Victima – Parte 4

Toni Ramos Gonçalves

1950

O inspetor Delano observava, da janela de sua sala na Delegacia, o horizonte montanhoso daquela cidade encravada no vale. Era uma manhã cinzenta e bebia um café sem açúcar na tentativa de amenizar os efeitos da ressaca das cervejas da noite anterior. Tinha saudades do mar e dos tempos em que trabalhou no litoral carioca. Amargava a solidão da viuvez e vivia constantemente com a cabeça cheia de recordações da esposa e do filho. Na verdade, queria poder voltar no tempo e consertar os inúmeros erros cometidos na sua conturbada vida. Naquele instante, o detetive Salgado entrou na sala balançando alguns documentos.

– Encontrei o que o senhor me pediu. – disse fechando a porta.

– Vamos dar uma olhada. Quem investigou no princípio pode ter deixado passar alguma coisa. Precisamos passar um pente-fino em tudo de novo. Ninguém comete um crime sem deixar rastros. Na maioria das vezes, se enrolam.

Sentaram-se em lados opostos e começaram a examinar os papéis. Os dois conferiram os documentos, lendo e relendo depoimentos da primeira à última página. Após um bom tempo de análise e várias xícaras de café, o inspetor fixou a atenção numas certidões de óbito que visivelmente deixaram-no intrigado.

– Você sabia disso? – perguntou entregando os documentos ao detetive, que leu em seguida.

– Estes documentos foram anexados recentemente. Veja a data. Não constava nas primeiras investigações. O senhor acha que…

– Não faz sentido… Ninguém avisou nada. Muito estranha esta história. É possível que exista alguém aqui dentro da Polícia eliminando ou plantando provas. O melhor a se fazer é mantermos tudo em sigilo e irmos agora mesmo averiguar essa informação. – interrompeu o inspetor levantando-se para sair. – Estou com um mau pressentimento sobre isso tudo.

1950

A chuva naquela tarde fustigava a Serra da Misericórdia. O vento estava tão forte que chocalhava janelas e portas.

Ao ver as velas do altar se apagarem, Irmã Ludmila despertou do seu transe espiritual e voltou-se na direção da porta de entrada da capela. Com os olhos aterrorizados, viu um homem parado nela, que começou a caminhar lentamente em sua direção. No primeiro momento, ela não conseguia ver o rosto dele.

Ele esperou na penumbra. De repente, fez aparecer uma faca na mão direita. Um relâmpago clareou por instantes o recinto.

– Dr. Dumont??? – reconheceu a freira, antes de se ouvir o estrondo do trovão.

As palavras foram recebidas por ele em silêncio. Havia uma expressão sombria em seu rosto. Seus olhos estavam frios e mortos como de um homem perverso.

– A culpa foi sua, toda sua. – acusou o médico. – Acreditei na sua fé e vi minha esposa e filha morrerem. A senhora disse que tudo daria certo.

– Meu amigo… Foi uma fatalidade. É difícil entender os desígnios de Deus. Às vezes, você precisa aceitar as coisas como elas são. Devemos manter nossa…

– Cala a boca, freira maldita! – gritou. – Eu perdi tudo o que era valioso para mim. E depois, tiveram a audácia de insinuar que eu havia engravidado a senhora. Imagina… No princípio, estava cego sobre de quem realmente era a culpa. Com o tempo descobri que a senhora era a única culpada. Mas aí a senhora sumiu, e meu ódio só aumentou. Fiquei todo esse tempo esperando por este momento.

– Meu Deus, Dr. Dumont, não se deixe levar pelo mal. Você pode recomeçar sua vida. O que aconteceu foi a vontade de Deus.

O rosto do médico se tornou ainda mais sombrio. Via-se em seus olhos uma fúria incontida. Então, ele começou a se aproximar lentamente. 

Irmã Ludmila recuou de costas, correu os olhos pelo interior da capela. Não tinha para onde fugir. Então se ajoelhou e, segurando seu terço, começou a rezar novamente, como sempre fazia nos momentos mais difíceis.

Eu nada sou, mas o redentor Jesus Cristo tudo é e por Ele eu me torno poderosa. Pelos poderes santos de Cristo, o diabo foge como antes fugiu da cruz…

Aquela oração serviu ainda mais para irritar Dr. Dumont que, num súbito momento de fúria, ergueu a faca mirando a jugular dela.

Mas antes que pudesse desferir o golpe fatal, o detetive Salgado o dominou por trás segurando seu braço. Sem entender o que acontecia, o médico tentou se livrar. Mesmo sendo fisicamente mais fraco, ele se transformara numa fera e deu muito trabalho ao policial, que minutos depois o imobilizou no chão.

– Irmã, a senhora está bem? – indagava o inspetor Delano.

– Obrigada, meu Deus, por não me abandonar! – clamava e chorava a freira, ao mesmo tempo em que o abraçava e erguia as mãos ao céu.

Lá fora continuava chovendo furiosamente. 

1950

Quando o inspetor Delano e o detetive Salgado aproximaram-se da residência do Dr. Dumont, não imaginaram que passariam o dia seguinte prestando depoimentos e informações à polícia local, que pertencia à jurisdição do Convento. No dia anterior, ao ver o médico saindo no carro, decidiram segui-lo.

Ele tomou o caminho da Serra da Misericórdia, como esperado. Desde a conversa deles no bar, o inspetor achou suspeito sua atitude. Pensava que ele estava envolvido amorosamente com a freira, devido aos boatos de uma possível gravidez. As certidões de óbito da esposa e filha do médico, que surgiram inexplicavelmente nos arquivos, não deixavam dúvidas de que poderia ter muito mais coisas envolvidas. Não imaginava que ele estava prestes a cometer um crime.

Sobre a noite do desaparecimento da freira, o inspetor percebeu que Irmã Ludmila escondia algo, após confirmar que fora simplesmente transferida a pedido dela. Não mostrou nenhum interesse em retornar a cidade e também não queria mais ficar lá.

O inspetor interveio, alegando total responsabilidade do Convento, caso algo pior acontecesse com ela. Diante disso, o sacerdote responsável informou que ela seria transferida para um asilo hospitalar no sul do estado naquele mesmo dia, o que o tranquilizou. 

Enquanto a freira partia, viu o inspetor Delano colocando a mão num dos lados da barriga que lhe doía. Ela se aproximou, tirou uma correia que tinha na cintura e falou:

– Leva esta correia para você. Quando sentir alguma dor, coloque-a e reze para Santa Filomena. A dor vai passar. Não falha. E vou rezar para você, pois sei que está precisando. Obrigada por tudo. Vocês dois são os anjos que Deus enviou para me proteger.

Irmã Ludmila sorriu para os dois policiais e, ao lado de dois outros padres, entrou num Chevrolet 1940 rumo a uma nova vida.

– Essa freira tem qualquer coisa de diferente… – disse o inspetor ao colega detetive. 

1950

Arthur se espreguiçou na cadeira em seu escritório, feliz com as notícias que lera sobre a prisão do Dr. Dumont e o paradeiro da Irmã Ludmila. Graças às raízes infiltradas da Irmandade dos Obreiros, seu plano corria muito bem. Tinha certeza de que a freira jamais falaria nada sobre o fim que levou o enfermeiro Betinho e dificilmente voltaria a cidade. Estava cada vez mais distante, e o tempo a colocaria no esquecimento. A ideia de aproveitar a fragilidade do Dr. Dumont, diante da morte da mulher e da filha dele, manipulando-o e fazendo crer que a verdadeira culpada fora a freira, havia sido genial. Uma pena não a ter matado. A Irmandade não a queria morta. Queria somente afastá-la. Por isso, fez aquela tentativa por conta própria. Mas nem tudo é perfeito, e o momento não era dos piores. A obra do novo hospital estava prestes a iniciar-se, e sabia que mais nada e ninguém poderiam detê-lo. Acendeu um charuto e, para acompanhar, colocou uma dose de uísque no copo.

Uma batida leve soou na porta do seu escritório.

– Entre. Está aberta. – avisou.

Um homem gordo, de bochechas coradas, suando a testa aos montes e desajeitado entrou com uma pasta em uma das mãos e projetos enrolados na outra.

– Desculpe o atraso, Sr. Arthur. – disse, tirando o chapéu.

– Ah, você é o novo empreiteiro, certo? A Irmandade recomendou muito bem seus serviços para a obra do hospital. Como é mesmo seu nome?

– Honório, senhor! A seu dispor. – respondeu estendendo-lhe a mão.

Foto: Pixabay

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