e psicológicas, evoluímos tecnologicamente em cinquenta anos mais rápido e profundamente do que em quinhentos anos. Mas, ainda convivemos com racistas. Dividimos espaço com idiotas que não entenderam que somos todos seres humanos, que um vírus mata igualmente a pretos, brancos, amarelos e pardos. Mata americanos, asiáticos, africanos, europeus… que a fome não tem nacionalidade, que a morte não faz acepção de Pessoas, ela chega para todos! Não há explicação para esse fato. Assim como para o machismo. Infelizmente, vou ter que ensinar o perigo dessas práticas para os meus netos e conversar com as crianças que eu tiver acesso sobre esses problemas da sociedade em que vivemos, problematizar isso para que elas cresçam com a capacidade de dizer “não” à intolerância social, esteja essa intolerância no nível que tiver. As políticas públicas poderiam se preocupar apenas com problemas do século XXI para melhorar nossas vidas, não com problemas do século XIX e XX. Contudo, acredito que vamos chegar lá. A história é um retrovisor para consultarmos o que aconteceu, não é um lugar para vivermos. Tenho que ter cuidado com o que vou dizer; não está acontecendo um boom contra o racismo. Está acontecendo um boom de informações, a internet está colocando isso diante dos nossos olhos via smartphones causando comoção que antes não existia. A pessoa preta sofria sem que houvesse espectadores. Hoje em dia ela sofre diante das câmeras de todos os lugares. Sofremos do mesmo jeito que antigamente, a diferença é que está sendo filmado. O preconceito racial continua existindo do mesmo jeito que há centenas de anos. A discrepância acontece com a possibilidade de não precisarmos ser os denunciantes. A denúncia acontece pela internet, via imagens gravadas por câmeras de segurança, por câmeras de celulares, por câmeras de automóveis e de capacetes de motocicletas, não está escondido, ao contrário, está escancarado. Está na timeline das redes sociais, e não há como esconder isso via “jeitinho” financeiro. Não sou militante da causa negra porque não sou negro; eu sou preto. Uma coisa que precisa ser modificada na educação infantil, é que não somos negros e não precisamos da comiseração de todos os povos. Outros povos também foram humilhados e escravizados no Brasil, não com a mesma proporção, mas eu não fico medindo o tamanho da minha dor comparando com a dor do outro povo escravizado. Sou a favor das cotas, e sou a favor do reconhecimento pelo governo brasileiro cometido contra meus ancestrais. No entanto, eu não vou viver nos porões dos navios negreiros para comprovar que meus avós e bisavós foram subjugados, torturados, mortos por brancos. Quero igualdade entre os brasileiros, quero oportunidade para os pretos nas periferias, quero que parem de matar os jovens pela cor da pele, quero que acabe a discriminação no mercado de trabalho, porque pretos tem a mesma capacidade que brancos, amarelos, e seja lá qual for a cor da pele. Quero que a mulher e o homem pretos tenham a oportunidade de ir para Elysium serem curados das suas doenças. Não quero que meus descendentes subjuguem outras pessoas por causa da cor da pele e nem por outro motivo qualquer, quero que meus descendentes e seus descendentes possam viver em harmonia numa sociedade justa, com políticas públicas que garantam a sobrevivência dos brasileiros como um todo. Vamos todos para Elysium sem esquecer que viemos contrabandeados nos navios negreiros, para que essa história não se repita com nenhum outro povo da terra, para que tenhamos os olhos para ver o retrovisor e aprender naquele espaço de experiências, mas possamos ver o futuro e desejar um horizonte de expectativas permeado de justiça e paz. Num futuro bem próximo, teremos uma sociedade que não vai precisar de luta racial entre seres humanos porque somos exatamente isso todos da raça humana.  

5. O nosso melhor escritor de literatura de gênero é Machado de Assis. Hoje é possível dizer isso apesar de ainda haver certo preconceito. Qual a importância da cultura afro-brasileira na construção de nossa história?

Somos descendentes de uma montoeira de nacionalidades, temos influência de um sem fim de lugares e culturas. Machado de Assis pra mim é a síntese dessa mistura cultural. Ele simplesmente escreveu em todos os gêneros; folhetim, dramaturgia, contos, romances, poemas, sonetos, textos jornalísticos, críticos, teatrais e etecetera. Um humanista chamado Harold Bloom disse que Machado foi o maior escritor negro de todos os tempos; quem sou eu para contradizer esse cara? Assis foi uma sumidade em seu tempo, logo cedo alcançou sucesso com seu modo de escrever. Para falar de alguém que simplesmente foi fundador e primeiro presidente da Academia Brasileira de Letras, têm-se, primeiro, que fazer reverência. Você me pergunta sobre a importância da cultura afro-brasileira na construção de nossa história. A magnitude da influência cultural de povos afrodescendentes é inquestionável, não existirá meios para negar isso. No entanto, eu sou a favor do crescimento dos povos, do reconhecimento da importância contributiva de cada povo que ajudou a construir nossa nação. Nós somos influência para muitas nações ao redor do mundo; tanto na América do Sul quanto na África e na Europa também. Não vou nominar para não causar conflitos na academia (risos). Como a pergunta é sobre a cultura Afro-brasileira, tenho a impressão de que o brasileiro tem receio de reafirmar sua raiz afro, porém, não é o suficiente para evitar que usem o corte do cabelo, as roupas, os acessórios tanto femininos quanto masculinos, etc. tudo faz parte da cultura, mas, quando falamos de cultura literária, a coisa muda um pouquinho. Não consumimos literatura de países africanos como de outros lugares. Há uma lei, a 10.639 de 2003, que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira nas escolas e cujo objetivo é desconstruir o preconceito étnico-racial no âmbito do espaço escolar, uma legislação muito recente para que o efeito seja efetivo, embora o Dia Da Consciência Negra tenha vingado, apesar dos protestos até mesmo de pessoas pretas. Claro, temos que ter consciência multicolorida, porém a distorção histórica precisa ser corrigida, e isso começa pela cultura. Valorizando a cultura afro-brasileira, estaremos dando um recado para toda a nação que é a seguinte: “- Brasileiros, valorizem nossos ascendentes, seja lá qual for à origem deles”. E teremos uma sociedade que pensa o futuro a partir das escolhas que fazemos no presente tirando lições das histórias dos nossos antepassados. Acertadas ou não, são histórias que ensinam a sermos melhores no futuro. Ser melhores significa entender que o africano não é o preto pobre que vemos retratados na televisão brasileira, mas, homens e mulheres com sabedorias, com riquezas, com histórias maravilhosas como as de outro povo qualquer. A cultura afro-brasileira é ampla e contempla a música, a literatura, a culinária, a moda, a religião, a política, o teatro, o cinema, o jornalismo, enfim, ela está em tudo e em todos os lugares desse país continental. Estudar esses costumes predominantes é, para mim, valorizar a formação pluriétnica dessa pátria onde cada cidadão contribui de modo multicultural para a construção de uma sociedade verdadeiramente democrática.

6. Como presidente da Academia Mineira de Belas Artes, como você define a atual produção literária brasileira?

Não posso definir esse momento como crítico, não sou crítico literário. Mas, percebo uma explosão de estilos literários muitos saudáveis. Temos literatura para todos, crianças, adultos, para todos os níveis escolares, para escritores de todos os níveis financeiros. Hoje em dia pode-se publicar com menos mil reais, as editoras estão se adaptando aos novos tempos, estão produzindo em menor quantidade e, com isso, dando acesso à produção editorial a mais pessoas. Claro que a dificuldade na distribuição livreira não foi superada, mas empresas como a Amazon estão chegando, estão fazendo os livros físicos e virtuais chegarem a mais mãos, independentemente da escolha de plataforma para leitura. Há pessoas que gostam do livro físico, eles entregam, gostam da leitura em meio digital? Eles entregam. Há gente que gosta do meio termo? Enviam o kindle e entregam os livros em e-book para uma experiência de leitura quase física. O mundo inteiro vive essa explosão de opção literária e o Brasil não está à margem disso. Tenho amigos e amigas que doam livros num volume que impressiona. O projeto Santa Leitura, que iniciou no bairro Santa Tereza (por isso o nome), criado por minha amiga Estella Cruzmel, é um exemplo disso, são milhares de livros distribuídos em dez anos de biblioteca na Praça. A escritora Lin Quintino distribui livros nas portas dos condomínios da região sul de Belo Horizonte, deixa livros de graça pra quem quiser ler. O Projeto Abrace Um Livro, da Confraria de Poetas Belo Horizonte, capitaneado pelos escritores Irineu Baroni, José Hilton Rosa e Marcia Araújo, é outro exemplo do que estamos falando. Tudo isso para levar ao leitor experiências de leitura cada dia mais diversificada, dos clássicos aos contemporâneos, dos livros mais antigos da história aos lançados mais recentemente. Além dessa distribuição gratuita para introduzir novos leitores a esse mundo fantástico, há também plataformas que fazem com que mais pessoas se tornem escritores. Isso pra mim é excepcional, porque mais facetas da cultura brasileira estão sendo registradas, mais coisas do cotidiano que são vivenciadas por escritores de todos os cantos do Brasil estão sendo registradas. Acho ótimo esse momento da literatura brasileira. A confecção de um livro deixou de ser privilégio de ricos e agora está ao alcance de todos que querem deixar seu legado. Muita gente questiona a qualidade do que está sendo publicado, eu não. Estamos numa democracia, e a definição de “democracia” passa por aí, isto é, regime em que não existem desigualdades ou privilégios de uma classe sobre a outra, a democracia permite que os cidadãos se expressem livremente. Há de se ter responsabilidade, mas isso é assunto para outro momento.

O escritor Paulo Siuves / Foto: do próprio autor