Receita rosiana

Por Almir Zarfeg*

De maneira descontraída e paternal, Guimarães Rosa deu algumas lições de iniciação literária à sua filhota e futura contista, Vilma Guimarães Rosa, sobre como escrever um bom conto: “Vilminha, vou te dar uma dica de escrita. Sabe o que é mais importante na hora de escrever um conto? É o começo”. A filha responde, perguntando: “Por quê, papai?”. “Para a pessoa se interessar e ler inteirinho.”

Mas, afinal, existirá uma receita para a criação de um texto literário – um poema, um conto ou uma novela – como existe para a produção de um bolo de fubá? Certamente que não. No entanto, em se tratando de Rosa, é bom levar em conta seus conselhos e considerações.

A lição prossegue: “Vilminha, tenho mais uma dica para você. Sabe qual é a outra coisa mais importante num conto?”. Vilminha, de novo: “O quê, papai?”. “É o fim. Para que a pessoa tenha vontade de ler o próximo.”

Como se depreende do diálogo acima, Rosa foi bem direto e pragmático ao orientar a aprendiz de escritora que, mais tarde, escreveria o livro de contos “Por que não?”, dentre outros. Com o jovem Fernando Sabino, o autor de “Grande Sertão: Veredas” procedeu de modo ainda mais incisivo. Ao saber que Fernando Sabino insistia em escrever crônicas, Guimarães Rosa não pensou duas vezes: “Não faça biscoitos, faça pirâmides”. Sabino não se fez de rogado e, em 1956, apareceu com a Pirâmide de Quéops “O encontro marcado”.

Independente da implicância de Guimarães Rosa, a crônica continua sendo vista como um gênero menor que, historicamente, teve cultores do naipe de um Machado de Assis, Paulo Mendes Campos, o próprio Fernando Sabino e, óbvio, Rubem Braga. Este dominou, como poucos, a crônica – essa mistura de jornalismo e literatura –, a ponto de gozar de grande prestígio na literatura brasileira como “papa” dos nossos cronistas. Uma crônica? It’s easy: o velho Braga perseguindo uma borboleta amarela em pleno centro do Rio de Janeiro, enquanto o vizinho do apto. 903 reclama do barulho provocado pelo do 1.003…

De volta aos conselhos literários, veja este proposto por Drummond no poema “A procura da poesia” aos poetas iniciantes: “Penetra surdamente no reino das palavras. / Lá estão os poemas que esperam ser escritos. / Estão paralisados, mas não há desespero, / há calma e frescura na superfície intata. / Ei-los sós e mudos, em estado de dicionário”. Tal advertência foi parafraseada por um baianeiro nestes termos: “O verdadeiro sentimento poético se revela na criação/perdição/libertação e não pode, em hipótese alguma, ser confundido com o estado emotivo de quem se apaixonou à primeira vista ou simplesmente descobriu que a vida é um barquinho à deriva navegando num mar de m… O bardo mineiro estava com a razão. Definitivamente, isso ainda não é poesia”.

Rilke, nas cartas que trocou com o jovem poeta Kappus, entre fevereiro de 1903 e dezembro de 1908, foi mais, digamos, filosófico: “Não dês atenção à crítica, mas afunda-te na solidão”. No final, porém, prevalece a sensação de que estamos diante de um manual de auto-ajuda, no qual, mais que orientação estética, sobressaem os conselhos de humildade, honestidade e perseverança.

Ainda bem que a qualidade literária está acima dos gêneros, normas e rótulos. Tanto que – ao contrário de Aristóteles, que classificou os gêneros em narrativo, lírico e dramático – Bakhtin chamou a atenção para a constituição, conexão e interação dos gêneros com as atividades humanas. Ao enfatizar o caráter social dos gêneros, o teórico russo sinalizou que o conceito de gênero deve englobar as diferentes modalidades textuais empregadas nas situações cotidianas de comunicação. Oral ou graficamente.

Por outro lado, uma simples visita à obra de Guimarães Rosa – criador de pirâmides como “Sagarana”, “Corpo de Baile” e “Grande Sertão: Veredas” – vai nos revelar um artista completamente avesso à mesmice e à previsibilidade literária. Pelo contrário, trata-se de alguém que soube aliar como poucos a invenção fabular e a experimentação formal. Por isso sua obra continua causando impacto, aquém e além-mar.

Muito inventiva, densa e universal, a obra rosiana é considerada – na mesma proporção – difícil, desafiadora e hermética. Enfim, “um matagal indevassável” só para iniciados. Com certeza há exagero nisso, bem como é indiscutível que ler Rosa é diferente, por exemplo, de ler Jorge Amado. Aliás, o próprio Guimarães Rosa faz uma última recomendação: “Minha literatura é para bois, não é para ser engolida de vez”.

Foto: Toni Ramos Gonçalves / Óculos e relógio de João Guimarães Rosa em exposição no Museu Sagarana.

*ALMIR ZARFEG – ou simplesmente A. Zarfeg – é poeta e jornalista. Atualmente preside a Academia Teixeirense de Letras (ATL). Ele é autor de mais de vinte livros envolvendo os mais diversos gêneros textuais: poemas, crônicas, contos, novela, infantojuvenil e reportagem. Zarfeg participa de inúmeras instituições literárias dentro e fora do país. Iniciou-se na literatura em 1991 com o livro de poemas “Água Preta”, atualmente na 4ª edição. Nos 25 anos de sua trajetória literária, celebrados em 2016, ganhou a biografia “De A a Z”, assinada pelo jornalista Edelvânio Pinheiro. Premiado e celebrado, seu nome virou verbete de dicionários e enciclopédias de literatura, como o “Dicionário de Escritores Contemporâneos da Bahia” e a “Enciclopédia de Artistas Contemporâneos Lusófonos”. Em 2017, recebeu o título de “Personalidade de Importância Cultural” da União Baiana de Escritores (UBESC).

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