História de Natal

Ramiro Guedes*

E como chegou o dia 25 de dezembro, Maurício esperou que ele fosse diferente. Doze anos, morador do bairro São Lourenço, o que a turma chamava de baixo São Lourenço, a ilusão de Maurício, o Maú, tinha sentido. Afinal, morava em uma casinha de taipa de 3 cômodos, com banheiro fora. Um quarto era para ele e seus 5 irmãos, 3 homens e duas mulheres, que dormiam amontoados em 3 catres, confusão de pernas e braços. O outro cômodo servia de cozinha e os pais dormiam no outro. O pai, Joélcio, estava velho e doente e não trabalhava mais. Ficava por ali zanzando, quando não estava no “Boteco do Zeca”, bebendo e jogando palitinho. A mãe é que fazia de tudo na casa, cuidando dos meninos e lavando para fora, além de, quando chamada, fazer limpeza na casa dos ricos. A renda fixa da Bolsa Família, Noventa reais, dava para o feijão, o arroz e a banha. Pois Maú sonhava com aquele dia. Uma semana antes, Zezão Mata a Pau, chefão das drogas na região, tinha conversado com o moleque. Maú, até então, fizera apenas o trabalho de “foguete”, menino que avisa quando a polícia está chegando. Seu grande sonho era ser mula, levador de droga para outros pontos. Não tinha medo do perigo, queria apenas ser mula e ganhar o dinheiro que o tráfico pagaria para ele. Zezão lhe prometera duzentão para, no dia 25, levar o bagulho para uma banca do Tancredo. Na noite de 24 para 25, calado, ficou escutando a conversa dos outros companheiros, todos da mesma idade, todos sonhando ser mula, todos falando de Natal. Falavam dos presentes que iam ganhar da Igreja da comunidade e da ceia que as pessoas iam fazer para os pobres do bairro. Maú não falava nada. Queria apenas que chegasse, vinte e cinco para ele virar mula de Zezão. Não se importava com brinquedos, ceia, roupas usadas que ia ganhar: queria era levar a droga em segurança, entregar a bicha direitinho, receber o cobre prometido por Zezão. Se fizesse o serviço direito, viraria mula de vez, ganhando sua grana certa, podendo até, mais tarde, virar agente da boca. Sonhava acordado, olhando a rua branca de areia e sol, o calor escaldante daquele fim de dezembro. Não estava ali: estava nas ruas do Tancredo, andando veloz, levando o bagulho. Toinzim, o irmão do meio, chamou: “Vamos bater um baba ali no campinho, Maú?” Recusou o chamado do irmão, que respondeu: “Então fica aí, trouxa, pensando na morte da bezerra. Nós lá vai.”

Caiu a noite, vieram as comidas e os doces, Maú comeu pouco e foi dormir. Queria que a noite passasse depressa, só isso. Seis horas já estava de pé, correndo para o barraco de Zezão. Chegou lá, sentou no batente da casa e esperou. Sabia que não devia chamar, sentou e ficou quieto. Lá pelas 7, Zezão abriu e porta e apenas comentou: “Ô moleque, já tá aí? Entra.” Maú entrou e ficou na sala de reboco, espiando os cantos. Zezão foi ao quarto do lado e voltou com uma bolsa cinza, pequena e discreta. Entregou a bolsa para Maú e explicou: “Essa aí é dos cana. Se te pegarem entrega essa, que o bagulho não tá nela, não. Tá é aqui. Veste”. Era um casaco jeans, bolsos grandes e folgados. A droga estava no fundo costurado dos quatro bolsos. Zezão: “Tu vai ligeiro e chega na casa de Valdemarzão. Entrega o casaco e te manda de volta. Chegando aqui, o teu tá na mão. Toma um gole de café e vaza”. Maú vestiu o casaco, recusou o café e saiu. Dali até o Tancredo, na casa de Valdemarzão, não era longe. Seguiu a recomendação de Zezão: “Tu não corre, que pode dar na vista”. Naquela hora de manhã, já havia gente na porta de Valdemarzão. Chegou quieto, não falou com ninguém, entrou pelos fundos. Na cozinha pequena, Valdemarzão tomava café, ele e mais quatro. Maú chegou e foi direto ao chefe: “Zezão me mandou”. “Senta aí, pivete”, veio o outro. Maú sentou e foi logo começando a tirar o casaco. Valdemazão, na hora, mandou parar: “Tu tá leso, moleque? Espera eu mandar”, falou. Maú parou as mãos e ficou quieto. Valdemarzão: “Xumbrega, vai lá fora e vê se tá tudo nos conforme”. O tal Xumbrega, gordo e vagaroso, saiu pela porta da cozinha. Ficou tudo em silêncio e Valdemarzão perguntou: “E aí, guri, vai fazer o que com a grana?” “Vou comprar um sapato pra mãe Déia e o remédio do pai, que acabou”, respondeu Maú. “Bom guri, bom guri”, resmungou o outro. De repente, Valdemarzão se levantou e foi até a mesa do canto. Havia nela uma gaveta, ele abriu e tirou um pacote de lá. Entregou o pacote a Maú e disse: “Abre, é teu. Bota lá na porta do barraco”. Era uma imagem de Papai Noel, de plástico, toda brilhante e novinha. Maú ficou com o presente nas mãos, quase sem poder respirar. Era lindo demais e ele imaginou a cara do velho Noel na porta do barraco. Valdemarzão sorria do jeito deslumbrado do menino. Foi aí que ouviram os gritos de Xumbrega: “Sujou, sujou! É cana!” Correria, tiros, viaturas chegando, Valdemarzão e os outros de armas na mão, fumaça e barulho. Maú correu para trás do fogão e se escondeu. A confusão não durou cinco minutos. Com pouco, o silêncio se fez. Os cinco corpos estirados no chão eram dos traficantes, Valdemarzão morto com um tiro no olho esquerdo. O tenente que comandava a operação chamou o sargento e mandou: “Levanta quem morreu antes que a imprensa chegue”. “Morreu todo mundo, tenente, já olhei”. “E aquele pé saindo de trás do fogão?” “Vou lá ver”. O sargento foi até o fogão e arrastou Maú pelo pé. O peito estava rasgado de bala, o rosto molhado de lágrimas, a morte absoluta presente. Do bolso direito do lado de cima do casaco, furado por uma bala, um pó branco escorria.

Nas mãos, coladas no peito, estava a figura do Papai Noel com o seu riso estilhaçado. Maú, finalmente, havia virado mula.

*Conto premiado (1º lugar) na versão interna do Prêmio Castro Alves de Literatura 2020, promovido pela Academia Teixeirense de Letras. Ramiro Guedes é professor, radialista, jornalista e titular da Cadeira 7 da ATL. É contista e poeta. Toni Ramos Gonçalves foi um dos jurados desta edição e deu nota máxima ao conto.

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