Toni Ramos Gonçalves
1950
O inspetor Delano saiu do prédio da Delegacia acompanhado do jovem detetive Salgado. Uma chuva fraca havia caído durante a maior parte do dia e no horizonte viam-se alguns vestígios de estiagem.
Atravessaram a rua e cruzaram a praça ao som das badaladas do sino da igreja. Iam em direção ao bar, local que frequentavam quase diariamente após o expediente.
O inspetor era um homem de cabelos e barba brancos, olhos azuis, com bolsas embaixo deles, e nariz cheio de vasos vermelhos como de quem bebe. Beirava os cinquenta anos, mas ainda era forte como um touro.
O detetive Salgado era um rapaz moreno, de estatura mediana, costas largas e duras, como se fosse uma parede de músculos.
A cada dia, o inspetor se apegava ao novato que, apesar de não se parecer fisicamente, lembrava seu filho morto na Itália durante a Segunda Guerra Mundial.
O bar estava lotado como sempre. O vozerio e as risadas dominavam o ambiente. Alguém desafinava numa sanfona.
Delano e Salgado se enfiaram no meio de um grupo de trabalhadores da fábrica de tecidos, sentaram-se no centro do balcão e foram logo pedindo uma cerveja.
Como sempre, os curiosos e fofoqueiros começaram a fazer inúmeras perguntas sobre fatos corriqueiros que aconteciam na cidade, momento em que os dois ficavam olhando para um lado e outro, surfando na onda das perguntas. De repente, no meio da algazarra, ouviu-se:
– Posso conversar com o senhor em particular, inspetor?
Ele se virou e se deparou com o Dr. Dumont.
– Claro, doutor. – disse, conduzindo-o até a uma mesa junto à parede, onde se sentaram. – Quer uma cerveja?
– Não, obrigado.
– Pode falar. Aconteceu algo?
– Alguma novidade no caso da Irmã Ludmila? – perguntou encarando-o.
Depois de quase dois anos, o sumiço da freira aos poucos caía no esquecimento. Ninguém mais ligava ou se preocupava. Na verdade, nem chegou a ser notícia de jornal. Repercutiu somente nas mesas de bares e correu de boca em boca nas esquinas da cidade. Ninguém entendia como uma freira desaparece no meio da noite, numa viatura policial, e ninguém sabe do seu paradeiro.
– Como você sabe, me transferiram para esta Delegacia seis meses depois do desaparecimento. As investigações estão paradas há um bom tempo e nunca me delegaram nada. – respondeu o inspetor Delano, franzindo a testa enrugada.
– E o enfermeiro? Alguma notícia? A Igreja se pronunciou? Nada, nada?
O inspetor limitou-se a balançar a cabeça negativamente. Após alguns segundos calados, perguntou:
– Por que o senhor se preocupa tanto com aquela freira? Aquele boato de que ela estava grávida de um médico tem a ver com isso? – insinuou o inspetor.
– Isso é uma blasfêmia! – irritou-se o médico. – Aquela mulher era uma santa. Cismaram que a barriga crescida era gravidez. Na verdade, ela estava doente. Tudo leva a crer que ela tinha um cisto no abdome. Eu mesmo a examinei e me prontifiquei a realizar o tratamento.
Permaneceram em silêncio por mais alguns segundos. O inspetor Delano, constrangido, acendeu um cigarro. Ofereceu um ao médico que o recusou.
– Bem… – retomou a palavra o policial. – Talvez tenha algo que possa lhe interessar. Mas só vou revelar isso para o senhor devido à amizade que tinha com seu saudoso pai, ok? Não sei se é útil, mas já pode ser alguma coisa.
– Diga.
– Descobriram um cemitério clandestino numa fazenda há dois dias. – prosseguiu com o cigarro descansando no canto da boca. – Saiu em todos os jornais. O senhor não ficou sabendo?
– Sim. Eu li a notícia.
– No mesmo dia em que saiu a notícia, coincidentemente vi uns recibos de abastecimento das viaturas, datados de 1948, próximos ao dia do desaparecimento da Irmã Ludmila. Tinham umas anotações no verso indicando “visita ao Convento”. Próximo ao local onde encontraram os corpos, existe um, na Serra da Misericórdia. No mesmo dia, o ex-prefeito apareceu na Delegacia, muito irritado, procurando o Chefe de Polícia. Então, à tarde, procurei novamente pelos recibos nos arquivos e não encontrei nada. Não sei… Tudo isso pode não ser nada ou talvez eu esteja ficando velho.
Diante da revelação do inspetor, Dr. Dumont desviou o olhar inquieto, o que foi logo percebido pelo inspetor.
– Mas pode ser algo. O jeito é aguardar e esperar por mais informações. Ainda tenho esperança de reencontrá-la. De qualquer maneira, muito obrigado, inspetor.
Assim que o Dr. Dumont se levantou e saiu do bar, o detetive Salgado se aproximou, sentou-se de frente para seu parceiro e perguntou-lhe:
– Algum problema?
– Não sei. Mas amanhã vamos desarquivar um caso. Pega mais uma cerveja para nós.
Na verdade, o que o inspetor queria era descobrir o que realmente havia acontecido na noite em que a freira desapareceu sem deixar vestígios.
1948
O balde de água fria jogada contra o rosto do enfermeiro Betinho o fez despertar. Estava amarrado a uma cadeira, somente de cuecas. Os hematomas se alastravam pelo seu rosto a partir dos olhos. O nariz sangrava.
Lentamente, ele olhou de um lado para o outro tentando lembrar onde estava. As paredes do porão eram de pedras; e o chão de terra, batida. Na janela, grossas barras de ferro. No meio do porão, uma lâmpada pendia por um fio.
Os dois homens fortes que o sequestraram encaravam-no com olhar ferino. Ao fundo, sentada diante uma pequena mesa, estava Irmã Ludmila, cabisbaixa, sobre a mira de uma pistola Luger de um terceiro homem.
Betinho tentou balbuciar algo, porém recebeu um soco certeiro na boca, o que lhe arrancou dois dentes, além de fazê-lo sentir que alguma coisa havia se quebrado perto de seu maxilar. Viu o rosto de seus agressores, o olhar cruel deles analisando onde conseguiriam causar-lhe mais dor. Então, ficou mexendo a cabeça em ângulos diferentes, com o sangue a escorrer pelo canto da boca.
– Assine a ata ou a senhora quer que ele apanhe mais? – ameaçou o homem encostando a arma na cabeça da freira – Acabou pra senhora. Assine este documento e dê por encerrada sua administração. Ninguém quer mais a senhora aqui.
Irmã Ludmila continuou imóvel com os olhos semicerrados, o terço na mão. Com um leve tremor dos lábios, sussurrava uma oração. Brevemente, virou os olhos para um canto do porão estava na penumbra. A brasa de um cigarro se iluminou na escuridão. Se ela firmasse a visão, poderia ver a silhueta de um homem que a tudo assistia. Podia jurar que era o demônio.
Ela passara o dia todo em reunião na Casa dos Enfermos e Necessitados, tentando desmentir o boato de sua gravidez. O prefeito explicava inúmeras vezes para os membros do Conselho e da Igreja o que ouviu de sua empregada, que foi relatado pelo namorado dela, o enfermeiro Betinho. Queriam ouvir dele a verdade. Mas ninguém o localizava desde o dia anterior. Ele não aparecera para trabalhar. Ficaram ali, acusando-a e ignorando todas as suas explicações. À noite, conduziram-na numa viatura policial até aquele lugar e mantiveram-na enclausurada.
– Quebre um dedo dele. – ordenou aos comparsas o homem que segurava a arma. O dedo indicador direito foi o escolhido. Betinho berrou de dor, com sua voz ecoando com força pelo porão.
Como a freira se mantinha imóvel, ordenou que quebrassem mais um dedo. O homem se contorcia na cadeira, e sua expressão facial era de terror.
Angustiada diante do sofrimento do enfermeiro, ela pegou a caneta sobre a mesa e, com a mão trêmula, assinou. O homem averiguou a assinatura e, diante do que viu, desferiu um tapa com as costas da mão na cara da Irmã Ludmila, que foi ao chão.
– Sua negra idiota… Que merda de Victima é esta que colocou na frente de sua assinatura? – gritou ao mesmo tempo em que a levantava pelo braço e ordenava que assinasse novamente.
– Já basta. – interferiu Arthur, se revelando das sombras, segurando o charuto. – Basta a assinatura. Leve-a para o carro e depois para o Convento.
– E ele? – perguntou o torturador, fitando o enfermeiro, que alucinava de dor na cadeira.
– No caminho para o Convento, livre-se dele. Ele fala demais e pode comprometer a Irmandade. Lá na fazenda será apenas mais um numa cova. Ah! E faça essa comunista imunda assistir a tudo para ver o que vai acontecer com ela caso abra o bico.
Irmã Ludmila e Betinho foram arrastados para fora aos trancos. Os homens dirigiram por duas horas até pararem num matagal. Era uma noite tão escura que não se enxergava um palmo à frente do nariz. Posicionaram o carro para que iluminasse o local onde cavariam a cova.
Ao ser retirado do porta-malas do carro, Betinho teve por um instante o impulso fútil de resistir e lutar, mas não tinha mais forças. No chão úmido pelo orvalho e cheio de folhas, deixou-se ser levado. Tremia e chorava em silêncio enquanto cavavam.
Irmã Ludmila, cabisbaixa, mantinha-se a distância e em oração. Depois de longos minutos, um dos homens aproximou-se com um sorriso diante do corpo estendido no chão.
– Por favor, não me matem! – implorava o enfermeiro numa voz inaudível.
Mas o silêncio da noite foi cortado por um tiro certeiro em sua cabeça.
Irmã Ludmila sabia que, ali, ela também morria um pouco por não ter conseguido evitar a morte de um inocente. Sabia que as lembranças daquela noite iriam lhe atormentar em seus pesadelos mais horríveis para o resto da vida.
FIM DA PARTE 3 – CONTINUA
