Toni Ramos Gonçalves
Esta é uma obra de ficção.
Qualquer semelhança com nomes, pessoas, fatos ou situações da vida real
é mera coincidência.
“Talvez caiba à literatura falsear a ficção até extrair dela a verdade.”
Júlia Dantas
1950
A caminhonete, um Chevrolet Boca de Sapo, surgiu no alto da serra, deixando um rastro de poeira. O céu estava aberto, e a névoa matinal se dissipava. Sem dúvida ia ser um dia de sol. O carro desceu pela estrada sinuosa e, logo em seguida, parou numa área descampada, ao lado de algumas viaturas policiais.
Aguardou a poeira abaixar. Saiu do carro com dificuldade, pois, apesar de ser um veículo espaçoso, mal acomodava seu imenso corpo. Tirou um lenço do bolso traseiro da calça e enxugou o suor da testa. Viu ao longe, no alto do barranco, um homem baixo e atarracado que lhe acenava, com gestos, para que se aproximasse. Resmungou uns palavrões. Subiu ofegante e a passos lentos o pequeno barranco que levava à parte elevada.
– Valha-me Deus, Manoel! – suplicou ao se aproximar do homem que o cumprimentava, apertando-lhe a mão.
– Desculpe, Sr. Honório – lamentou o homem num tom sério. – É que…
– Que viaturas são essas??? – interrompeu ainda ofegante, as bochechas coradas pelo sol e possivelmente pela raiva. – Eu lhe pago, e muito bem, para ser meu mestre de obras e resolver todas as questões. E por qual motivo você me ligou tão cedo exigindo minha presença?
– Senhor, me acompanhe por gentileza que lhe explico – pediu, constrangido, diante da reclamação do chefe enquanto sumiam no meio da vegetação espessa.
Honório o seguia imaginando qual seria a tal urgência. Planejara terminar a obra antes que a nova rodovia BR31 chegasse ali. A estrada transversal ligaria a capital mineira à capixaba. Construiria um restaurante e um hotel para atender primeiramente aos trabalhadores. Futuramente, ampliaria aos viajantes. Comprou o terreno, por um preço baixíssimo, de um fazendeiro endividado, após receber a informação, por uma boa quantia, de um funcionário público e, assim, saber com antecedência a rota da rodovia.
Quando atravessaram a pequena trilha, se depararam com um grande número de pessoas, policiais conversando e ao mesmo tempo orientando os operários.
– Que isso??? – espantou-se Honório – Me explique que merda é essa, Manoel!!!
– Patrão, ontem enquanto fazíamos as escavações para os alicerces da obra, encontramos os ossos de um cadáver.
– O quê? Meu Deus, por que não me disse antes, seu infeliz? A gente poderia contornar isso sem envolver a polícia…
– Mas, Senhor… – continuou Manoel – É que logo em seguida encontramos outro corpo e depois mais outro, e mais outro…
– Você está dizendo que todos esses buracos são de ossadas humanas?
– Sim. Até agora encontramos vinte corpos… – concluiu Manoel engolindo seco e fazendo o sinal da cruz.
– Diacho… – murmurou Honório diante da imagem desoladora. Quando percebeu a aproximação de um policial, soube que teria sérios problemas para continuar as obras. E isso traria um grande prejuízo para seu investimento.
***
1950
A música se misturava com os risos e gritos das crianças, no convento cravado aos pés da Serra da Misericórdia.
Como pode um peixe vivo
Viver fora d’agua fria?
Como pode um peixe vivo
Viver fora d’agua fria?
Como poderei viver
Como poderei viver
Sem a tua, sem a tua
Sem a tua companhia?[1]
A freira, sentada num banquinho de madeira, debaixo das mangueiras, tocava sorridente seu violão, animando as crianças numa brincadeira de roda e cantigas. Ao término de cada música, a criançada corria em sua direção e pedia mais músicas. Ela se via perdida em meio a tantos pedidos e pequenos abraços.
– Irmã Ludmila! – ouviu-se uma voz autoritária.
As crianças se silenciaram e ficaram quietas instantaneamente.
– A Madre Superiora – continuou a outra freira que se mantinha a distância – ordenou que você limpe novamente o escritório. Agora!!!
A alegria da Irmã Ludmila colidiu com o olhar gélido e duro da colega que logo em seguida se juntou a uma turma de freiras, que saiu do convento em fila indiana. Despediu-se das crianças, abraçando novamente uma a uma e deixando-as aos cuidados da noviça que acompanhava a brincadeira.
– Fiquem com Deus! Amanhã vamos continuar. – prometeu às crianças dando uma piscadela, ao se distanciar.
Irmã Ludmila sabia que a limpeza era só mais um dos inúmeros castigos que lhe eram sentenciados pela Madre Superiora, desde sua chegada ali, há mais de um ano, numa noite sombria. Entrou no escritório sabendo que não havia nada mais para limpar. Simplesmente, ficaria ali, escondida da maldade alheia. Sentou-se e, por uma fração de segundos, se viu no passado quando foi nomeada Madre Superiora na Casa de Enfermos e Necessitados, onde permaneceu durante uma década, numa cidade longínqua. Além do costumeiro preconceito sofrido em razão da cor de sua pele, vivia em meio aos colegas invejosos, vaidosos e maus. Mas, apesar de tudo contra, conseguia ajudar aos mais necessitados naquilo que era possível. A Maternidade que criou para atender as mães carentes foi sua maior realização. Mas suas boas ações não eram bem vistas por aqueles que queriam poder e dinheiro.
De volta à realidade e afastando o passado ainda recente, desviou o olhar para o jornal sobre a mesa. Ao ler a manchete na primeira página, teve a sensação de facas gélidas atravessando-lhe o corpo:
“CEMITÉRIO CLANDESTINO É ENCONTRADO EM OBRA DE FAZENDA”
Hipnotizada diante da notícia, percebeu a sala escurecer e viu, através da vidraça da janela, nuvens negras encobrirem o sol do meio da tarde, num prenúncio de tempestade. Leu a reportagem e pela foto reconheceu o local citado no jornal. Sentiu o passado novamente a assombrá-la. Saiu do escritório com a fisionomia tensa. Apressada, pegou a rua ao lado do convento que dava para a parte mais alta da Serra da Misericórdia. Lá havia uma pequena capela, pouca frequentada, onde na maioria das vezes fazia suas orações. A passos lentos, devido ao seu peso, foi subindo a rua íngreme. Também pesava o cansaço diário das tarefas forçadas infindáveis, tudo em troca de uma péssima comida e um local para morar, que mais parecia um chiqueiro.
A subida do morro era feita por etapas na tentativa de recuperar o fôlego e amenizar as fortes dores nas articulações. Desde sua chegada ao Convento, a saúde piorava a cada dia. Enquanto descansava, via a tempestade açoitar o horizonte e as nuvens negras ficarem cada vez mais próximas. A notícia no jornal trouxe-lhe à tona um sentimento há muito adormecido: o medo e as lembranças daquela noite, quando sua vida se tornou um inferno. Precisava rezar e pedir a Deus forças para que afastasse todo aquele mal de perto dela e de outras pessoas. Ela sabia do que aquele demônio era capaz.
A capela era pequena e sequer tinha um sino. Do alto da serra, Irmã Ludmila imaginava ver o mundo todo. Por isso, gostava daquele local. Ali, podia rezar por toda a humanidade. Ao abrir a porta do pequeno santuário, a claridade do dia revelou um altar com a imagem de uma Nossa Senhora, feia e desbotada, com vasos sem flores e sem outros adornos, nada digno para um lugar sagrado. Acendeu duas velas nos castiçais e, de joelhos diante do altar, começou a rezar.
– Salve, Rainha, Mãe de Misericórdia, vida, doçura, esperança nossa, salve! A vós bradamos, os degredados filhos de Eva…
De olhos fechados, parecia estar em outro plano astral. Mal ouvia os trovões ao longe e a chuva que formava uma enxurrada lá fora. Uma rajada de vento, que fez bater a porta e apagar as velas, a fez voltar seu olhar para a entrada da igreja. Arregalou os olhos diante da figura de um homem que estava parado na porta, enquanto um relâmpago cortava o céu chuvoso.
FIM DA PRIMEIRA PARTE (continua)
[1] Peixe Vivo, Valdemar de Jesus Almeida e Neurisvan Rocha Alencar.

Muito bom! Acredito que os elementos religiosos contribuem muito para esse clima de mistério. Fiquei extremamente curiosa para saber a relação da irmã Ludmila com os corpos encontrados, além de descobrir quem é o homem do final. Aguardo as próximas partes!
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Narrativa com palavras fortes e um clima denso de mistério. Curiosa para saber de quem são os corpos.
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Muito instigante essa primeira parte! Também fiquei curioso sobre essa angustia da irmã Ludmila.
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Gostei bastante, renderia um bom livro.
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