Por Aleilton Fonseca*
Ave, vi de tudo, neste mundo! Já vi até cavalo com soluço… – o que é a coisa mais custosa que há. (Guimarães Rosa, Grande sertão: veredas)
— Mire veja: se lhe digo, foi assim ou não foi? O homem, com ares de urutu branco, conforme narrou, e a mim me contaram o fato. O menino Valtei, único filho de Pedro Pindó, tresvariava na malvadeza com os seres menores, esses do campo, viventes na terra e nos galhos. Era certeiro em usar bodoque, dar paulada, passar caco de vidro, atirar pedras. Se pegava em mãos, aí estrangulava todo bicho ou criaçãozinha pequena. Desse mau trabalho, tirava um jeito de estar contente. Obrava os malfeitos e suspirava feliz. – “Eu gosto de matar…” –, ele dizia, com os olhos ruins nos rebrilhos. Era solto? Era não, senhor! O pai e a mãe repreendiam, com castigo e cascudo, davam peias no menino. De tanto que surravam o teimoso, pegaram gosto nos maltratos, cada vez mais: botavam o menino sem comer, amarravam em árvores no terreiro, sempre nuelo de Jó, fosse em tempo frio ou quente, com chuva ou com sol. Exemplavam: lanhavam o corpinho dele na taca de couro, ramos de cipó, o tanto de cortar a pele e o sangue escorrer, daí lavavam com cuia de salmoura. Com certo tempo, Valtei estava por um fio, magrelo e sofrido, em pele e osso, que podia até logo morrer. O povo falando, a notícia correu pelos caminhos. O avô soube e veio buscar. Nhô Berto trouxe o meninozito pra cá, com o tino de criar o neto, logo alegre por não estar mais sozinho no seu terreiro. De primeiro quis mesmo cuidar, com o jeito certo e, na precisão, logo amansador, mostrando onde eram o nascer e o pôr do sol. E o menino quis? Não senhor. Ele se socava nas pirambeiras, decretado pelas picadas, só pelos matos, indo dali aos demais. Apetecia-se de matar passarinho, os bodoques nos bolsos da calça curta, os olhos ariscos sobuscando os ninhos. O avô desconcertava ao reclamar, dava nele palmadas, e daí bons conselhos: que deixasse as criaturas livres no voo, soltas a cantar. Ele, por si, somente desobedecia. Cada morte valia as sovas, que o prazer de caçar superava os zelos e os ensinos. Daí, por bondade vivida, Nhô Berto atinou com a forma de alcançar um milagre. Conversou com o Padre Antero e conseguiu lhe emprestar o neto para cuidar da horta e ajudar na Igreja, nas missas e na limpeza. Valtei, avexado em público, fez crisma e se confessou, sem sentir nenhum gosto de culpa. A penitência, para ser bom cristão, foi rezar cem vezes ao dia, repetindo os pedidos de perdão. A vida na casa de junto à igreja era sossegada. E ali ele deu proveito, que em pouco tempo sumiram os ratos, que amanheciam no quintal desencorpados, em pronto serviço de degola e retalho. Às vezes uns gatos também restavam iguais aos ratos, por simples variação do costume. Nas missas do Padre Antero, o rapazinho, já crescido, aparecia em trajes inocentes, com olhar bondoso, disposto a ajudar na purgação das almas. Auxiliava o padre com os paramentos e as obrigações de ofício, de semana a mês, daí foram uns anos. Naquela freguesia, Nhô Ananias matava boi e fornecia as carnes na feira; era pessoa de vista simpleza, um homem bom e devoto. Matava sem gostar. Já velho, um dia precisou de substituto: o reumatismo entortava sua espinha. O médico que vinha ao povoado em dia certo, recomendou aviar remédios e guardar repouso. Que deixasse o ofício, ao menos por uns tempos. Isto feito, sobreveio uma crise na feira. Havia outros açougueiros, mas a oferta pouca fez o preço aumentar. A carne começou a faltar nas mesas humildes. Não aparecia uma pessoa disposta a assumir a vaga do velho magarefe. O assunto correu de boca em boca, entrou na igreja, nas conversas de sacristia, por entre as orações. Que o padre orasse, intercedesse pelas melhoras do povo. Assim, desafiada a fé, no meio de uma homilia, o Padre Antero pediu aos céus que aparecesse um servo dignado, capaz de prover as famílias, baixar a carestia, trazer sossego e saúde aos irmãos. Foi assim, no sobredito, que um braço se levantou. O rapaz Valtei se oferecia em sacrifício, disposto a deixar o manto de sacristão para empunhar o cutelo no matadouro. Ao que o povo todo aplaudiu, como dádiva de uma graça. No serviço novo, desde logo Valtei dava excelente produção. Sem demora, nem espanto, sangrava o boi com calma e saber. Satisfação às vistas, certamente pelo prazer de levar comida aos lares. Com o tempo, se viu bem o ademais. Seu gosto era mais que sangrar o animal, também destrinchava, quase que só, desfazendo em partes, encharcado de vermelho da cabeça aos pés. Sorria alto, ao ver o bicho esguinchar. Só se via, em meio ao sangue, o branco de seu sorriso de prazer. Notaram, porém, que ele, por seu desejo, fazia o animal morrer, matado em atroz sofrimento. Não sangrava o boi de uma vez, não por imperícia, por jeitoso modo, exibindo formas de causar mais dor, fincando o chuço com finas estocadas. Quem via, mesmo os de antes, acostumados ao serviço, muito se agasturava. No seu modo de abater havia um prazer feio de pura diversão. Isso correu pelos dizeres do povo, em toda feira, a conhecida fama: o matador famigerado. Os fiéis foram cobrar atitude ao padre. Em ordem e petição, clamaram a Nhô Ananias que retomasse o posto. Muita gente parou de comer carne, como se fosse em dia santo da quaresma. Era uma vez de mudar a história. Aconteceu assim, por bem? Não senhor, por bem não foi. Uê-uê, então?! Adivinhe os apuros. Mandaram avisar a Valtei? Não sei, o senhor soube? Ou faltou coragem a quem se fizesse portador? Ao chegar ao matadouro, pelas cinco da manhã, o posto estava ocupado. Nhô Ananias e dois ajudantes iam começar o trabalho. O rapaz cresceu o corpo, saltou com ganas de leão faminto. Espantou todos dali, com gritos e ameaças. Que não largava o serviço! Não agora, não nunca! Ameaçado, ameaçador. Matava boi, matava gente, quem se metesse entre ele e sua faca amolada. Juntassem homens para prender sua fúria. Não havia ali. Pulou ao pátio de abate, sangrou e degolou dois bois de um zás, destrinchando as carnes com ferros e dentes, deixando tudo na sujeira do sangue, em ponto de picadinho, que nem se pudesse aproveitar. Os homens reagiram, de pacatos a prevenidos. Chamaram a força para dar cobro àquela doidera, só os homens armados! Valtei urrava, feito onça parida: “venham me pegar, que passo a faca e bebo o sangue de um por um”. Aloucado, tomado por uma voz de demônio, a bestafera das trevas. Devia, em balanço, terríveis perversidades. Alma dele estava no breu. Mostrava. Era dívida de outras vidas, que agora pagava. Não sendo como lhe conto, então que explicação é que o senhor dava? Eu, de mim mesmo, nem não sei o certo ou o decerto. Valtei, cercado pelos homens, todos de tiro aprontado, não se entregava, em grande aflição. E clamava que não podia ficar sem matar, já sentia demais a falta, que precisava sangrar um corpo, ver o cheiro de sangue para acalmar seus nervos, em vício de mau prazer. Puxou a faca, e riscou no ar, diante de todos que, ali na espera, assistiam com medo e cautela. Ele encarou a multidão, e correu o fio de corte sobre si mesmo, mostrando onde ferir. E começou a dar estocadas no próprio corpo, e lanhar os braços e as costas, diante do pavor que se via nos olhos do povo. Oficiava contra si, aos pouquinhos, com estranha satisfação. O sangue escorria, borbotando, de empapar a roupa em farrapos. Ele, sem gemer, apreciava com gosto o horror e o sofrimento dos homens, mulheres e meninos presentes. Um dos homens quis acudir mas recuou, senão morria como bicho estripado. Valtei, à luz, alucinado, acertou no peito um golpe soberbo e feroz, sentindo gozo com a própria dor. Daí que se dobrou quieto, e caiu com a faca cravada no coração. Matou-se, matado por si, abatido boi brabo, após um perverso viver pelas mãos da morte.

*Aleilton Fonseca é natural de Firmino Alves-Bahia (1959). Viveu a infância e adolescência em Ilhéus e reside em Salvador. Desde jovem, passou a escrever e a publicar em jornais e revistas. Sua produção literária abrange ficção, poesia e ensaio. É graduado em Letras pela Universidade Federal da Bahia (1982), com mestrado pela Universidade Federal da Paraíba (1992) e doutorado pela Universidade São Paulo (1997). É professor de Literatura no curso de Letras desde 1984, na Universidade Estadual de Feira de Santana, onde desenvolve pesquisas sobre as relações entre literatura, imagens urbanas, sertão e ecologia. Participa de eventos literários e científicos no Brasil e no exterior, como conferencista, pesquisador e escritor. Fez palestras e/ou apresentou trabalhos em universidades brasileiras e em várias instituições estrangeiras, em seis países. Tem textos traduzidos em francês, espanhol, inglês, italiano, alemão e neerlandês. Publicou cerca de 20 obras, entre as mais recentes os livros de contos O desterro dos mortos e As marcas da cidade, o ensaio O arlequim da Pauliceia, e os romances Nhô Guimarães: romance-homenagem a Guimarães Rosa e O pêndulo de Euclides. É membro da Academia de Letras da Bahia, da Academia de Letras de Ilhéus, da Academia de Letras de Itabuna, da União Brasileira de Escritores-SP e do Pen Clube do Brasil.