Por Toni Ramos Gonçalves
“Eu tenho essa tristeza rigorosa, que me faz feliz.” Sérgio Sant’Anna
Hoje é meu centésimo dia de isolamento social. Da varanda de meu apartamento vejo o pôr do sol num laranja intenso e a brisa fria do início da noite faz com que eu feche meu agasalho. Gosto de ver o momento em que os raios do sol refletem na cruz do alto da torre da igreja, cujo brilho ofusca meus olhos. É um momento lindo, inesquecível, que só acontece durante os meses de inverno. Depois, aos poucos vejo a penumbra da noite avançar sobre a cidade que começa a se iluminar com as luzes dos postes e dos faróis dos carros, na maioria trabalhadores retornando ao lar. Lá fora tem um vírus mortal. Não é um vírus de uma simples gripezinha, nunca foi. Com o passar dos dias percebo que ter um líder ignorante pode ser uma desgraça maior que a doença. A soma das vítimas da Covid-19 ultrapassou os cinquenta mil no último fim de semana. Isso somente no Brasil. E o número diário de contaminações é preocupante. Sou hipertenso, asmático e meus sessenta e um anos fazem com que eu faça parte do grupo de risco. E sem ter cometido crime algum durante toda vida, estou aqui nessa tão necessária prisão domiciliar.
De um dia para o outro acordamos num mundo pré-apocalíptico. Não foi uma guerra nuclear, nem uma invasão alienígena, muito menos um meteoro gigante, como aquele que extinguiu os dinossauros. Foi um vírus, invisível a olho nu, que quer somente se reproduzir, que veio nos mostrar toda nossa fragilidade e pequenez. O governo decretou quarentena e pediu que todos ficassem em casa, evitando assim a propagação do vírus. Iniciou-se, então, uma correria aos supermercados, o comércio não essencial foi obrigado a fechar, assim como as escolas, as fronteiras, as igrejas e outros templos religiosos, justamente no momento em que mais precisávamos dos milagres de Deus. Numa tarde de sexta-feira, assisti pela TV à benção do Papa Francisco no pátio vazio da Basílica de São Pedro, diante do crucifixo de São Marcelo, o Cristo Milagroso. Caía uma chuva fina e o céu estava escuro e sombrio. Naquele dia a Itália completava nove mil mortes. “É o fim da humanidade!”
Adaptar-me à nova rotina não foi nada fácil. Sou aposentado há cinco anos e continuo escrevendo artigos e críticas literárias para jornais e periódicos acadêmicos, em home office (brasileiro adora palavras em inglês), e na verdade nem gosto mais de escrever. O que me pagam supera esse desgosto, por isso transformei o quarto de meu filho em escritório. Ele se casou recentemente, poucos meses antes da pandemia e desde então moro sozinho já que minha mulher foi embora bem antes dele. Um dia ela veio a mim e disse sem rodeios, impiedosa:
_ Cansei. Você se tornou um velho muito aborrecido e insuportável.
Nem ao menos quis ouvir meus apelos para que ficasse. Pegou sua mala e foi morar com sua irmã, depois de vinte e oito anos de casados, foi embora sem remorso algum. Há muito tempo que nosso relacionamento estava por um triz. Por um tempo a espionei pela rede social (a inveja tem Facebook), visualizei suas viagens, festas, ao lado daquelas amigas divorciadas e viúvas, mostrando sua felicidade descaradamente, talvez até falsa, para quem quisesse ver, de preferência eu. Com o tempo, deixei para lá. Eu até penso que ela suportou muito. Sempre fui conservador, autoritário, muito certinho, uma besta para dizer a verdade, mas acredito que seja consequência da educação que recebi. Fazer o quê? Tem hora que nem eu mesmo me aguento.
Bem, nos primeiros dois meses da quarentena, meu filho ligava quase todos os dias por videochamada. Ordenou que eu não saísse de casa, que pedisse tudo que precisasse por delivery. Ainda bem que antes da pandemia aprendi a usar a tecnologia, principalmente dos celulares modernos, smartphones, que meu filho me ensinou, na maioria das vezes, sem muita paciência. No último mês as ligações dele diminuíram bastante. Teve que retornar ao trabalho. É assim mesmo. Cada um tem sua própria vida. Minha ex-esposa também ligou semana passada perguntando como eu estava. Respondi que estava mais aborrecido e chato do que antes, mas sentia muitas saudades dela. Na verdade sinto saudades de mim mesmo, de todos e de tudo. Envelhecer dói no corpo e na alma.
E na construção desses cem dias, em meio à solidão e tristeza crescentes, perambulo pelos quartos da casa de pijama, ora escrevendo, outras lendo um bom livro, noutras ouvindo música clássica e na maioria das vezes na frente da TV. Quando se noticia a morte de algum artista que eu sou fã eu choro. E quando alguém me liga e avisa que um amigo de longa data foi vítima da doença, choro em dobro. A morte parece escolher a dedo quem quer levar. Fica aquela impressão que ela prefere boas companhias. E falando em companhias, às vezes me pego recordando dos recentes eventos culturais nas cidades históricas e das viagens à beira-mar, dos amigos a prosear nos botecos de copo sujo tomando aquela cachaça com torresmo, falando e julgando a vida alheia. Tem momentos em que viajo para bem mais longe em minha mente, onde o tempo aos poucos apaga as lembranças da infância na roça junto dos meus pais e irmãos naquela vida miserável que vivíamos.
Agora tudo parece tão distante e irreal, inclusive o futuro. O mundo parece revirado ou do avesso. Essa nova realidade assusta e enlouquece, não somente a mim, mas a todos. Em meio ao caos social, político e econômico do momento atual do Brasil, exemplos de loucuras não faltam. Pela TV e redes sociais assisto ao pesadelo que se tornou nossas vidas. Nega-se a ciência e receitam-se medicamentos sem comprovação científica; ministros da saúde demitidos ou que se demitem; gente ignorando o isolamento social pelo simples fato de não acreditar na existência do novo Coronavírus; teorias conspiratórias sobre a China querer dominar o mundo; várias manifestações fascistas pelo país pedindo o retorno da ditadura militar; a falta de diálogo entre os poderes legislativo, judiciário e executivo; manifestações contra o racismo pelo mundo, após a morte de um homem de forma covarde por policiais nos Estados Unidos; sobrecarga no sistema de saúde com hospitais e seus leitos de UTIs lotados; corrupção com desvios de verba na compra de respiradores hospitalares; dificuldades do povo e pequenas empresas em receber auxílio emergencial do governo (emergencial somente no nome) e até quem estava sumido apareceu, né, Queiroz?
Há vinte dias iniciou-se a flexibilização do comércio em plena ascensão da doença pelo interior do país. Desde que o mundo implantou o capitalismo, o dinheiro sempre será prioridade. Existe certo pânico e um receio das empresas irem à falência ou que a população morra de fome. “CPFs ou CNPJs?”, penso, com essa reabertura, que começamos a perder essa guerra contra o vírus. “Aliás, quem necessita da ciência?” E o brasileiro em nada ajuda. Mal educado, afobado e por muitas vezes irresponsável. Neste mundo injusto e egoísta, é cada um por si e Deus por todos, caso “Ele” realmente exista. Só saberemos as consequências desse erro com o tempo. “Errar é humano”. Mas, na verdade somos resultados de nossos próprios erros.
E eu também erro. Idoso é teimoso e eu não seria diferente dos demais. Digo isso, pois, mesmo sabendo dos riscos, decidi sair de minha reclusão. Todo mundo tem o direito à liberdade de ir e vir. Então optei por quebrar a regra, logo eu tão certinho, decidi revelar uma foto em que a família estava reunida (pai, mãe e filho) numa forma de recordação e assim abrandar um pouco a saudade. Diante do espelho, nem me preocupei com o avanço das rugas, a barba branca por fazer e a calvície cada vez mais visível. Troquei meu pijama encardido pelo meu terno cinza e engomado e, ao vestir a roupa, percebi o quanto havia expandido horizontalmente durante a quarentena. “E agora, José?”, como disse o poeta Drummond. “Agora que ela não volta para mim mesmo.”
Coloquei a máscara, lambuzei as mãos em álcool em gel e sai para meu destino, a três quarteirões de minha casa. A sensação de estar em liberdade, mesmo condicional, não foi das melhores. É como se a morte espreitasse a cada esquina. Cruzei com várias pessoas mascaradas. “Quem é você? Aliás, quem somos nós?” Apesar dos inúmeros avisos, havia aglomerações nos ônibus lotados, filas em frente às lojas desrespeitando a distância de segurança. Um caos total. Disseram que o mundo vivia um novo normal, mas os velhos costumes ainda persistiam. “Quando a humanidade vai evoluir?” Querendo ou não, percebi que o local mais seguro era dentro de casa ou dentro de mim. Fiz o que tinha que fazer de forma automática e retornei o mais rápido que pude para o apartamento.
Na verdade, agora começo a me arrepender de minha saidinha da prisão. Por mais cuidadoso que sejamos, estamos sempre à mercê da fatalidade. Faz dois dias que não estou bem. Hoje pela manhã acordei com febre. Tem ainda essa tosse seca e insistente, que por algumas vezes me causa falta de ar, além de sentir a todo instante um pouco de canseira, diferente daquele cansaço da vida. O certo é que preciso terminar um artigo para jornal sobre a pandemia, mas não sei se vou conseguir a tempo. Também preciso ligar para meu filho. Com certeza me dará um sermão, como sempre. Puxou ao pai, então é melhor ligar amanhã. Preciso repousar, quem sabe dormir um pouco, só um pouquinho. O sol já se foi e a noite avança sobre a cidade. E lá fora tem um vírus que mata.

Excelente explanação sobre os tempos que estamos vivendo. Daqui a cem anos, quem ler o texto terá um ótimo relato histórico do que passamos. Parabéns!
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O conto “Cem Dias” relata o que estamos vivendo hoje. Para alguns pode até parecer apenas ficção. Mas me senti exatamente assim outro dia na fila da empresa telefônica. Não consegui resolver meu problema ‘online’.
Parabéns, Toni!
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