Por Toni Ramos Gonçalves*
Que o Bráulio era um caso perdido, quase todas as pessoas da rua e até do bairro com nome de santo já sabiam. Há anos era um problema para os pais e, a cada aprontação do filho, lamentavam-se desanimados para os vizinhos.
“Se com quarenta anos não consertou, não conserta mais. Não tem mais jeito.”
Bráulio ficou viciado desde os quinze anos, após se envolver com uma rapaziada nada sociável. Provara de tudo que é entorpecente. Começou com maconha, caiu na pedra de crack, e após uma overdose com cocaína, se limitou a fumar apenas marijuana. Fumava demais e consequentemente ficava mais sob efeito que todos, tanto que os colegas o apelidaram de Dragão. Nem mesmo as internações nos centros de reabilitação não surtiram efeitos. Uma semana após voltar à rua, lá estava ele, fumando sua tora.
“Nem sei à qual santo recorro, com o monte de promessa que já fiz”, dizia a mãe desorientada.
E vem sendo assim por anos, sem pena de si mesmo e dos familiares, consumido mental e fisicamente. O corpo atual em pele e osso em nada lembra o jovem pardo e alto, de olhos verdes, atraente, alvo de muitas garotas, na maioria filhinhas de papai, que o queriam para o prazer e pediam que lhes ensinasse a arte de enrolar um baseado. Tinha físico de atleta, fora bom meio-campista no futebol durante sua curta carreira esportiva. Sempre foi fã número um do Maradona. Abandonou a escola ainda no Ensino Fundamental e, para manter o vício, começou a trabalhar antes mesmo da maioridade.

“Sou viciado mesmo, mas meus pais não têm que bancar meu vício”, dizia enquanto queimava um baseado no alto da pedreira com um grupinho de amigos.
Perambulava pelas ruas até altas horas da noite e, apesar de empregado numa empresa, era pontual com os horários. Os olhos vermelhos o condenavam, pingava colírio, não dava bobeira, mantinha-se como podia, mas sempre mostrava serviço. E era trabalhando que contava as histórias mais absurdas.
“Tenho quase certeza de que o cão do vizinho levou um lero comigo ontem, enquanto curtia o barato. Papo mais manero. Toda noite aquele vira-lata vem bater uma bola comigo.”
“Cria juízo, homem. Para de perambular à noite. Isso tá consumindo você e vai acabar pirando de vez”, diziam os colegas mais próximos, em meio às risadas. Prometia que ia parar, mas naquela mesma noite estava a vagar pela cidade atrás das bocas de fumo.
Certa vez achou na rua o gatinho da vizinha, uma senhora idosa, e gentilmente se prontificou em levar o bichano para ela. Comovida e feliz por alguém encontrar seu único companheiro dos últimos tempos, deu-lhe uma gratificação em recompensa, que foi logo convertida em erva fresca. Assim, toda vez que ele se via sem dinheiro, elaborava um plano para sequestrar o gatinho e depois aparecer na casa dela dizendo-lhe que o tinha encontrado novamente. Depois de tantas fugas do felino, a velha cercou todas as janelas com tela de proteção e o tão rentável plano de sequestro perdeu toda sua valia.
“O dia que eu topar com aquele gato na rua, eu rango ele”, prometeu a si mesmo, enraivecido.
Quando a polícia brotava sempre se livrava da droga antes da revista. Da última vez, não teve como escapar e a solução foi engolir o resto do cigarro de maconha.
“De onde você está vindo?”, perguntou o truculento policial, ao revistá-lo.
“Tava na missa, senhor”, respondeu com os olhos ainda lacrimejantes.
“Chorando desse jeito, aposto que foi missa de sétimo dia, né?”
Recentemente, com o surgimento da Pandemia, Bráulio tentou quietar-se, devido à obrigação do isolamento social. Conseguiu permanecer apenas um dia dentro de casa.
“Se você quer ficar na rua que fique. Mas se lembra de que eu e sua mãe fazemos parte do grupo de risco, se é que a gente vale algo para você…”, esbravejava o pai enquanto a mãe mantinha os olhos tristes sobre o filho.
“Que isso, pai. Lógico que me preocupo com vocês! Eu não vou entrar em casa não. Deixa a janela do meu quarto cerrada que eu entro por lá. O Coronga não pega em gente de rua. Deus protege!”, disse com um sorriso maroto sem mesmo acreditar há tempos na existência de um ser supremo.
Caso resolvido podia continuar saindo pelas ruas. Porém, estava desempregado há mais de cinco anos. Vivia de bicos, hora capinava um lote, outra lavava um carro, às vezes trabalhava de servente de pedreiro. Por causa da pandemia ninguém mais o procurava oferecendo trabalho. Se fosse para enxugar gelo ou ensacar fumaça, aceitaria. Com ele não tinha serviço ruim. O que não podia era faltar o bagulho.
Roubar e furtar estavam fora de cogitação, apesar de que na hora da fissura cometia uns deslizes, como aquela vez em que tirou o chuveiro do banheiro de sua casa, para conseguir uns trocados.
“Você não ajuda mesmo, né, meu filho? Seu pai ficará uma fera ao descobrir. Cria juízo, menino!”, lamentava a mãe desiludida mais uma vez. Casos assim não eram frequentes, mas ela sabia que não seria a última vez.
Devido à Pandemia o governo aprovou um auxílio emergencial para enfrentar o momento de crise, visando assim a cuidar da população. Bráulio imediatamente se inscreveu, revirou todo o quarto a procura de seus documentos esquecidos há tanto tempo e ficou por vários dias, incansavelmente, acessando o aplicativo, no celular esperando a aprovação. Até conseguiu decorar seu número de CPF. Todo dia ia à agência bancária buscar informações desejando mais que tudo a aprovação do cadastro.
“Eu tenho direito. Sou trabaiadô, moça. Fui fichado por quinze anos…”, suplicava em um tom mais elevado para a assistente do banco e para quem mais quisesse ouvir na imensa fila. E, quando conseguiu sacar, acabou com todo o rendimento no prazo de duas horas depois de tê-lo recebido. A segunda parcela durou um pouco mais: três horas.
Noutra noite, ainda em tempos de isolamento, vagava com passos e gestos lentos ao modo zumbi pelas ruas da cidade, já há um tempão sem fumar nadinha de nada, esperando que alguém o salvasse, quando subitamente uma Hillux parou repentinamente ao seu lado.
“Ô Chegado! Quanto você quer nessa máscara sua?” perguntou o playboy no banco do passageiro, um tanto agitado.
“Uai, com esta máscara, você vai pegar é tétano”, brincou sem entender a oferta e se aproximando do carro.
O homem riu e continuou:
“Papo reto, meu chapa. Preciso dela. Vou para uma festa de bacanão e lá só entra de máscara. Quebra esta para mim…”, e foi logo puxando a carteira do bolso da calça de onde retirou uma nota de vinte reais e a estendendo para ele. Os olhos do Bráulio brilharam e sem pestanejar retirou a máscara do rosto e entregou ao homem.
“Use-a ao contrário…”, sugeriu ao pegar o dinheiro.
O homem agradeceu com um sorriso, e o carro saiu cantando pneu em alta velocidade.
“Coisa doida… Se eu contar, ninguém vai acreditar…”, disse rindo da própria sorte e acelerando o passo na direção da boca de fumo mais próxima.

*Toni Ramos Gonçalves é escritor e editor