Mariana Amália do Rego Barreto (Enfermeira) Foto: Domínio Público
No Dia Internacional da Mulher quero destacar algumas das inúmeras mulheres guerreiras e grandes heroínas de nossa pátria que de alguma maneira contribuíram bravamente na Guerra do Paraguai (1864-1870), o conflito mais sangrento da América do Sul.
O exército paraguaio invadiu o Mato Grosso em 1864, e diante a fuga dos militares brasileiros, deixaram a população a mercê das atrocidades dos invasores que saquearam, mataram e estupraram. Coube ao Império brasileiro, que não possuía um grande exército (16 mil homens mal treinados e mal armados) apelar para o espírito cívico de sua população, criando Os Voluntários da Pátria. Fizeram inúmeros apelos e promessas (que ao término do conflito não cumpriram) para quem se alistasse.
E um destes voluntários foi Antônia Alves Feitosa, mas conhecida por Jovita, de dezoito anos, que nasceu em Brejo Seco no Ceará. Ao saber das violências que os invasores cometiam contra as mulheres, não hesitou e foi se alistar em Teresina, no Piauí. Ao chegar à cidade vestiu trajes grosseiros de homem, cortou os cabelos com uma faca, tomou um chapéu de couro e se alistou. Porém, o seu disfarce durou pouco, pois foi logo reconhecida por outra mulher, devido aos furos de brincos nas orelhas.
Após os interrogatórios realizados pelos comandantes, surpreendidos pela coragem e bravura da jovem que queria combater os invasores guaranis, aceitaram-na como voluntário no posto de segundo sargento e juntamente com outros praças saíram em direção ao Rio de Janeiro. Durante todo o trajeto foi saudada por onde a tropa passava (Pernambuco, Bahia). Todo mundo queria conhecer a nossa Joana D’Arc. Incentivou homens e mulheres a se alistarem. Teve uma criança de nove anos quis se alistar, logicamente sem sucesso.
Porém, ao chegar ao Rio de Janeiro, veio a decepção. O alto comando do exército não a aceitou como combatente destituindo-a de seu posto e em compensação ofereceram a Jovita um cargo como enfermeira, que foi rejeitado por ela. Decepcionada, ficou no Rio de Janeiro e sem recursos financeiros acabou se prostituindo. Em 1867, após o seu amante, o engenheiro galês Guilherme Noot, partir para a Inglaterra, sem dela se despedir pessoalmente, acabou cometendo suicídio com uma punhalada no coração.
Além da trágica história de Jovita, a Guerra do Paraguai nos apresentou outras heroínas. Entre elas Mariana Amália do Rego Barreto, 18 anos que também foi aclamada em praça pública ao se alistar; Isabel Maria da Conceição, de 22 anos que queria acompanhar o irmão já praça; Joana Francisca Leal Souza, que também chegou ao Rio de Janeiro ao lado de Jovita; A baiana Ana Néri que acabou se tornando patrona dos cursos de enfermagem e em 2009, foi a primeira mulher a entrar para o Livro dos Heróis da Pátria; Maria Francisca da Conceição, mais conhecida como Maria Curupaiti, que acompanhou o marido no front, que assim como Jovita, cortou os cabelos e se enfiou na roupa do marido e partiu para o combate (Curupaiti, foi a maior derrota dos aliados da tríplice aliança formada por Argentina, Uruguai e Brasil). Ela pegou a arma do primeiro soldado abatido e atacou. Ao ver que o marido foi morto por um tiro na testa continuou a lutar até ser ferida em combate. No hospital descobriu-se que era mulher e foi aceita como combatente.
Outras mulheres à paisana seguiram as tropas brasileiras, onde filhos e maridos se alistaram e auxiliavam de alguma forma nos arredores dos acampamentos. Ao fim da guerra, as viúvas dos combatentes ainda enfrentariam a miséria, pois o governo não cumpriu com o prometido e um destes compromissos era o pagamento das pensões. A guerra continuou, porém noutro cenário, numa sociedade totalmente patriarcal, jogadas a própria sorte.
Por isso a importância de se perpetuar a memória destas guerreiras esquecidas na história deste país. A elas toda justiça e nosso reconhecimento como heroínas.
O inspetor Delano observava, da janela de sua sala na Delegacia, o horizonte montanhoso daquela cidade encravada no vale. Era uma manhã cinzenta e bebia um café sem açúcar na tentativa de amenizar os efeitos da ressaca das cervejas da noite anterior. Tinha saudades do mar e dos tempos em que trabalhou no litoral carioca. Amargava a solidão da viuvez e vivia constantemente com a cabeça cheia de recordações da esposa e do filho. Na verdade, queria poder voltar no tempo e consertar os inúmeros erros cometidos na sua conturbada vida. Naquele instante, o detetive Salgado entrou na sala balançando alguns documentos.
– Encontrei o que o senhor me pediu. – disse fechando a porta.
– Vamos dar uma olhada. Quem investigou no princípio pode ter deixado passar alguma coisa. Precisamos passar um pente-fino em tudo de novo. Ninguém comete um crime sem deixar rastros. Na maioria das vezes, se enrolam.
Sentaram-se em lados opostos e começaram a examinar os papéis. Os dois conferiram os documentos, lendo e relendo depoimentos da primeira à última página. Após um bom tempo de análise e várias xícaras de café, o inspetor fixou a atenção numas certidões de óbito que visivelmente deixaram-no intrigado.
– Você sabia disso? – perguntou entregando os documentos ao detetive, que leu em seguida.
– Estes documentos foram anexados recentemente. Veja a data. Não constava nas primeiras investigações. O senhor acha que…
– Não faz sentido… Ninguém avisou nada. Muito estranha esta história. É possível que exista alguém aqui dentro da Polícia eliminando ou plantando provas. O melhor a se fazer é mantermos tudo em sigilo e irmos agora mesmo averiguar essa informação. – interrompeu o inspetor levantando-se para sair. – Estou com um mau pressentimento sobre isso tudo.
1950
A chuva naquela tarde fustigava a Serra da Misericórdia. O vento estava tão forte que chocalhava janelas e portas.
Ao ver as velas do altar se apagarem, Irmã Ludmila despertou do seu transe espiritual e voltou-se na direção da porta de entrada da capela. Com os olhos aterrorizados, viu um homem parado nela, que começou a caminhar lentamente em sua direção. No primeiro momento, ela não conseguia ver o rosto dele.
Ele esperou na penumbra. De repente, fez aparecer uma faca na mão direita. Um relâmpago clareou por instantes o recinto.
– Dr. Dumont??? – reconheceu a freira, antes de se ouvir o estrondo do trovão.
As palavras foram recebidas por ele em silêncio. Havia uma expressão sombria em seu rosto. Seus olhos estavam frios e mortos como de um homem perverso.
– A culpa foi sua, toda sua. – acusou o médico. – Acreditei na sua fé e vi minha esposa e filha morrerem. A senhora disse que tudo daria certo.
– Meu amigo… Foi uma fatalidade. É difícil entender os desígnios de Deus. Às vezes, você precisa aceitar as coisas como elas são. Devemos manter nossa…
– Cala a boca, freira maldita! – gritou. – Eu perdi tudo o que era valioso para mim. E depois, tiveram a audácia de insinuar que eu havia engravidado a senhora. Imagina… No princípio, estava cego sobre de quem realmente era a culpa. Com o tempo descobri que a senhora era a única culpada. Mas aí a senhora sumiu, e meu ódio só aumentou. Fiquei todo esse tempo esperando por este momento.
– Meu Deus, Dr. Dumont, não se deixe levar pelo mal. Você pode recomeçar sua vida. O que aconteceu foi a vontade de Deus.
O rosto do médico se tornou ainda mais sombrio. Via-se em seus olhos uma fúria incontida. Então, ele começou a se aproximar lentamente.
Irmã Ludmila recuou de costas, correu os olhos pelo interior da capela. Não tinha para onde fugir. Então se ajoelhou e, segurando seu terço, começou a rezar novamente, como sempre fazia nos momentos mais difíceis.
– Eu nada sou, mas o redentor Jesus Cristo tudo é e por Ele eu me torno poderosa. Pelos poderes santos de Cristo, o diabo foge como antes fugiu da cruz…
Aquela oração serviu ainda mais para irritar Dr. Dumont que, num súbito momento de fúria, ergueu a faca mirando a jugular dela.
Mas antes que pudesse desferir o golpe fatal, o detetive Salgado o dominou por trás segurando seu braço. Sem entender o que acontecia, o médico tentou se livrar. Mesmo sendo fisicamente mais fraco, ele se transformara numa fera e deu muito trabalho ao policial, que minutos depois o imobilizou no chão.
– Irmã, a senhora está bem? – indagava o inspetor Delano.
– Obrigada, meu Deus, por não me abandonar! – clamava e chorava a freira, ao mesmo tempo em que o abraçava e erguia as mãos ao céu.
Lá fora continuava chovendo furiosamente.
1950
Quando o inspetor Delano e o detetive Salgado aproximaram-se da residência do Dr. Dumont, não imaginaram que passariam o dia seguinte prestando depoimentos e informações à polícia local, que pertencia à jurisdição do Convento. No dia anterior, ao ver o médico saindo no carro, decidiram segui-lo.
Ele tomou o caminho da Serra da Misericórdia, como esperado. Desde a conversa deles no bar, o inspetor achou suspeito sua atitude. Pensava que ele estava envolvido amorosamente com a freira, devido aos boatos de uma possível gravidez. As certidões de óbito da esposa e filha do médico, que surgiram inexplicavelmente nos arquivos, não deixavam dúvidas de que poderia ter muito mais coisas envolvidas. Não imaginava que ele estava prestes a cometer um crime.
Sobre a noite do desaparecimento da freira, o inspetor percebeu que Irmã Ludmila escondia algo, após confirmar que fora simplesmente transferida a pedido dela. Não mostrou nenhum interesse em retornar a cidade e também não queria mais ficar lá.
O inspetor interveio, alegando total responsabilidade do Convento, caso algo pior acontecesse com ela. Diante disso, o sacerdote responsável informou que ela seria transferida para um asilo hospitalar no sul do estado naquele mesmo dia, o que o tranquilizou.
Enquanto a freira partia, viu o inspetor Delano colocando a mão num dos lados da barriga que lhe doía. Ela se aproximou, tirou uma correia que tinha na cintura e falou:
– Leva esta correia para você. Quando sentir alguma dor, coloque-a e reze para Santa Filomena. A dor vai passar. Não falha. E vou rezar para você, pois sei que está precisando. Obrigada por tudo. Vocês dois são os anjos que Deus enviou para me proteger.
Irmã Ludmila sorriu para os dois policiais e, ao lado de dois outros padres, entrou num Chevrolet 1940 rumo a uma nova vida.
– Essa freira tem qualquer coisa de diferente… – disse o inspetor ao colega detetive.
1950
Arthur se espreguiçou na cadeira em seu escritório, feliz com as notícias que lera sobre a prisão do Dr. Dumont e o paradeiro da Irmã Ludmila. Graças às raízes infiltradas da Irmandade dos Obreiros, seu plano corria muito bem. Tinha certeza de que a freira jamais falaria nada sobre o fim que levou o enfermeiro Betinho e dificilmente voltaria a cidade. Estava cada vez mais distante, e o tempo a colocaria no esquecimento. A ideia de aproveitar a fragilidade do Dr. Dumont, diante da morte da mulher e da filha dele, manipulando-o e fazendo crer que a verdadeira culpada fora a freira, havia sido genial. Uma pena não a ter matado. A Irmandade não a queria morta. Queria somente afastá-la. Por isso, fez aquela tentativa por conta própria. Mas nem tudo é perfeito, e o momento não era dos piores. A obra do novo hospital estava prestes a iniciar-se, e sabia que mais nada e ninguém poderiam detê-lo. Acendeu um charuto e, para acompanhar, colocou uma dose de uísque no copo.
Uma batida leve soou na porta do seu escritório.
– Entre. Está aberta. – avisou.
Um homem gordo, de bochechas coradas, suando a testa aos montes e desajeitado entrou com uma pasta em uma das mãos e projetos enrolados na outra.
– Desculpe o atraso, Sr. Arthur. – disse, tirando o chapéu.
– Ah, você é o novo empreiteiro, certo? A Irmandade recomendou muito bem seus serviços para a obra do hospital. Como é mesmo seu nome?
– Honório, senhor! A seu dispor. – respondeu estendendo-lhe a mão.
O inspetor Delano saiu do prédio da Delegacia acompanhado do jovem detetive Salgado. Uma chuva fraca havia caído durante a maior parte do dia e no horizonte viam-se alguns vestígios de estiagem.
Atravessaram a rua e cruzaram a praça ao som das badaladas do sino da igreja. Iam em direção ao bar, local que frequentavam quase diariamente após o expediente.
O inspetor era um homem de cabelos e barba brancos, olhos azuis, com bolsas embaixo deles, e nariz cheio de vasos vermelhos como de quem bebe. Beirava os cinquenta anos, mas ainda era forte como um touro.
O detetive Salgado era um rapaz moreno, de estatura mediana, costas largas e duras, como se fosse uma parede de músculos.
A cada dia, o inspetor se apegava ao novato que, apesar de não se parecer fisicamente, lembrava seu filho morto na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.
O bar estava lotado como sempre. O vozerio e as risadas dominavam o ambiente. Alguém desafinava numa sanfona.
Delano e Salgado se enfiaram no meio de um grupo de trabalhadores da fábrica de tecidos, sentaram-se no centro do balcão e foram logo pedindo uma cerveja.
Como sempre, os curiosos e fofoqueiros começaram a fazer inúmeras perguntas sobre fatos corriqueiros que aconteciam na cidade, momento em que os dois ficavam olhando para um lado e outro, surfando na onda das perguntas. De repente, no meio da algazarra, ouviu-se:
– Posso conversar com o senhor em particular, inspetor?
Ele se virou e se deparou com o Dr. Dumont.
– Claro, doutor. – disse, conduzindo-o até a uma mesa junto à parede, onde se sentaram. – Quer uma cerveja?
– Não, obrigado.
– Pode falar. Aconteceu algo?
– Alguma novidade no caso da Irmã Ludmila? – perguntou encarando-o.
Depois de quase dois anos, o sumiço da freira aos poucos caía no esquecimento. Ninguém mais ligava ou se preocupava. Na verdade, nem chegou a ser notícia de jornal. Repercutiu somente nas mesas de bares e correu de boca em boca nas esquinas da cidade. Ninguém entendia como uma freira desaparece no meio da noite, numa viatura policial, e ninguém sabe do seu paradeiro.
– Como você sabe, me transferiram para esta Delegacia seis meses depois do desaparecimento. As investigações estão paradas há um bom tempo e nunca me delegaram nada. – respondeu o inspetor Delano, franzindo a testa enrugada.
– E o enfermeiro? Alguma notícia? A Igreja se pronunciou? Nada, nada?
O inspetor limitou-se a balançar a cabeça negativamente. Após alguns segundos calados, perguntou:
– Por que o senhor se preocupa tanto com aquela freira? Aquele boato de que ela estava grávida de um médico tem a ver com isso? – insinuou o inspetor.
– Isso é uma blasfêmia! – irritou-se o médico. – Aquela mulher era uma santa. Cismaram que a barriga crescida era gravidez. Na verdade, ela estava doente. Tudo leva a crer que ela tinha um cisto no abdome. Eu mesmo a examinei e me prontifiquei a realizar o tratamento.
Permaneceram em silêncio por mais alguns segundos. O inspetor Delano, constrangido, acendeu um cigarro. Ofereceu um ao médico que o recusou.
– Bem… – retomou a palavra o policial. – Talvez tenha algo que possa lhe interessar. Mas só vou revelar isso para o senhor devido à amizade que tinha com seu saudoso pai, ok? Não sei se é útil, mas já pode ser alguma coisa.
– Diga.
– Descobriram um cemitério clandestino numa fazenda há dois dias. – prosseguiu com o cigarro descansando no canto da boca. – Saiu em todos os jornais. O senhor não ficou sabendo?
– Sim. Eu li a notícia.
– No mesmo dia em que saiu a notícia, coincidentemente vi uns recibos de abastecimento das viaturas, datados de 1948, próximos ao dia do desaparecimento da Irmã Ludmila. Tinham umas anotações no verso indicando “visita ao Convento”. Próximo ao local onde encontraram os corpos, existe um, na Serra da Misericórdia. No mesmo dia, o ex-prefeito apareceu na Delegacia, muito irritado, procurando o Chefe de Polícia. Então, à tarde, procurei novamente pelos recibos nos arquivos e não encontrei nada. Não sei… Tudo isso pode não ser nada ou talvez eu esteja ficando velho.
Diante da revelação do inspetor, Dr. Dumont desviou o olhar inquieto, o que foi logo percebido pelo inspetor.
– Mas pode ser algo. O jeito é aguardar e esperar por mais informações. Ainda tenho esperança de reencontrá-la. De qualquer maneira, muito obrigado, inspetor.
Assim que o Dr. Dumont se levantou e saiu do bar, o detetive Salgado se aproximou, sentou-se de frente para seu parceiro e perguntou-lhe:
– Algum problema?
– Não sei. Mas amanhã vamos desarquivar um caso. Pega mais uma cerveja para nós.
Na verdade, o que o inspetor queria era descobrir o que realmente havia acontecido na noite em que a freira desapareceu sem deixar vestígios.
1948
O balde de água fria jogada contra o rosto do enfermeiro Betinho o fez despertar. Estava amarrado a uma cadeira, somente de cuecas. Os hematomas se alastravam pelo seu rosto a partir dos olhos. O nariz sangrava.
Lentamente, ele olhou de um lado para o outro tentando lembrar onde estava. As paredes do porão eram de pedras; e o chão de terra, batida. Na janela, grossas barras de ferro. No meio do porão, uma lâmpada pendia por um fio.
Os dois homens fortes que o sequestraram encaravam-no com olhar ferino. Ao fundo, sentada diante uma pequena mesa, estava Irmã Ludmila, cabisbaixa, sobre a mira de uma pistola Luger de um terceiro homem.
Betinho tentou balbuciar algo, porém recebeu um soco certeiro na boca, o que lhe arrancou dois dentes, além de fazê-lo sentir que alguma coisa havia se quebrado perto de seu maxilar. Viu o rosto de seus agressores, o olhar cruel deles analisando onde conseguiriam causar-lhe mais dor. Então, ficou mexendo a cabeça em ângulos diferentes, com o sangue a escorrer pelo canto da boca.
– Assine a ata ou a senhora quer que ele apanhe mais? – ameaçou o homem encostando a arma na cabeça da freira – Acabou pra senhora. Assine este documento e dê por encerrada sua administração. Ninguém quer mais a senhora aqui.
Irmã Ludmila continuou imóvel com os olhos semicerrados, o terço na mão. Com um leve tremor dos lábios, sussurrava uma oração. Brevemente, virou os olhos para um canto do porão estava na penumbra. A brasa de um cigarro se iluminou na escuridão. Se ela firmasse a visão, poderia ver a silhueta de um homem que a tudo assistia. Podia jurar que era o demônio.
Ela passara o dia todo em reunião na Casa dos Enfermos e Necessitados, tentando desmentir o boato de sua gravidez. O prefeito explicava inúmeras vezes para os membros do Conselho e da Igreja o que ouviu de sua empregada, que foi relatado pelo namorado dela, o enfermeiro Betinho. Queriam ouvir dele a verdade. Mas ninguém o localizava desde o dia anterior. Ele não aparecera para trabalhar. Ficaram ali, acusando-a e ignorando todas as suas explicações. À noite, conduziram-na numa viatura policial até aquele lugar e mantiveram-na enclausurada.
– Quebre um dedo dele. – ordenou aos comparsas o homem que segurava a arma. O dedo indicador direito foi o escolhido. Betinho berrou de dor, com sua voz ecoando com força pelo porão.
Como a freira se mantinha imóvel, ordenou que quebrassem mais um dedo. O homem se contorcia na cadeira, e sua expressão facial era de terror.
Angustiada diante do sofrimento do enfermeiro, ela pegou a caneta sobre a mesa e, com a mão trêmula, assinou. O homem averiguou a assinatura e, diante do que viu, desferiu um tapa com as costas da mão na cara da Irmã Ludmila, que foi ao chão.
– Sua negra idiota… Que merda de Victima é esta que colocou na frente de sua assinatura? – gritou ao mesmo tempo em que a levantava pelo braço e ordenava que assinasse novamente.
– Já basta. – interferiu Arthur, se revelando das sombras, segurando o charuto. – Basta a assinatura. Leve-a para o carro e depois para o Convento.
– E ele? – perguntou o torturador, fitando o enfermeiro, que alucinava de dor na cadeira.
– No caminho para o Convento, livre-se dele. Ele fala demais e pode comprometer a Irmandade. Lá na fazenda será apenas mais um numa cova. Ah! E faça essa comunista imunda assistir a tudo para ver o que vai acontecer com ela caso abra o bico.
Irmã Ludmila e Betinho foram arrastados para fora aos trancos. Os homens dirigiram por duas horas até pararem num matagal. Era uma noite tão escura que não se enxergava um palmo à frente do nariz. Posicionaram o carro para que iluminasse o local onde cavariam a cova.
Ao ser retirado do porta-malas do carro, Betinho teve por um instante o impulso fútil de resistir e lutar, mas não tinha mais forças. No chão úmido pelo orvalho e cheio de folhas, deixou-se ser levado. Tremia e chorava em silêncio enquanto cavavam.
Irmã Ludmila, cabisbaixa, mantinha-se a distância e em oração. Depois de longos minutos, um dos homens aproximou-se com um sorriso diante do corpo estendido no chão.
– Por favor, não me matem! – implorava o enfermeiro numa voz inaudível.
Mas o silêncio da noite foi cortado por um tiro certeiro em sua cabeça.
Irmã Ludmila sabia que, ali, ela também morria um pouco por não ter conseguido evitar a morte de um inocente. Sabia que as lembranças daquela noite iriam lhe atormentar em seus pesadelos mais horríveis para o resto da vida.
A complicada gestação e a demora no parto da esposa deixavam o Dr. Dumont muito apreensivo. Aguardava há horas na sala de espera da maternidade, que estava vazia. Abordou uma enfermeira que passava apressadamente por ele, perguntando-lhe onde poderia encontrar a Irmã Ludmila.
– Está no bloco C com uma paciente. – respondeu a enfermeira antes de sumir pelos corredores da Casa de Enfermos e Necessitados.
Saiu na direção indicada. Encontrou-a molhando um algodão na água e colocando na boca de uma paciente. O sol da tarde entrava pela janela iluminando uma parte do quarto.
– Se você tiver fé e coragem, será feliz e não morrerá. Nossa Senhora está com você. A cirurgia será um sucesso. – consolava a freira diante do olhar aflito da enferma.
Dr. Dumont era um homem baixo, calvo, de rosto angulado. Assistia a tudo parado na porta. Não queria interromper. Ao notar sua presença, a freira foi ao seu encontro. Percebeu no semblante do médico uma tristeza profunda.
– Irmã Ludmila, receio por minha esposa e filho. O parto está complicado. – disse angustiado.
– Tenha paciência e reze, meu amigo. – disse colocando suas mãos sobre o ombro dele – Deus sabe de tudo e basta entregar nas mãos Dele. Vamos lá. Nós dois iremos rezar juntos.
Caminharam silenciosamente lado a lado. Dr. Dumont admirava aquela religiosa. Logo quando ela chegou à cidade, há doze anos, provocou uma verdadeira revolução ao criar uma maternidade para mães carentes. Vinha gente de toda parte da região. Tratava a família como a coisa mais importante. Cuidava do enxoval, presente, batismo, formação, catequese. Às vezes, ia aos bairros pobres distribuir mantimentos. Por isso era amada por muitos. Nem a recente nomeação como superiora da Casa de Enfermos e Necessitados a impedia de estar ao lado dos menos favorecidos, sempre que possível.
Entraram na sala onde o parto estava sendo realizado. O médico e as enfermeiras respeitosamente pararam com a presença deles. A freira foi recebida com um sorriso pela grávida, apesar das dores. Ela correspondeu ao carinho com um beijo na testa suada da paciente. Pegou seu terço colocando-o sobre a enorme barriga da gestante e, antes de começar a rezar, afirmou aos presentes:
– Tudo o que precisarem, rezem a Salve Rainha, que vocês conseguirão. Por isso, em nome de Jesus, digo que tudo vai dar certo.
1948
O escândalo envolvendo Irmã Ludmila foi a melhor notícia que Arthur poderia receber. Decidido a colocar seu plano em prática, aguardava na Estação Ferroviária a chegada do trem que traria seus homens de confiança. Eram duas horas de uma tarde ensolarada, e ele não tinha tomado café da manhã nem almoçado. Andava de um lado para o outro conferindo as horas no relógio de bolso e fumando charuto. Ele era um homem alto e magro, de traços agradáveis, bigode grisalho e maneiras educadas, que transmitia serenidade apesar de ser uma pessoa de poucas palavras. Não se casara e tivera poucos relacionamentos amorosos.
Observou um homem trajando um terno amarrotado cinza, segurando uma Bíblia enquanto gritava trechos dela na praça em frente à estação, o que lhe provocou uma risada irônica:
– Mas eu digo: Amem os seus inimigos e orem por aqueles que os perseguem, para que vocês venham a ser filhos de seu Pai que está nos céus…
Há vinte e oito anos aguardava por aquele momento. Desde a leitura do testamento do tio falecido em que ele deixara boa parte de sua herança em dinheiro, alguns milhões, para a caridade, vinha planejando uma maneira de recuperar aquilo que achava ser seu por direito. Na época, de nada adiantaram os apelos dos parentes. A tia viúva, que não tinha filhos e era muito devota às coisas de Deus, jamais contrariaria o último desejo do marido. – Com Deus, não se brinca – dizia apontando o dedo para o céu.
–… Porque Ele faz raiar o seu sol sobre maus e bons e derrama chuva sobre justos e injustos. Mateus 5: versículos 44-45.
Nos últimos dez anos, Arthur ingressara no Conselho Administrativo da Casa de Enfermos e Necessitados e agora como presidente seria mais fácil executar seu plano. Associar-se à Irmandade dos Obreiros facilitou muito para que conseguisse aquela vaga. Seria mais fácil desaparecer com provas e manipular pessoas. Era o interesse da Confraria que as “coisas” mudassem. E não mediriam esforços para conseguir. Precisava manter a calma e agir com frieza, como sempre fizera.
– Jesus respondeu: O que é impossível para os homens é possível para Deus. Lucas 18:27.
Desde o fim da Segunda Guerra Mundial, a política econômica pelo mundo começara a levar muitas empresas e milionários à falência. O espírito filantrópico ia deixando de existir. Portanto, era preciso acabar com o mandato daquela “comunista nojenta”, como se referia à Irmã Ludmila.
Durante anos incentivou financeiramente as enfermeiras para que infernizassem a vida da freira, tornando o seu ambiente de trabalho insuportável. Tudo inutilmente, pois a cada tentativa ela se fortalecia, mesmo diante de todas as atrocidades. Não se abalava por nada. Graças ao infeliz do enfermeiro Betinho e a seus boatos, algo poderia ser feito para afastá-la para sempre. Uma vez com a freira fora do caminho, construiria um novo hospital na imensa área do estacionamento e assim teria finalmente um negócio lucrativo.
– Consagre ao Senhor tudo o que você faz, e os seus planos serão bem-sucedidos. Provérbios 16:3.
Por fim, o trem parou na plataforma, e uma multidão vinda de todas as partes desembarcou. Outros passageiros já se posicionavam para o embarque. Em meio a toda aquela aglomeração, viu três homens de físico avantajado, trajando sobretudos pretos e chapéus Fedora, saindo do trem e vindo em sua direção ao o reconhecerem. Olhou para seu relógio de bolso e viu que tinha chegado a hora tão esperada.
– Restaurarei o exausto e saciarei o enfraquecido. Jeremias 31:2. – clamava o homem na praça, ainda em busca de atenção.
1948
O enfermeiro Roberto, mais conhecido por Betinho, terminou seu turno motivado e decidido a mudar de vida.
Saiu do prédio da Casa de Enfermos e Necessitados e, ao alcançar a rua, viu o sol ainda atrás do morro avermelhando o horizonte. Ia se encontrar com sua namorada, que trabalhava como doméstica na casa do prefeito da cidade.
Betinho era um homem demasiadamente magro e pálido, com uma aparência envelhecida apesar da pouca idade. Parou por alguns instantes para acender um cigarro e saiu caminhando, perdido em pensamentos, planejando o futuro ao lado de sua amada. Pediria desculpas por “falar demais.” Sentia-se arrependido pelo comentário sobre a Irmã Ludmila e o Doutor Dumont. Há dois dias flagrara os dois juntos e vira o médico colocando as mãos sobre a barriga da freira, dizendo que “cuidaria de tudo”.
– Imagina! A freira grávida? Coitada!!! Onde eu estava com a cabeça? Ela é uma verdadeira santa.
Culpava a bebida por seus deslizes e por isso estava decidido a parar de beber. Antes de terminar seu turno, jogou fora toda a cachaça que deixava escondida entre os remédios no depósito. A namorada merecia uma vida digna e queria ser o homem que passaria a vida toda ao seu lado.
– Vou pedi-la em casamento – pensou em voz alta com sua voz rouca de fumante. Animou-se tanto que veio a vontade de beber uma última dose no bar no fim da rua. Não. Não podia cair em tentação. Desviou-se na primeira rua, com pouco trânsito de pessoas e carros. Sabia que não podia ceder ao vício e que deveria resistir a todo custo.
Parou para acender outro cigarro e não percebeu a aproximação de dois homens que o seguiam, os mesmos que desembarcaram na Estação Ferroviária no meio da tarde. Ao se verem sozinhos num beco, um deles o chamou pelo apelido. Betinho, ao se virar, levou um soco na boca do estômago. Contorceu-se de dor. Deram-lhe mais uma saraivada de socos. Então, um Ford Coupe Deluxe 1940, de cor preta, apareceu do lado deles, onde ele foi jogado aos trancos dentro do carro. Entraram todos no veículo que saiu em disparada, virando a primeira esquina.
Paulo Siuves é um desses últimos românticos num tempo de frieza e desafetos, por causa da intolerância que invadiu o Brasil e o mundo nos últimos tempos, principalmente politicamente. Recebo “Sonetos e Canções” (Editora Ramos) de sua autoria, dentro da coleção Coletivo Literário 2020, no qual o autor buscou no fundo do baú, alguns sonetos e letras de canções que fez na adolescência, alguns em parceria com amigos.
“Sonetos e Canções” fala de amor em todos os aspectos. O autor consegue ser lírico, sem ser piegas, daí ser um livro gostoso de ler. São versos que em sua inocência de juventude, surge com a delicadeza da sinceridade da emoção a flor da pele, daí a sua grandeza. Vejamos: “Eu não sei quem você é\não sou eu o que você quer\e não tenho pra onde ir\se comigo você não estiver\Não vou ouvir os seus discos\não vou ler suas cartas\não vou influenciar as suas decisões\essas portas não são tão largas\Seus sonhos, meus idéiais\seus dias, minha alegria\meu choro, seu objetivo\Sem mim suas noites são mais legais\seus frêmitos, minha angústia\seu orgasmo sem motivo.”
Em “Sonetos e Canções” o amor desfila em todas as suas nuances, com a volúpia da sinceridade da alma. Entre as parcerias encontra-se os poetas Clério Pereira e Sol Figueiredo, este último uma grande sonetista da atualidade, hoje, presidente da Academia de Letras do Brasil, secccional Campos dos Goytacazes. O poema “Soneto da Lamentação”, na página 55 do livro, foi contemplado com o Prêmio Luso-brasileiro “Edição do Brasil” em 2013, conferido pela Associação de Poetas da Ilha da Madeira, em Portugal, em parceria com a Literarte. Leiamos: “Retratos na parede,\saudades e devaneios.\Queixos ospensamentos\já não sou mais o mesmo.\Morro aos poucos lentamente.\Minhas noites não são mais as mesmas\quimeras pela madrugada\adjetivos sussurrados a esmo.\Sinto tanto em minha vida\já não caibo, só lamento\nesses versos que compus\o sono pesa, minhas vistas.\Vai embora noite imensa!!\Seja dia – haja luz.”
Paulo Siuves é escritor, músico e poeta. É presidente da Academia Mineira de Belas Artes (AMBA) e escreve semanalmente uma coluna da AMBA no Jornal Clarin Brasil. É autor do romance “O oráculo de Greg Hobsbawn” (CBJN-2011), coautor em dezenas de coletâneas nacionais e internacionais. Organizador das coletâneas “Ao intento do vento”, “Poesias nas montanhas de Minas – Volumes 1 e 2”, co-organizador na coletânea “Escritores do Vetor Norte da Região Metropolitana de BH volumes 1 e 2”. Um dos criadores com a poeta Márcia Araújo do “Feira de Poesia” no Centro Cultural Padre Eustáquio. É servidor público na capital mineira, atuando na Banda de Música da Guarda Civil Municipal de Belo Horizonte como flautista.
“Sonetos e Canções” é um livro que fala de vida, de amor, feito para quem tem sensibilidade para lê-lo com prazer.
“Além daqueles montes verdes”, de Martha Tavares Pezzini, reúne em 170 páginas as crônicas e os poemas que a autora produziu nos últimos anos.
A obra veio a público pela Páginas Editora, de Belo Horizonte/MG, ainda em 2020, mas chegou às minhas mãos somente neste janeiro quarentenado de 2021.
Ao todo, são 34 crônicas e 54 poemas, entre o quais se destaca o premiado “Transmutação” (2º lugar no Prêmio Castro Alves de Literatura 2020, promovido pela Academia Teixeirense de Letras). Sem contar os sonetos e as aldravias que fecham a obra com chave de ouro.
Nesta nova publicação, Martha dá seguimento à anterior, “Por onde andei levei meus sonhos”, de 2015, revisitando pessoas e momentos que marcaram sua vida de mãe, educadora e autora. Sua juventude também.
Eu li “Por onde andei levei meus sonhos” e, na oportunidade, observei o jeito leve, coloquial e marcante de narrar que a autora imprimiu à obra. Um jeito mineiro de ver as coisas e, ao representá-las, causar boa impressão em seus leitores. Gostei tanto do que li que grafei o anagrama LCM (tentem adivinhar).
Neste novo livro, Martha segue brindando seus leitores com crônicas deliciosas de se ler com os olhos e a imaginação. São textos simples e coloquiais, sim, mas repletos de imagens convidativas, diante das quais capitulamos e acabamos tomando parte nas cenas e/ou coparticipamos dos episódios com muita descontração e gosto.
Quem é doido de resistir a uma cena de cidade interiorana, perdida entre montes e alterosas, com suas ruas tranquilas e moradores hospitaleiros? Pois Martha nos conduz pela sua São Pedro dos Ferros e sua Matozinhos, nas quais sonhou os melhores sonhos e viveu a melhor vida, com perdão da redundância, que viver de verdade é, sim, renovar a alegria de viver…
Com leveza, a autora compartilha também as leituras que marcaram sua vida (sem método e obrigação, senão com prazer); cita autores e respectivas produções que ainda repercutem em sua formação de leitora e autora. Esse é o lado, digamos, intertextual da obra em questão.
Mas Martha não se faz de rogada e pontua o ato de escrever não só como desafio criador e linguístico, mas também como gesto de emancipação pessoal. A propósito, a autora é imortal da Academia Municipalista de Minas Gerais (AMULMIG), compondo a atual diretoria acadêmica como 1ª secretária.
“Muito além daqueles montes verdes”, crônica que dá título à obra, retrata uma moça centrada em si e apegada ao seu mundinho, mas que, gradativamente, consegue realizar seus sonhos – inclusive literários – mostrando na prática que os conceitos junguianos de introversão e extroversão, ao contrário do que muitos pensam, podem ser manipulados como forma de realização pessoal, profissional e artística. Enfim, como energia positiva e libertadora.
Por ter ido muito além daqueles montes verdes, Martha Tavares Pezzini já é uma vencedora. Parabéns!
Marta Tavares Pezzini com exemplar de “Além daqueles montes verdes”
Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real
é mera coincidência.
“Talvez caiba à literatura falsear a ficção até extrair dela a verdade.”
Júlia Dantas
1950
A caminhonete, um Chevrolet Boca de Sapo, surgiu no alto da serra, deixando um rastro de poeira. O céu estava aberto, e a névoa matinal se dissipava. Sem dúvida ia ser um dia de sol. O carro desceu pela estrada sinuosa e, logo em seguida, parou numa área descampada, ao lado de algumas viaturas policiais.
Aguardou a poeira abaixar. Saiu do carro com dificuldade, pois, apesar de ser um veículo espaçoso, mal acomodava seu imenso corpo. Tirou um lenço do bolso traseiro da calça e enxugou o suor da testa. Viu ao longe, no alto do barranco, um homem baixo e atarracado que lhe acenava, com gestos, para que se aproximasse. Resmungou uns palavrões. Subiu ofegante e a passos lentos o pequeno barranco que levava à parte elevada.
– Valha-me Deus, Manoel! – suplicou ao se aproximar do homem que o cumprimentava, apertando-lhe a mão.
– Desculpe, Sr. Honório – lamentou o homem num tom sério. – É que…
– Que viaturas são essas??? – interrompeu ainda ofegante, as bochechas coradas pelo sol e possivelmente pela raiva. – Eu lhe pago, e muito bem, para ser meu mestre de obras e resolver todas as questões. E por qual motivo você me ligou tão cedo exigindo minha presença?
– Senhor, me acompanhe por gentileza que lhe explico – pediu, constrangido, diante da reclamação do chefe enquanto sumiam no meio da vegetação espessa.
Honório o seguia imaginando qual seria a tal urgência. Planejara terminar a obra antes que a nova rodovia BR31 chegasse ali. A estrada transversal ligaria a capital mineira à capixaba. Construiria um restaurante e um hotel para atender primeiramente aos trabalhadores. Futuramente, ampliaria aos viajantes. Comprou o terreno, por um preço baixíssimo, de um fazendeiro endividado, após receber a informação, por uma boa quantia, de um funcionário público e, assim, saber com antecedência a rota da rodovia.
Quando atravessaram a pequena trilha, se depararam com um grande número de pessoas, policiais conversando e ao mesmo tempo orientando os operários.
– Que isso??? – espantou-se Honório – Me explique que merda é essa, Manoel!!!
– Patrão, ontem enquanto fazíamos as escavações para os alicerces da obra, encontramos os ossos de um cadáver.
– O quê? Meu Deus, por que não me disse antes, seu infeliz? A gente poderia contornar isso sem envolver a polícia…
– Mas, Senhor… – continuou Manoel – É que logo em seguida encontramos outro corpo e depois mais outro, e mais outro…
– Você está dizendo que todos esses buracos são de ossadas humanas?
– Sim. Até agora encontramos vinte corpos… – concluiu Manoel engolindo seco e fazendo o sinal da cruz.
– Diacho… – murmurou Honório diante da imagem desoladora. Quando percebeu a aproximação de um policial, soube que teria sérios problemas para continuar as obras. E isso traria um grande prejuízo para seu investimento.
***
1950
A música se misturava com os risos e gritos das crianças, no convento cravado aos pés da Serra da Misericórdia.
A freira, sentada num banquinho de madeira, debaixo das mangueiras, tocava sorridente seu violão, animando as crianças numa brincadeira de roda e cantigas. Ao término de cada música, a criançada corria em sua direção e pedia mais músicas. Ela se via perdida em meio a tantos pedidos e pequenos abraços.
– Irmã Ludmila! – ouviu-se uma voz autoritária.
As crianças se silenciaram e ficaram quietas instantaneamente.
– A Madre Superiora – continuou a outra freira que se mantinha a distância – ordenou que você limpe novamente o escritório. Agora!!!
A alegria da Irmã Ludmila colidiu com o olhar gélido e duro da colega que logo em seguida se juntou a uma turma de freiras, que saiu do convento em fila indiana. Despediu-se das crianças, abraçando novamente uma a uma e deixando-as aos cuidados da noviça que acompanhava a brincadeira.
– Fiquem com Deus! Amanhã vamos continuar. – prometeu às crianças dando uma piscadela, ao se distanciar.
Irmã Ludmila sabia que a limpeza era só mais um dos inúmeros castigos que lhe eram sentenciados pela Madre Superiora, desde sua chegada ali, há mais de um ano, numa noite sombria. Entrou no escritório sabendo que não havia nada mais para limpar. Simplesmente, ficaria ali, escondida da maldade alheia. Sentou-se e, por uma fração de segundos, se viu no passado quando foi nomeada Madre Superiora na Casa de Enfermos e Necessitados, onde permaneceu durante uma década, numa cidade longínqua. Além do costumeiro preconceito sofrido em razão da cor de sua pele, vivia em meio aos colegas invejosos, vaidosos e maus. Mas, apesar de tudo contra, conseguia ajudar aos mais necessitados naquilo que era possível. A Maternidade que criou para atender as mães carentes foi sua maior realização. Mas suas boas ações não eram bem vistas por aqueles que queriam poder e dinheiro.
De volta à realidade e afastando o passado ainda recente, desviou o olhar para o jornal sobre a mesa. Ao ler a manchete na primeira página, teve a sensação de facas gélidas atravessando-lhe o corpo:
“CEMITÉRIO CLANDESTINO É ENCONTRADO EM OBRA DE FAZENDA”
Hipnotizada diante da notícia, percebeu a sala escurecer e viu, através da vidraça da janela, nuvens negras encobrirem o sol do meio da tarde, num prenúncio de tempestade. Leu a reportagem e pela foto reconheceu o local citado no jornal. Sentiu o passado novamente a assombrá-la. Saiu do escritório com a fisionomia tensa. Apressada, pegou a rua ao lado do convento que dava para a parte mais alta da Serra da Misericórdia. Lá havia uma pequena capela, pouca frequentada, onde na maioria das vezes fazia suas orações. A passos lentos, devido ao seu peso, foi subindo a rua íngreme. Também pesava o cansaço diário das tarefas forçadas infindáveis, tudo em troca de uma péssima comida e um local para morar, que mais parecia um chiqueiro.
A subida do morro era feita por etapas na tentativa de recuperar o fôlego e amenizar as fortes dores nas articulações. Desde sua chegada ao Convento, a saúde piorava a cada dia. Enquanto descansava, via a tempestade açoitar o horizonte e as nuvens negras ficarem cada vez mais próximas. A notícia no jornal trouxe-lhe à tona um sentimento há muito adormecido: o medo e as lembranças daquela noite, quando sua vida se tornou um inferno. Precisava rezar e pedir a Deus forças para que afastasse todo aquele mal de perto dela e de outras pessoas. Ela sabia do que aquele demônio era capaz.
A capela era pequena e sequer tinha um sino. Do alto da serra, Irmã Ludmila imaginava ver o mundo todo. Por isso, gostava daquele local. Ali, podia rezar por toda a humanidade. Ao abrir a porta do pequeno santuário, a claridade do dia revelou um altar com a imagem de uma Nossa Senhora, feia e desbotada, com vasos sem flores e sem outros adornos, nada digno para um lugar sagrado. Acendeu duas velas nos castiçais e, de joelhos diante do altar, começou a rezar.
– Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve! A vós bradamos, os degredados filhos de Eva…
De olhos fechados, parecia estar em outro plano astral. Mal ouvia os trovões ao longe e a chuva que formava uma enxurrada lá fora. Uma rajada de vento, que fez bater a porta e apagar as velas, a fez voltar seu olhar para a entrada da igreja. Arregalou os olhos diante da figura de um homem que estava parado na porta, enquanto um relâmpago cortava o céu chuvoso.
FIM DA PRIMEIRA PARTE (continua)
[1] Peixe Vivo, Valdemar de Jesus Almeida e Neurisvan Rocha Alencar.
“Torto Arado” – romance premiado de Itamar Vieira Junior – é minha última leitura de fôlego e sobre o qual escrevo minha derradeira resenha neste terrível ano de 2020 que – por sinal – já vai tarde!
O livro ganhou o Prêmio Leya de 2018 e, por isso, foi publicado primeiro em Portugal. Só em 2019 ganhou edição no Brasil pela Todavia e, em 2020, levou o Jabuti de melhor romance literário e livro do ano. Faturou também o Prêmio Oceanos.
Sensação literária muito bem-vinda, Torto Arado merece todo esse reconhecimento. Todos esses prêmios e, sobretudo, leituras, interpretações e louvações. O livro foi alçado à categoria de clássico, qual seja, referencial, relevante e inspirador. Já está sendo traduzido para outras línguas, como a italiana.
Se não bastasse tudo isso, autoria baiana. A história é ambientada na Bahia, na Chapada Diamantina, mais precisamente na Fazenda Água Negra.
Nesse ambiente com características análogas às do Brasil colonial, com modo de produção escravista e/ou coronelista, as irmãs Bibiana e Belonísia protagonizam Torto Arado…
Que me desculpem os metidos a besta, mas eu vou encher a boca para falar do romance que, de tão grandioso do ponto de vista da temática e da narrativa, comporta discussões, debates e embates. Afinal, estamos diante de um romance de formação, neorrealista, histórico, rural, afro-brasileiro, mágico?
Ele é tudo isso e muito mais. Dividido em três partes que são narradas na 1ª pessoa pelas irmãs Bibiana e Belonísia e por Santa Rita Pescadeira, uma das tantas entidades encantadas que povoam, protegem e encantam as protagonistas da história e, também, os moradores da localidade.
As narrativas – à maneira de depoimentos – se sucedem e se fundem num crescendo para retratar de maneira humana, valente e atávica a trajetória das irmãs e, por extensão, de toda a comunidade descendente de escravizados. Que, apesar de viverem daquela terra e beberem daquela água, não têm direito à natureza. Mas chegará o dia em que vão tomar consciência do pertencimento e vão dizer não à desumanização e à tirania impostas pelo senhor branco manipulador e explorador.
O mérito de Itamar Vieira Junior – mais que dar voz às protagonistas (uma das quais, Belonísia, é incapaz de falar pela ausência da língua perdida num acidente doméstico na infância) – foi trazer à baila uma realidade – triste e dura – que ainda existe e persiste no interior do Brasil. Trata-se das comunidades quilombolas que sobreviveram, após o 13 de maio, completamente ignoradas da proteção do Estado brasileiro.
Portanto, meninos e meninas, Torto Arado colocou na ordem do dia todas as demandas urgentes e inadiáveis que seguem clamando por solução, justiça e respeito deste Brasil injusto, desigual e racista.
É a literatura de qualidade satisfazendo os gostos, inclusive os mais exigentes, e despertando as consciências – até as mais tacanhas. Viva Água Negra! Viva Água Preta!
E como chegou o dia 25 de dezembro, Maurício esperou que ele fosse diferente. Doze anos, morador do bairro São Lourenço, o que a turma chamava de baixo São Lourenço, a ilusão de Maurício, o Maú, tinha sentido. Afinal, morava em uma casinha de taipa de 3 cômodos, com banheiro fora. Um quarto era para ele e seus 5 irmãos, 3 homens e duas mulheres, que dormiam amontoados em 3 catres, confusão de pernas e braços. O outro cômodo servia de cozinha e os pais dormiam no outro. O pai, Joélcio, estava velho e doente e não trabalhava mais. Ficava por ali zanzando, quando não estava no “Boteco do Zeca”, bebendo e jogando palitinho. A mãe é que fazia de tudo na casa, cuidando dos meninos e lavando para fora, além de, quando chamada, fazer limpeza na casa dos ricos. A renda fixa da Bolsa Família, Noventa reais, dava para o feijão, o arroz e a banha. Pois Maú sonhava com aquele dia. Uma semana antes, Zezão Mata a Pau, chefão das drogas na região, tinha conversado com o moleque. Maú, até então, fizera apenas o trabalho de “foguete”, menino que avisa quando a polícia está chegando. Seu grande sonho era ser mula, levador de droga para outros pontos. Não tinha medo do perigo, queria apenas ser mula e ganhar o dinheiro que o tráfico pagaria para ele. Zezão lhe prometera duzentão para, no dia 25, levar o bagulho para uma banca do Tancredo. Na noite de 24 para 25, calado, ficou escutando a conversa dos outros companheiros, todos da mesma idade, todos sonhando ser mula, todos falando de Natal. Falavam dos presentes que iam ganhar da Igreja da comunidade e da ceia que as pessoas iam fazer para os pobres do bairro. Maú não falava nada. Queria apenas que chegasse, vinte e cinco para ele virar mula de Zezão. Não se importava com brinquedos, ceia, roupas usadas que ia ganhar: queria era levar a droga em segurança, entregar a bicha direitinho, receber o cobre prometido por Zezão. Se fizesse o serviço direito, viraria mula de vez, ganhando sua grana certa, podendo até, mais tarde, virar agente da boca. Sonhava acordado, olhando a rua branca de areia e sol, o calor escaldante daquele fim de dezembro. Não estava ali: estava nas ruas do Tancredo, andando veloz, levando o bagulho. Toinzim, o irmão do meio, chamou: “Vamos bater um baba ali no campinho, Maú?” Recusou o chamado do irmão, que respondeu: “Então fica aí, trouxa, pensando na morte da bezerra. Nós lá vai.”
Caiu a noite, vieram as comidas e os doces, Maú comeu pouco e foi dormir. Queria que a noite passasse depressa, só isso. Seis horas já estava de pé, correndo para o barraco de Zezão. Chegou lá, sentou no batente da casa e esperou. Sabia que não devia chamar, sentou e ficou quieto. Lá pelas 7, Zezão abriu e porta e apenas comentou: “Ô moleque, já tá aí? Entra.” Maú entrou e ficou na sala de reboco, espiando os cantos. Zezão foi ao quarto do lado e voltou com uma bolsa cinza, pequena e discreta. Entregou a bolsa para Maú e explicou: “Essa aí é dos cana. Se te pegarem entrega essa, que o bagulho não tá nela, não. Tá é aqui. Veste”. Era um casaco jeans, bolsos grandes e folgados. A droga estava no fundo costurado dos quatro bolsos. Zezão: “Tu vai ligeiro e chega na casa de Valdemarzão. Entrega o casaco e te manda de volta. Chegando aqui, o teu tá na mão. Toma um gole de café e vaza”. Maú vestiu o casaco, recusou o café e saiu. Dali até o Tancredo, na casa de Valdemarzão, não era longe. Seguiu a recomendação de Zezão: “Tu não corre, que pode dar na vista”. Naquela hora de manhã, já havia gente na porta de Valdemarzão. Chegou quieto, não falou com ninguém, entrou pelos fundos. Na cozinha pequena, Valdemarzão tomava café, ele e mais quatro. Maú chegou e foi direto ao chefe: “Zezão me mandou”. “Senta aí, pivete”, veio o outro. Maú sentou e foi logo começando a tirar o casaco. Valdemazão, na hora, mandou parar: “Tu tá leso, moleque? Espera eu mandar”, falou. Maú parou as mãos e ficou quieto. Valdemarzão: “Xumbrega, vai lá fora e vê se tá tudo nos conforme”. O tal Xumbrega, gordo e vagaroso, saiu pela porta da cozinha. Ficou tudo em silêncio e Valdemarzão perguntou: “E aí, guri, vai fazer o que com a grana?” “Vou comprar um sapato pra mãe Déia e o remédio do pai, que acabou”, respondeu Maú. “Bom guri, bom guri”, resmungou o outro. De repente, Valdemarzão se levantou e foi até a mesa do canto. Havia nela uma gaveta, ele abriu e tirou um pacote de lá. Entregou o pacote a Maú e disse: “Abre, é teu. Bota lá na porta do barraco”. Era uma imagem de Papai Noel, de plástico, toda brilhante e novinha. Maú ficou com o presente nas mãos, quase sem poder respirar. Era lindo demais e ele imaginou a cara do velho Noel na porta do barraco. Valdemarzão sorria do jeito deslumbrado do menino. Foi aí que ouviram os gritos de Xumbrega: “Sujou, sujou! É cana!” Correria, tiros, viaturas chegando, Valdemarzão e os outros de armas na mão, fumaça e barulho. Maú correu para trás do fogão e se escondeu. A confusão não durou cinco minutos. Com pouco, o silêncio se fez. Os cinco corpos estirados no chão eram dos traficantes, Valdemarzão morto com um tiro no olho esquerdo. O tenente que comandava a operação chamou o sargento e mandou: “Levanta quem morreu antes que a imprensa chegue”. “Morreu todo mundo, tenente, já olhei”. “E aquele pé saindo de trás do fogão?” “Vou lá ver”. O sargento foi até o fogão e arrastou Maú pelo pé. O peito estava rasgado de bala, o rosto molhado de lágrimas, a morte absoluta presente. Do bolso direito do lado de cima do casaco, furado por uma bala, um pó branco escorria.
Nas mãos, coladas no peito, estava a figura do Papai Noel com o seu riso estilhaçado. Maú, finalmente, havia virado mula.
*Conto premiado (1º lugar) na versão interna do Prêmio Castro Alves de Literatura 2020, promovido pela Academia Teixeirense de Letras. Ramiro Guedes é professor, radialista, jornalista e titular da Cadeira 7 da ATL. É contista e poeta. Toni Ramos Gonçalves foi um dos jurados desta edição e deu nota máxima ao conto.
No 30º aniversário da tua morte, eu resolvi me presentear com a releitura do teu livro “200 crônicas escolhidas (8ª edição)”, as melhores que já escreveste.
Não sei se tu sabes (sabias de tudo), mas eu parodiei tua crônica “Ai de ti, Copacabana”, que virou o poema “Ai de ti, século XX”: “Tua confidência às páginas da história repercute ainda hoje”.
Também graças a ti, me interessei por borboletas amarelas, crônicas singelas e uni-versos tagarelas (com perdão da rima paupérrima)!
Hoje, 19 de dezembro de 2020, eu saí à procura de uma borboleta amarela por aí, mas nem sinal dela. Será que continua enlutada? Tomou chá de sumiço?
Na Praça da Bíblia perguntei ao guarda municipal: “Tens visto a borboleta do Rubem?” Surpreso, ele me respondeu/perguntou: “A estrela do João? Por aqui, só de noitinha!”
Ah, bom e velho Rubem, a ideologia faz o bicho homem confundir um lepidóptero com uma estrela guia! Inspiração poética com militância política!
Muito engraçado: uns perseguem borboletas e são descontraídos e alegres. Outros colecionam borboletas (ia dizer siglas) e são retraídos e desconfiados!
O segredo estará na perseguição pura e simples das borboletas – ai de mim! – e não na captura – ai de ti! –afetiva e definitiva delas?
Sei apenas que seguiste a borboleta, habitaste o apartamento 1003 e escreveste a mais bela crônica deste país! Mais que isso, com teu lirismo e leveza capixabas, ajudaste a torná-la um gênero literário. Por isso, foste homenageado como papa dos cronistas brasileiros!
Sei, a duras penas, que a vida pode ser mágica como uma borboleta fugidia e simples, ou doce e descontraída, como uma crônica assinada por ti!
De resto, eu gostaria de te desejar um feliz e amarelo 30º aniversário de passamento (ia escrever passatempo)! Por incrível que pareça, contigo do lado de cá ou de lá, o tempo continua voando… feito um passarim.
Eu te espero, inesquecível Rubem, no lugar/dia e local/hora marcados de sempre! Nas páginas das tuas obras ou nas folhas do teu cajueiro (deveria ter escrito “nas ruas do teu Cachoeiro”).