Pedra bruta

Por André Alvez*

A nossa casa ficava nos pés de uma montanha. Em volta, muito verde, um campo florido e a plantação de arroz.

Num canto da mata, de repente, nasceu um punhado de verde. A mãe disse que era praga, mas logo viu o erro, eram girassóis.

“Você, menino, cuide do arroz e esqueça o girassol, isso não dá dinheiro, não é alimento, só serve para ficar cuidando o sol, é uma planta besta.”

Mas eu gostava do girassol.

O pai trabalhou cinco anos sem parar, juntou um bom dinheiro, à custa do suor de todos nós, minha mãe, meus irmãos e principalmente o dele – o meu pai – labuta severa retratada nas mãos calejadas e a testa marcada de cansaço, pares de rugas acima das sobrancelhas escuras, caminhos de gotas grossas de suor.

Na hora do almoço, o pai reunia todos em volta da mesa; minha mãe, calada e atenta, se postava na outra ponta da mesa, contemplando o silêncio respeitoso em nome de Deus.

O pai era o único que sabia ler, ou ao menos assim nos fazia crer, abria a bíblia numa página qualquer e contava sempre o mesmo sermão, algo sobre glorificar o alimento e agradecer ao pai do céu pela graça alcançada.

Nunca entendi muito bem: éramos nós que acordávamos cedo, o dia todo trabalhando, as mãos doloridas pelo cabo da enxada, para no fim somente Deus ser elogiado.

Falei disso para Neidinha e ela me deu uma bronca: “Se Deus não tivesse lhe dado pés para caminhar, olhos para ver e mãos para trabalhar, você não seria nada”.

Estranho. Deus também deu tudo isso para carrapatos e eles se tornaram uma praga. Outros bichos também, todos os outros, mas nunca gostei dos carrapatos. Foram eles que fizeram doença no cavalo baio, um bicho doce e bom, trabalhador, pobre fim teve o Jeremias.

Por que Deus não cegou e tirou as patas dos carrapatos? 

O trator já não funcionava bem no fim da colheita, mas agora o pai tinha vendido muitas sacas de arroz e, com o dinheiro, podia comprar um trator novo.

O tempo todo nos alimentamos com as sobras do arroz e peixe pescado no riacho, que ficava bem perto, depois dos girassóis. Abençoado riacho. Além do alimento, nos dava o sabor do banho e levava para longe o cansaço.

Era difícil, mas, nos fins daqueles dias, o pai quase conseguia sorrir.

A mãe trabalhava muito, dava conta dos seis filhos, da casa e ainda ajudava o pai na lavoura. 

Eu nunca tive nenhuma vantagem por ser o caçula, também acordava cedo, junto com todos, nas mãos a enxada, pouco depois do chá com pão de milho, adorável alimento feito pela mãe, de madrugada, antes do cantar do galo, ainda na luz da lamparina.

Até pouco tempo, imaginava que a mãe nunca dormiu.

Por aqueles dias, logo depois da tempestade, apareceu um homem com um diamante nas mãos. Era uma pedra bruta, sem brilho, sem vida.

A mãe não gostou do que viu, mas o visitante não se importou com a cara feia da mulher que lhe abriu a porta, caminhou rumo ao pai nos passos caprichosos de quem carrega um tesouro. Arfava feito um javali ferido, esticando o corpo muito magro, combinando com a tez morena, a testa profunda, sobrancelhas de pelos grossos e esticados. Abriu as mãos e o diamante calou a voz do pai.

Disse ter encontrado a pedra na correnteza de um rio, depois de passar fome por nove dias e aprender a dominar os delírios nas noites sem luar. “Eu via coisas, sonhei pesadelos!”. Os dentes eram brancos, os da frente separados, a voz mansa, os cabelos ensebados, já embranquecidos, separados ao meio.

“Nasci em trinta e nove – ele disse, fazendo pose de orgulho, como se fosse algo muito especial nascer naquele ano – foi quando a guerra começou e ninguém sabia – completou, num brilho estranho nos olhos, como se visitasse paisagens distantes. Depois piscou, olhou de lados, deu de frente com o rosto severo da minha mãe e pouco se importou quando ela ameaçou fazer com as mãos o sinal da cruz. Bebeu o café da caneca e cuspiu o resto no chão sem nenhum pudor. Senti um cheiro ocre, algo forte, parecido com tudo, menos com café. Uma nuvem de serenidade finalmente baixou até a cabeça do sujeito, acalmando tudo em volta; parou de arfar, conseguiu suavidade no tom de voz decorado, mas mesmo sem descarrego, denotava pressa. A chuva ameaçava voltar e ficamos todos presos pelos cantos da casa, ouvidos atentos à fala do visitante inesperado: “sou homem do mato e vi um anjo quando a lua estava cheia, e o anjo me garantiu a existência desse diamante, levemente escorando num barranco do rio. Em gestos com as mãos, círculos invisíveis no céu, mostrou-me certinho o trecho e até os perigos para chegar até lá. Larguei tudo que fazia e me meti mata adentro. Fiz armadilha na árvore e a onça morreu espetada, misturei venenos com pedaços de carne e as cobras morreram com as línguas esticadas em carvão, juntei cambucá aos montes e dei aos macacos, os bichos entraram na mata, as jaguapitangas foram atrás deles para um lado, eu segui para o outro, porque o anjo mandou fazer assim.” Suspirou profundamente e riu com a boca torta pouco antes de o vento apagar a lamparina. Minha mãe acendeu a lamparina e seu rosto tingiu a parede numa imagem trêmula. O homem olhou a imagem na parede e tentou ser ligeiro: “Ora, quem sou eu para duvidar de um anjo? O rio estava quase seco no trecho, e na encosta, bem no lugar que o anjo indicou – enxugou o rosto com as mãos, jogou longe o suor que lhe derretia a testa – o diamante estava lá me aguardando, do jeito que o anjo falou. – novo suspiro ligeiro e as mãos limpando a testa que ardia. Logo a palidez retornou e prosseguiu narrando como quem conta a história de um livro e nós, boquiabertos, queríamos saber o final. Menos a mãe, desconfiada como sempre do visitante e do vento que balançava as roupas no varal. “Ah, o maior diamante de toda a terra, era sim senhor, o apanhei sem dificuldades e depois corri para longe, até a vista cansar e os uivos dos lobos se tornarem distantes, porque o vento era de tempestade e minhas mãos queimavam guardando o diamante. Só olhei para ele duas ou três vezes – E sorriu pela primeira vez, abrindo novamente as mãos que guardavam o diamante. Meu pai fez que não viu, o homem magro não se aquietou: “pedra bruta não tem brilho, precisa lapidar para se tornar brilhante, mas isso tem um custo que não possuo. – A testa prosseguia ardente, mas dessa vez ele ignorou o suor que caía no chão feitos pingos de chuva –  O anjo sempre soube disso e me pediu para vendê-lo às mãos de um homem de bons modos, temente a deus e aqui estou. Quanto me dá?” O pai sabia fazer contas, resmungou alguma coisa que não conseguimos ouvir, mas o homem magro, sim: “cinco mil cruzeiros é esmola, vale bem mais”. A rudeza do pai não o impedia de ser um bom negociante, e o vozerio dos dois homens ecoou pelos cantos da casa: leve embora então, não apareça mais aqui, vendo por vinte mil, vale muito mais, dou dez e não falamos mais nisso, já dobrei o preço, ninguém vai pagar mais, eu fecho nos quinze, baixei cinco, é uma boa pedida, pode ir embora então, não lhe dou nem mais um tostão, doze e não falamos mais sobre isso, aceito se for embora hoje mesmo e não mais voltar, o senhor paga em dinheiro, preciso viajar.

E o vento apagou novamente a lamparina. O pai não esperou a mãe acender novamente a lamparina, ele mesmo riscou o fósforo e a luz fraca iluminou os rostos dos dois. Ambos suavam numa intensidade de machado quebrando toras de árvores.

Apertaram as mãos. O pai passou por nós sem nos olhar, o caminhar duro e decidido, hipnotizado pela ânsia tão verdadeira quanto assustadora. Foi até o quarto e de lá voltou com um pacote de dinheiro amarrado num cadarço. A mãe engoliu a seco a aflição, os olhos arregalados em direção ao pai que solenemente a ignorou.

E lá se foi o homem magro, pouco se importando com a chuva fina e o sibilo do vento, ajeitando o chapéu na cabeça, a testa profunda refletindo um brilho de alívio, sem mais dizer, deixando a pedra sobre a mesa, bem abaixo dos olhos do pai, as mãos esfregadas uma contra a outra, o riso escapando junto ao brilho nos olhos desenhados na face dura: vale mais de cem – ele disse – olhando para nós como quem se vê pela primeira vez.

A mãe ouviu tudo num olhar sem falas.

Nunca antes eu tinha visto o pai sorrir. Naquele luminoso instante, afagando o diamante, ele sorriu com tanta intensidade que o vento, já pronto para apagar novamente a lamparina, fugiu pela janela. Aquele riso do pai foi como se tivesse guardado na aspereza da vida toda a felicidade que só então permitiu deixar escapar.

O pai estava feliz e felicidade de pai é o mesmo que frieira, pega em todo mundo. Rimos junto dele numa algazarra de gritos e abraços. A mãe não sorriu. Ela era de poucas falas e do rosto sempre fechado, mulher justa, criada nas regias da bíblia, não disse nada, mas desaprovou o negócio num olhar de profundo lamento.

O pai prosseguiu sorrindo, o brilho no rosto aumentado, indiferente à testa hirta da mãe.

Como a mãe não se juntou ao nosso abraço, o vento contornou a janela, retornou mais forte e apagou a lamparina num sopro feito lamento de gente triste.

O silêncio só foi rompido pelo barulho do fósforo sendo riscado nos dedos trêmulos da mãe. E algo havia mudado.

Eu e meus irmãos nos dividimos, as mulheres concordaram com a mãe, fincaram no rosto o mesmo silêncio e o olhar de desaprovação, eu e meus irmãos sorrimos abraçados ao pai, garantida estava a mesa farta até o final do ano e a geada já tinha nos castigado demais. E agora tínhamos o diamante.

Veio a noite, a primeira de tantas, e o pai não tirava os olhos do diamante. Minha mãe o chamou para o quarto num gesto de olhar: “e se aparecer um ladrão?” Indagou numa fala sincera, como se perguntasse para as sombras, a pedra bruta cuidadosamente postada no meio da mesa, calada e sem brilho, na risca dos olhos do pai.

“Vão todos dormir – disse o pai – eu fico vigiando.”

Desde então passou a comer farelos, bebia a água do pote sem ter sede, cuspia uma espécie de euforia, os dedos aos poucos marcando a crosta do diamante.

“Vou mandar lapidar, vai dar uns doze ou treze brilhantes, valerá trezentos mil contos cada um”, e não falava de outra coisa, só mudava o valor dos pedaços brilhantes do diamante depois de lapidado, valeriam duzentos, quem sabe no total daria mil contos, imaginava falando, a voz numa euforia indomável, o tempo todo sentado de frente à mesa, admirando o diamante, sequer saía lá fora; despercebeu o campo florido pelos girassóis olhando com amargura para o céu, aos poucos coberto pelas nuvens escuras, não buscou agasalho quando chegou o frio repentino e a lavoura, do verde intenso de antes, se transformou em espessos tons de cinza; não se preocupou em nenhum momento com o intenso piar dos jacus destruindo o resto do arroz – os dias trocados pela noite – dormia sentado diante da mesa, abarrotado de ânsia, tossindo seco, os dedos alisando suavemente o diamante.

“E se aparecer ladrão?” Falava todas as vezes quando passávamos perto dele.

Com as sobras do dinheiro, a mãe comprou banha e torresmo e o gosto do torresmo haverei de carregar na boca até o fim dos meus dias, como se fosse uma lembrança daqueles primeiros dias de vida escorada no diamante.

O pai mandou abrir todas as janelas durante o dia, ficava mirando a porta, feito um vigia, olhando ao longe, como um abandonado à espera do retorno de alguém.

Quando a noite chegava, fechava tudo, encostava as cadeiras na porta e usava pedaços de pedra para segurar ainda mais a trinca.

Escorria suores intermináveis de sua testa e ele sequer se importou com a bíblia caída no chão. Não tinha lugar para mais nada em cima da mesa, apenas o diamante.

“E se aparecer um ladrão?”

As irmãs deixavam a comida, torresmo e farinha, ele só comia quando não tinha mais jeito, reclamando da perda de tempo, as mãos mantidas ocupadas, protegendo o diamante.

E se o homem do diamante fosse o diabo? Desconfiava a mãe. Ele era muito magro e o diabo é muito magro, repetia quase sempre. E a mistura de medo e certeza foi se instalando.

Gaspar, o irmão mais velho, partiu numa manhã de domingo, dia de céu nublado, foi embora deixando em nossas vistas assustadas o adeus marcado pelo rosto parecido dos outros cinco irmãos que ficaram; “volto no mês seguinte” – disse num sorriso, num claro confronto aos nossos rostos aturdidos. Nunca cumpriu o prometido.

O pai nem deu pela falta, o diamante era mais importante que qualquer outra coisa.

Neidinha se juntou com o vendedor de mandioca, também foi embora, estava prenha, mas disso só soubemos tempos depois.

Um dia o pai chamou por Neidinha e nós, apressados, falamos ao mesmo tempo da desdita e ele balançou os ombros, “já foi tarde, mulher quieta demais tem pouca serventia, logo vai se encher de filhos e acaba voltando, até lá já lapidei o diamante e com o dinheiro vou comprar um trator e as terras dos vizinhos”.

Carlos, o irmão da cabeça ruim, foi picado por cobra, o pai nem ligou, a mãe cortou-lhe o dedo com faca, já estava rocheando, “deu sorte”, ela disse, “pegou na ponta dos dedos e dedo não faz muita falta, ainda mais a esse pobre que não consegue pensar”. Restou mais medo, porque cobra é serva do diabo e a figura magra do homem do diamante ainda passeava no pensamento da minha mãe, “era o diabo, certeza que era, levou embora todo o dinheiro e deixou a maldita pedra bruta cegando o seu pai” – dizia para cada filho que encontrava pelo caminho.

Carlos morreu no fim de dezembro, quando o ano estava acabando e para ele acabou de verdade. O dedo ferido de cobra foi a causa, mas a mãe culpou o diabo.

“E se aparecer um ladrão?” Disse o pai, quando soube. E nem foi ao enterro, ficou cuidando da pedra, que já ofuscava a sala, apagava quase tudo, só não gastava a vista do pai.

“Vou vender e comprar as terras dos vizinhos, uma camionete e um trator, um montão de sementes e um pouco de aguardente, para alegrar a vida, ah se vou, vou, sim senhor” – disse um dia, sem olhar para mim, mas para a porta trancada, como se a porta tivesse ouvidos.

Eu gostava da Nazária e senti muito quando o caixeiro viajante a levou. Ela era a mais bonita e, entre todas, a única que conseguia labutar sem demonstrar dissabor.

Vai minha irmã, mas me prometa voltar, volto sim, assim que a primavera chegar.

Vieram tantas estações e ela… Ai, que dor.

O barulho das rodas da charrete daquele dia, fazendo o som de coisas se acabando enquanto amassava a terra seca, nunca haverei de esquecer. Entretanto, aos poucos, as tantas estações me fizeram esquecer detalhes da voz e parte do rosto de Nazária.

Ela também nunca mais voltou.

A mãe foi que mais sentiu a falta de Nazária, era ela que cortava a lenha e fritava o torresmo. Quando a mãe resolveu cortar a lenha, uma lasca de madeira a cegou de um olho.

“Deve ter sido o diabo”, ela disse, “só ele para causar tanta dor”.

E dos olhos antes castanho, restou uma bola murcha, leiteada, completamente apagada, feito a pedra bruta em cima da mesa.

O pai reclamou um olho a menos para vigiar o diamante.

“Vai que aparece um ladrão!”

Já era dia de frio quando Nadir apareceu morta no matagal. Uns disseram que se enforcou, outros que foi molestada, as pernas sangravam e a cabeça permanecia firme em cima dos ombros; não tinha marcas brutas na pele, mas o peão e o padre garantiram que a tiraram de cima de uma árvore, com uma corda em volta do pescoço.

Pobre Nadir, quase nunca falava, muito menos agora, depois de morta.

O pai nada perguntou sobre Nadir, mas quis saber se o delegado sabia se existia por perto algum ladrão. O delegado fez a mãe marcar com o dedo tingido uma folha de papel. Ela ficou calada por um bom tempo, até o olho ferido chorava a morte de Nadir. Quando enfim retornou a falar, apontou os dedos para a estrada, num rompante desabafo:

– Foi o diabo!

Mal o meu corpo se cobriu de pelos quando percebi que somente eu restara para acudir o pai. A mãe quase nada falava, reclamando da dor no olho furado, da falta sentida por Nazária e as preces para cuidar das almas de Carlos e Nadir. De Neidinha se esqueceu completamente. Esperava o retorno de Gaspar e nem percebia a minha presença. Ora e vez dava ordens para cobrir o espelho do quarto, mesmo quando não estava chovendo, porque – dizia – o diabo gosta de olhar a própria imagem.

O pai continuava imaginando um novo dia e respirando o pavor. “Amanhã vou fazer dessa pedra três ou quatros brilhantes e depois comprar um novo trator e as terras dos vizinhos. Mas e se antes aparecer um ladrão?”

Nada falei quando o torresmo acabou.

E a luz fraca da lamparina ilumina os olhos do pai, faltosos de brilhos, a contemplar a pedra bruta já um tanto escurecida em cima da mesa. Entre cismas, o olhar passeando pela parede até voltar diretamente na direção da pedra bruta, a voz quase consumida pela ronquidão: “e se aparecer um ladrão?”

O brilho da lamparina, os raios fugidios dos relâmpagos ao longe e dos pirilampos lá fora, tudo brilhava mais do que o diamante.

Gaspar mandou um telegrama pedindo dinheiro. A mãe juntou o resto das moedas. ‘Um dia Nazária volta’, ela dizia enquanto batia o machado na tora de madeira, serviço feito quase às cegas, a mão esquerda protegendo o olho bom e ainda guardando um resto de cuidado com o diabo.

Eu nada disse, abarrotado no receio de causar mágoas, mas era evidente, muito mais do que diamante, a vista do pai precisava ser lapidada para retomar o brilho de antes.

Lá fora o mato tomou conta de tudo, os jacus fizeram ninhos nos espantalhos, enquanto o bando de girassóis – feito os olhos do pai presos ao diamante acima da mesa – vigiam o sol, mesmo em tempos de nuvens.

– Venha, pai, vamos tentar ligar o trator.

“Vou não, vai que aparece um ladrão!”

A mãe já não reclama, sussurra cegos lamentos, a casa transformada numa retumbante escuridão de lamparinas quase sempre apagadas pelo sopro do vento.

“Era o diabo!” – diz, na voz carregada de certezas que somente eu consigo ouvir.

Além do silêncio abraçando a escuridão, resta a pedra, a brutal pedra sem brilho, exposta em cima da mesa da sala, fincada diante dos olhos opacos do pai.

Quando amanhece, talvez seja mesmo outro dia. Sou o resto, aquele que sobrou e os girassóis parecem saber disso, ignoram o sol, se voltam na minha direção enquanto tento consertar o trator. Retiro o suor da testa e lanço um olhar de esperança para a porta, na vã esperança de ver surgir a figura do pai. Mas só ouço o som repetitivo da sua voz, cada vez mais fraca:

“E se aparecer um ladrão?”.

“Ele já veio, era o diabo!”, responde a mãe.

André Alvez – 2º lugar na categoria conto, versão nacional, do Prêmio Castro Alves de Literatura 2020

André Alvez

*André Luiz Pereira Alves – cujo nome literário é André Alvez – nasceu em Campo Grande/MS.

Formado em Comunicação Social, Publicidade e Propaganda pela UNISA-SP, é cronista do caderno B do jornal Correio do Estado, principal jornal diário de Campo Grande e do Estado de Mato Grosso do Sul, desde 2008.

Participou da coletânea de Crônicas e Prosas “Retratos Urbanos”, lançada pela Editora Andross de São Paulo em 2007. É autor dos livros: “No Pantanal não existe pinguim” – Editora Agbook – São Paulo, 2011; ”O santo de cicatriz” – Editora Life – Campo Grande/MS, 2013; “Crônicas da cidade” – Chiado Editora – Lisboa 2016; “A Bruxa da Sapolândia” – Chiado Editora – Lisboa 2017; “Nossas Crônicas” – Coletânea de crônicas, juntamente com as autoras: Lucilene Machado, Raquel Naveira, Maria Adélia Menegazzo e Theresa Hilcar. – Editora Life – Campo Grande-MS, 2019.

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