SEMI-CONTRAFAÇÃO*

Por Ana Guimarães**

O tempo se gasta. Rumino o que digo e penso como baba de boi: cai e não cai. Quem-quem remexendo no esterco, pra lá e pra cá. Ando caçando errado, quanto mais procuro, menos acho. Canso de vigiar, de perseverar, e nada. Corre o coração a ajudar o pensamento, a confundi-lo, para melhor conhecer: a gente só sabe bem aquilo que não entende. Deus (o inconsciente) é que me sabe. Deixo-me penetrar por esse conhecimento maior. Vem, me ensina o que eu já sei.

Amanheço toda e cada manhã num pouso diferente. Virgem, tabula rasa, página em branco. Nenhum juízo pré-concebido, pura interrogação. Ensolarado dia, chuva, tanto faz. O rio só parece ser o mesmo, acaso ele parou de correr? Espia a terceira margem. No entanto, tréguas são necessárias. Que se revezem com as tormentas – uma calmaria, vez em quando, é bem-vinda.

A hora em que o meu ser tão veredas mais se revela a mim (e, quando consigo, transcrevo-o, deixando-me cavalgar pelo diabo da inspiração, afinal a vida também é para ser lida) é no lusco-fusco entre o sono e a vigília, na frente do acordar. No nada. Quando os olhos ainda nem se abriram para o exterior é que eles mais vêem o de dentro. Não temo ter medo, aprendi, porque não adianta dar as costas, ele volta. Receio apenas cansaço de esperança.

Há que frear a excitação. Fazer silêncio e reverência, igual ao momento em que o peixe vai fisgar a isca, na pescaria. Cuidar de anotar de imediato, todavia com delicadeza (é todo um equilíbrio instável), senão a clareza se esvai feito nuvens desmanchadas pelo vento, a visagem se desfaz como um sonho que escapa nas asas do instante. Depois, só acionando hábeis sentinelas da memória, com sorte, de prontidão.

Estendo tapete vermelho, ladrilhos, seixos, pedrinhas de brilhante para o meu amor (a palavra) passar. Ah se essa rua já fosse minha, mas não, autorizo-me ao longo do caminho (e existe outra maneira de?), uma viagem intima, narcisicamente falando. Elíptica, sinuosa, não em linha reta. Viator ao centro do meu mundo (no meio do redemunho), ou ao mais próximo que dele possa chegar. Desejo fáustico porque impossível de ser realizado, tem sempre um resto que resiste.

O fenômeno é espontâneo, porém precipitá-lo é possível. Começo por espera ativa, embora sem contornos definidos. Não me deixo enganar, toda quietude é aparente – águas paradas escondem correntezas no fundo. É só ficar de ranger rede, a ver ou fazer coisa nenhuma, a aguardar, como dia de véspera, que acontece: o sertão vem. Aí é aproveitar. Escrever é duro, penoso, mas inevitável: põe grades entre mim e as feras, amortece o contato com o Real.

Cerzidor, aquele que costura estórias, era um dos apelidos de Riobaldo. Cerze-dor, quem tapa com a linguagem os buracos abertos pelo sofrimento. Talvez o leitor distinga, mais do que o escritor, a verdade: são muitas, são meias. Meu monólogo é diálogo, tantas sou, tantas vozes me habitam. Fora visitantes mariposas e borboletas voando de passagem, além das que batem temporárias asas para, em seguida, retornar ao solo de onde saíram, feito tanajuras.

Dou de comer à fantasia, sem pressa. Associação-livre a meio-galope. Permite o reconhecimento do terreno e seu registro, com o paroxismo que só a liberdade carreia: sensação de proteção debaixo de árvore galhuda a conviver com a inquietude da vastidão de sítio aberto, quase agorafobia. Viver não é caminhar alegre, inda que descalço sobre espinhos? É isso ou ter a consciência pesando que nem saco cheio de pedras, por nada ter feito, arrependido.

Curvo-me à equivocação das nuances do sentir: nem amor nem ódio (também não indiferença), nem bem nem mal (e não se trata de neutralidade), nem grito nem sussurro: falo, e não é tão simples como parece encontrar o tom. Em todo caso, é preferível procurar do que achar – esse último verbo cheira à morte.

*Guimarães Rosa justificava assim nomear seus textos por considerá-los plágios dos escritos que os antecederam e influenciaram.

Foto: Pexels

**Ana Guimarães

Parodiando um famoso texto, se pudesse viver novamente minha vida trataria de cometer os mesmos erros porque foram eles, mais do que os acertos, que me trouxeram até aqui e me fizeram quem sou. Corri todos os riscos que pude e quis. Tive muitos problemas reais e imaginários, também a coragem para enfrentá-los e a humildade para pedir ajuda quando não conseguia resolvê-los. Mas, acima de tudo, além de ler, sempre curti muito escutar (sou psicóloga) e escrever. Em ambos os ofícios a verdade da fantasia é o que importa, cuidar da arquitetura da ficção. Acredito não deter nenhum controle sobre os bastidores da criação, ao contrário, a inspiração é que se impõe, determina, fala através de mim, ou apesar de mim. Não escolho, sou escolhida: pura entrega, passagem, corredor.

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