Maria Lúcia Mendes

Se o que conto é verdade? Que é isto, companheiro! Nessa altura da vida, com tantos janeiros na cacunda, haveria eu de mentir? Conto e bem contado. Sem rodeios, sem enfeite, por modo de que me responda: acaso a vida tem enfeite? Nenhum. Desde que a gente nasce até a hora derradeira é cacetada. Para uns, o viver é mais manso. É o caso – uns nascem pra ser cavalo, outros pra cavaleiro. Se acontece de dar uma aragem é coisa de nada, passageira, a tal felicidade. Mas segura aqui a ponta da meada, que já desenrolo o novelo. Lá está ela, mão escorando o queixo, e a minha espera. Toda semana é sagrado, venho visitá-la, trazendo-lhe o que é de seu agrado: um pacotinho de doces. Ção foi doceira das boas – Minha patroa que o diga! De marmelada a pudins, dava um baile nas casas onde ganhava o sustento como doméstica. Além do tanque e ferro de brasa, eram horas a fio mexendo tacho de cobre, goiabada cheirando longe, Ção… Conceição. De menina, era o roçado. Cinco irmãos, três machos, ela e a irmã na enxada e foice, fora a lida da casa. A mãe morrera de parto, com a filharada choramingando, sem entender a partida. Ficaram assim, os cinco miúdos e o pai, amontoados, numa casa de pau a pique, plantada entremeio a umas baitas de árvores e um riachinho cantadô. O pai, sisudo e de poucas falas, logo pôs pra correr os que pediram pra adotar as crianças: “Não e não. Filho é gato, que se põe num saco, e manda longe?” Duas meninas e três machos, ali, na dureza, no sim senhor, não senhor, que por dê cá aquela palha, o maludo trancava a cara e não poupava sopapos nem vara de marmelo. Mal o sol piscava os olhos, o dito cujo tossia atiçando suas crias. Café de rapadura com mandioca frita, enxada nas costas, cada qual com seu empreito, pedaço de chão medido e conferido de tardinha. Coitado do infeliz que deixasse matinho qualquer em riba do chão. Um deles, o irmão mais velho, ganhara do padrinho uma viola e, à noite, mesmo arreado de canseira, espaventava o paradeiro, arranhando as cordas, com voz chorosa, Ção era quem mais gostava. Assentada ali, agarradinha, cantarolando com ele:
“Sertaneja se eu pudesse
Se papai do céu me desse
Um espaço pra voar…”
Que boniteza, meu Deus! Àquela hora, sua alma parecia coisa que voava, sem rumo, leve, que nem passarinho. Outra hora, era o contrário; pegava-lhe um nó no peito, que nem o clarão da lua desatava. Enquanto isso, o pai, mascando fumo, olhava enviesado para as filhas, sempre no mesmo rompante: “segura a honra, cuidado com a honra! Homem é bicho de se matar com pedra; comeu que seja, lambe os beiços e cai fora, arrotando vantagem”. Conceição, encabulada, matutava: Jesus Cristinho, o que vem a ser honra? A irmã, sonsa e dissimulada, calava. Foi assim até que um dia o irmão do meio chamou Ção, segredando-lhe baixinho: “É o troço entremeio as pernas, fica lá bem escondido” – Falou, passando a língua nos beiços. Assustada, a mocinha apalpou e sentiu. Ah! Então era isso… Deste dia em diante, olha o rapazinho levantando no tardão da noite, às escondidas, lisando, sorrateiro, as coxas da irmã. Boba é que Ção não era! Não pôs a boca no mundo, muito menos fez alarde. Armou-se de um porrete, escondeu-o no jeito, uniu sua cama com a da irmã. Um só ameaço de porretada, na moleira, pôs o desgramado pra correr. Uma noite – que essa hora sempre chega – todos acordaram a um só tempo com o velho num ronco feio, revirando-se nas palhas. Nem vela na mão deu tempo. Juntos, a boca seca, benzeram-se rezaram a Ave-Maria. Ção chorou desatado. Gostava do velho, seu pigarro, seu café de rapadura. Três dias, três noites, os cinco, com tirinhas pretas na roupa, voltam para o cabo da enxada, mataréu pedia foice. Tempos depois, de tanto calejar as mãos com pouco resultado, o irmão mais velho, já apontando pelos na cara, ajeitou os trecos numa carroça e, juntos, vida nova na cidade.
A venda do terreno rendeu-lhes, em troca, casinha ajeitada e cada qual seguiu seu rumo, serviço é que não faltava: as moças, emprego em casa de família, ordenadinho ralo, mas já servia; tinha o de comer e ainda sobrava para um vestido novo e sandálias de abotoar. Para os machos, a novidade das raparigas feiticeiras danadas de carinhosas, velhacas como elas só. Conceição virou moça bonita, todo mundo falava. Morena jambo, olhos claros, rasgados, e um par de pernas – que Deus me ampare – só formosura! A irmã, desbotada, caladinha, muito das rezadeiras, era da casa pra igreja e só. Tinha a tal beleza por dentro que, nesse mundão do diabo pouco acrescenta. Ção, Conceição, acha a cidade uma maravilha! A patroa é sovina, serviço pesado, mas o que é peso na mocidade? Nos bailes, rodopiava de roupa nova, uns moços atrevidos querendo dançar colado, hora em que ela se lembrava o que lhe contara o safado do irmão do meio. Moça virgem é o que era, sim senhor! Por esse tempo, num parque com roda-gigante, conheceu Zé, o Izé, moço de fino trato que lia e escrevia com letra boa também, olhou, olharam-se. E foi na roda-gigante, bem no alto, que riram, riram muito quando ouviram Cauby Peixoto, a voz bonita saindo do alto-falante.
“Conceição, eu me lembro muito bem
Vivias no morro a sonhar
Com coisas que o morro não tem”
Foi então que do namoro ao casamento andou rápido. Vestido branquinho, buquê de manacá, os dois de automóvel – era a primeira vez -, tudo um sonho, Zé impertigado, casinha nova, mulher caprichosa, tudo nos trinques, flor no cabelo, banho tomado pra esperar o marido. Ção empinava a barriga, Zé todo prosa, com pouco seria pai. E foi. Quatro machos que nem ele, um por ano. Conceição alegre que nem passarinho em tempo de fruta no pé. Da vida na roça, do pai, lembranças enfumaçadas; do irmão do meio, certa mágoa, mas, com o tempo… O que é que o tempo não desbota, esmorece? Zé, bom chefe de família, fartura na mesa, eis senão quando recebe proposta: Trabalhar no Belo Horizonte, serviço de chefe, ganhame dobrado, mais conforto pra família, “brinco de ouro pras suas orelhas, minha nega” – falou pra Conceição. E partiu. A princípio tudo certo, fora a saudade doendo, noite afora, longe do marido. Mas e os sábados? Coração aprumadinho na janela, os filhos também. Era o trem apitar na curva, o gesto de mãos abanando na ânsia da chegada. Conceição bonitona, meninos sadios, vida resumindo-se nos sábados e domingos, com frango ensopado e doce de leite. Mas, companheiro, tudo na vida tem o “mas”. Com o tempo, Zé começou a ficar esquisito. Chegava caladão, sem paciência, queixando carestia, o que seria aquilo meu Deus do céu? Cadê o chamego? Agrados para os meninos? Ção caprichando na lida, na camisola perfumada, Zé virado pro canto: “to cansado, dor de cabeça”… Depois, vindas espaçadas, desculpas, até que sumiu de vez. Assim, sem mais nem menos, sem rastro nem poeira. Conceição em lágrimas, boatos fervendo, morrera matado? “Mãe, cadê o pai?” “Cadê ele, mãe?” Conceição, sozinha. E os irmãos? A irmã, a tal desbotada, caladinha, fisgou viúvo rico, se mandou pra Goiás. Os machos, a essa altura, cada qual pegou seu rumo; o da violinha morreu ofendido de cobra; já o caçula, um raio torrou sem dó. E agora? Sozinha… O irmão do meio soube do sumiço do cunhado e apareceu serelepe, prestativo. “Vamos, vamos, você e os meninos, crio todos no bem bom, na macieza”. Ção, Conceição, mandou-o para o inferno, arregaçou as mangas, foi à luta. Pegou roupa pra lavar, fez sabão, catou ferro, fritou tripas de galinha ganhada de esmola no abatedouro. Viu os filhos comerem com boa boca feijão puro e um ovo partido em quatro pedaços. Os meninos… caixa de engraxar debaixo do braço, caixote nos ombros, olha a manga, quem quer comprar abacate, almeirão, cebolinha? Quem ? Meu Deus, cadê nosso homem? Cadê o Izé, meu Deus? E o Zé amoitado, longe do Belo Horizonte, nos braços de um rabicho cria de zona, medonha no chamego, corpo de dar inveja à Marilyn Monroe ou Brigitte Bardot. O trem passando, o apito, o tempo abaixando areia no fundo do copo. Aos trancos e barrancos, filhos crescidos, abandono, coisa morta. Ção continuou a labuta, estimada nas casas por onde passava, tanque, fogão, ferro, tacho, varrer, lavar. Assim viu os meninos um a um se aprumando, enquanto ela, devagarinho foi se curvando, encrencou as juntas , aprumou-se em bengala. Sogra não é parente, esbravejou uma das noras, e as outras responderam: Amém. Izé? Fumaça… “O fumo vem, a chama passa”. Que fosse pro inferno, se é que lá já não estivesse. Decidida, quis viver no asilo, de onde me diz: “aqui é bom, tem sossego, alegria”. Hoje, companheiro, sei que ela vai fazer cara feia pra mim. Esqueci de trazer-lhe o pacotinho de doces.
*Conto finalista na FLIP LITERÁRIA DE PARATI/RJ 2014
Conto publicado no livro A sedução das palavras, em 2018, pela Editora Ramos.
