Por Toni Ramos Gonçalves*
“Vamos, Carlos! Estamos atrasados”, disse o homem ao atravessar a faixa de pedestres.
“Calma, pai! Que ansiedade! E não é Carlos… É Samantha, viu?”, disse a moça alta, muito magra, o cabelo amarrado no estilo rabo de cavalo mais preto do que loiro e se equilibrando sobre o salto alto.
Subiram por uma rampa que dava acesso ao saguão do fórum, num atropelo de gentes que desciam e subiam apressadamente. A multidão, a maior parte estrangulada por gravatas, perdiam-se por aqueles corredores mal iluminados. O pai, com seu indisfarçável incômodo pelo número excessivo de olhares direcionados a sua filha, buscava encontrar logo o seu advogado, no meio daquela confusão.
Dr. Heraldo, amigo de faculdade, estava num canto defronte a um janelão de onde se avistava uma praça e suas árvores centenárias. Conversava no celular e o doutor, ao ver que se aproximavam fez um sinal com a palma da mão pedindo que aguardassem. A ligação durou uns três minutos. O pai lembrou que o colega era bem legal no passado, mas com o tempo tornou-se muito formalista (diferente de seu passado boêmio) além de, agora, falar constantemente de vinhos, uma chatice. Não mudara muito fisicamente e mantinha o velho cavanhaque e a longa cabeleira, grisalha. Nunca entendeu por que ele não se casara.
Finalizada a ligação, o advogado estendeu a mão aos recém-chegados e cumprimentou-os demorando um pouco mais ao segurar a suave mão de Samantha.
“E sua recuperação, querida?”, perguntou, colocando sua mão no queixo dela, carinhosamente, verificando as pequenas cicatrizes naquele belo rosto.
Com um sorriso ela retirou os óculos de grau e deixou ser observada.
“Melhorando, né, doutor”, disse, numa voz suave.
“Por qual motivo você nos ligou, Heraldo?”, interrompeu o pai, não agradando daquela súbita intimidade.
“Desculpe por não atendê-los em meu escritório, mas é que tenho três audiências durante o dia e precisava falar com vocês com urgência”, explicou recompondo-se de sua atitude anterior. “Bem, os advogados do agressor da Samantha entraram em contato e propuseram um acordo extrajudicial”,
“Como assim? Eu quero aquele babaca na cadeia”, levantou a voz Samantha, chamando a atenção de alguns transeuntes.
“Calma, deixe-me explicar. O agressor é o filho caçula de um candidato à presidência, aquele com os filhos deputados. O que lhe agrediu é o filho pegador, segundo falam.”
Samantha soltou uma gargalhada.
“Pegador? Com aquilo daquele tamanho?”, zombou, mostrando o dedo mindinho para os dois.
O pai beliscou a filha, irritado.
“Componha-se!”
“Para, pai!”, disse, dando-lhe um tapinha na mão.
“Aconselho vocês a aceitarem. Eles não querem escândalo, ainda mais com a proximidade das eleições. Eles me ofereceram esse valor, caso concordem. Aquele vídeo que conseguimos no estacionamento foi ótimo”, concluiu o Dr. Heraldo entregando um papel com o valor ofertado.
O vídeo mostrava toda a agressão e reforçava a versão da vítima. As imagens mostravam Samantha e o agressor abraçados, indo em direção a um carro. Antes de entrarem no veículo se beijaram durante longos minutos, até que a vítima parece querer dizer algo, mas o agressor era insistente e continuou com as carícias. Minutos depois ele se afastou, assustado, e percebeu-se um início de discussão. Pelo visto, ela tentou se explicar e subitamente recebeu um soco de esquerda, bem no rosto, que a lançou contra o carro. Em seguida viu-se uma sequência de socos desferidos contra o rosto e o tronco da vítima até cair no chão, onde levou mais uma série de pontapés. Depois o rapaz se afastou e somente após vinte minutos apareceu outro casal que socorreu Samantha.
“Isso tudo?”, surpreendeu-se o pai ao conferir o valor.
“Ainda é pouco”, disse Samantha com o olhar distante, para além da janela. Era um lindo dia azul. Nos olhos vermelhos, o choro engolido.
Dr. Heraldo se aproximou, colocou as mãos em seus ombros tentando acalmá-la.
“Sei que é difícil para você, Samantha, mas, você sabe que esse processo pode se estender por anos e no final sempre saem impunes. Lembra que a imprensa não divulgou nada quando aconteceu? Foi tudo abafado. Eles têm poder e dinheiro. Podem alegar um monte de coisas durante o processo, como um surto inesperado por uso excessivo de drogas. E além do mais, pode ser perigoso. Todo mundo sabe do envolvimento deles com os milicianos. Você não vai querer que seu pai a encontre morta em algum terreno baldio ou fique anos em busca do seu corpo desaparecido, vai? Ter opção é melhor do que não ter nenhuma.”
Samantha não resistiu ao choro, abraçou o advogado e soluçou em seu ombro.
O pai observou a tudo calado. Nunca soube lidar com a transformação do filho, ocorrida há pouco mais de um ano. Sua criação religiosa dificultava ainda mais o entendimento.
“Pois bem…”, interrompeu o pai. Os dois se afastaram e desconcertados o ouviram. “Vejamos pelo lado bom. Com esse dinheiro você pode terminar sua faculdade ou até fazer aquela cirurgia estética tão desejada por você, quem sabe?”
“Verdade”, falou Samantha enxugando as lágrimas com as costas da mão e esboçando um sorriso discreto.
“E o valor será pago a vista”, completou o advogado. “Precisaremos retirar a queixa, anulando-se assim o processo e a vida segue, apesar de ficar toda essa dor física e mental. Cedo ou tarde ele vai ter o que merece. Pode ser assim, então?”
Apertaram as mãos em concordância.
“Vamos embora, Carlos”, chamou o pai. “Obrigado, até mais Heraldo.”
“Carlos não, pai… É Samantha! Com um H entre o T e o A”, explicou bufando e revirando os olhos de raiva.
O pai saiu resmungando algo indecifrável, sem dar muita atenção. Samantha retardou o passo, e virando-se para o advogado gesticulou os lábios, a mão quase fechada, girando e desenhando no ar o sinal de mais tarde passo lá. O Dr. Heraldo conteve o sorriso, deu uma piscadela e olhando ao redor tornou-se sério, não antes de ver Samantha sumir pela rampa, com todo seu requebrado.

ANALISE CRÍTICA POR WAGNER ANDRADE (POETA E ESCRITOR)
Por um lado, vivemos numa época em que infelizmente, impera o poder do dinheiro que, tantas vezes, faz com que a impunidade, hoje tão reinante em nossa sociedade, em diferenças esferas governamentais, se torne cada vez mais patente e dilatado. O mais triste é que, se utilizando desse meio corruptivo tão sórdido, os poderosos buscam “comprar” o silêncio e, quando necessário, a própria dignidade daqueles que se veem ultrajados, humilhados, agredidos, não apenas fisicamente, como também moralmente. E o poder da corrupção é algo tão forte e devastador, que empana o brio, a moral mesmo daqueles que se põem à sua prática.
Por outro lado, em outro extremo, deparamos com um problema hoje nada latente em nosso cotidiano: a questão da violência associada à intolerância sexual. As dificuldades em aceitar as tais diferenças, se manifestam ora por meio da rejeição homofóbica e preconceito, ora através de abuso, humilhação, podendo redundar na utilização de agressões corporais.
No âmbito familiar, por vezes, tais “transformações” são difíceis de serem ingeridas e compreendidas pelos próprios genitores. O fato é que as nossas crônicas policiais insistem em abordar a violência sofrida por aqueles, cujo comportamento difere dos ‘padrões aceitáveis” pela sociedade como um todo. Ainda assim, não obstante toda a rejeição que sofrem, ao mesmo tempo que procuram se expor, se fazer presentes, se manifestar, passam a filiar-se à luta em nome do respeito às próprias diferenças e à dignidade humana. Uma forma de “transmitância” social e sexual. Assim o título vem a ser bastante coerente com a proposta da narrativa que consegue expor e conjugar muito bem esses dois fenômenos tão frequentes no nosso meio.
*Toni Ramos Gonçalves é escritor e editor.
Uma narrativa bem estruturada e que nos remete aos nossos problemas sociais. O dinheiro e o poder conspirando sempre em favor dos abastados em detrimento os que lutam pela sobrevivência no dia a dia. Parabéns!
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