Por Fabrício Odassi*
Quando acordei percebi que já não existia. Não ouvi Peter Gabriel no despertador mas o mostrador ficou maluco. Seu Antônio, do bar da esquina, ainda não sabia que perdera seu melhor freguês das manhãs de domingo. Agora, catorze. A torneira da pia pingando, foi quase o tempo do tilintar da gota pingando… catorze noites, quando um outro alguém trocará sua vedação. Há alguns momentos, é difícil saber, alguém pronunciou meu nome, uma, quatro vezes…
É um sonho ruim e dentro dele há seres cheios de maldade. Sonhos são poemas, vigília, prosa.
Catorze versos, catorze elefantes, a uma amante somam-se quatro, cinquenta e seis facadas nas costas e fui morrer quando.
Catorze, eu, catorze.
Gatos têm sete.
Não posso afirmar que usei todas. É correto dizer que não as usei como deveria, nem mesmo vivi sete e tenho a impressão que morri setenta vezes e o lado direito da cama está vazio e ficará assim até catorze… Alguma marca do corpo que por costume persistisse se dissipará, apesar da nostalgia incômoda. A vidraça e os postes da rua vistos através desta vidraça não perceberão que já não há quem os observa e os rumores da vizinhança, todo aquele vozerio fofoqueiro e pianíssimo, serão violentamente arrancados do meu desprezo.
A poeira acumulará sobre a madeira da estante e alguns livros, invariavelmente os mesmos, talvez sintam falta do dedo indicador a puxar-lhes pelas lombadas. Bentinho gozará de paz e Capitu será tão desinteressante quanto a retidão de seus olhos. Gabriela, imóvel em seca e miséria, terá de aguardar seus desenredos e jamais conhecerá Nacib e nunca o trairá, todavia, Nacib será traído todas as vezes. Dante amargará no inferno à procura de Beatriz. Ficção paralisada. Mas será só por catorze.
Rip van Winkle e fábulas. Não durmo, não rezo, não trabalho mas também não descanso. Mas há um imenso catorze.
Baalzebub. Formigas, moscas e cigarras. Catorze paralisa o avançar do sol e quem é surpreendido em falta, catorze.
Aquele bêbado do Zé Nosso e seus vômitos dominicais hão de esperar sem nenhuma pressa. O velório municipal ficará vazio, ninguém morrerá em catorze, tampouco haverá nascidos de parto normal ou programado. Azar de quem for pego a meio-termo, de ir ou vir, ficará em espera de angústia por catorze eternidades.
Os amantes terão seus momentos eternizados como numa foto instantânea. Todavia amarelecerão e desbotarão, deixando o papel novamente vazio, sem traço de existência e seus movimentos serão calculados e abstraídos em equações quadráticas, descritos em cinemática inversa e registrados em notação com base dez.
Há desejos infinitos dentro das catorze vidas, que fossem uma só, e todos os desejos, meus desejos inconclusos, estes jamais esfriarão mas serão partes amputadas do corpo, cicatrizes onde coçarão como um membro fantasma.
Catorze. Fiz anos, hum…, deixe-me ver, noves fora… É tempo.
Tempo de continuar e sou obrigado a puxar o tempo pelo rabo, ele vem urrando, berrando e suas unhas riscam o chão e o chão geme como um quadro negro arranhado: arrepios sob as coxas e embaixo do maxilar salivante. Vinagre e sal. Limão, sal… Morder os dentes inoxidáveis de talheres.
Passo e aquela manhã também passa, ignorante do relógio estacionado, alheio à pulsação da vida, inconsciente do grande metrônomo. Não há mais quem dê corda no relógio ou substitua a célula de energia, não sei, nunca usei marcadores depois do catorze, ponteiros, areia, sombras, conchas, contas, ábaco. Há fanáticos para o sete e meio, outros se matam por notas de cem.
Eu, catorze. Ele me encontrou.
Relógios antigos badalam até doze. Treze e uma varejeira bota ovos dentro do meu ouvido.
Catorze é número real, hiato medido, um oco no meio. Catorze e já não é possível estar, sentir o sabor do espaço ou saborear a realidade segura do centro gravitacional. Aquele cão faminto habita um número qualquer, talvez o treze, ou o treze com oitocentos noves depois da vírgula. A alma de quem morre fica entre o zero e o zero seguido de vírgula, seis e setes. Depois de catorze a alma vai para qualquer outro número irracional.
Catorze e eu penso coisas descartáveis.
Nada durará depois do catorze.
Escrevo onde é possível mas um funcionário com cascos fendidos apaga logo depois. Paredes, piso, vasos, pele, testa dos outros mas tudo desaparece tão logo escrevo, condenado a escrever palavras na flor da água. Reescrever e reescrever sempre. Rabisco uma equação no ar e ninguém apagará. O ar é invisível. Rabiscar na areia da praia. Vem o vento. A alma é o vento, escultor da rocha do corpo.
Fios de cabelo: setecentos e setenta; dois mil, cento e oitenta e quatro; quatro mil, cento e quarenta e quatro.
Entre a morte e a vida ou se durmo e condenado à madorra sem fim, persegue-me o 14. Aquela sexta-feira foi treze e olhei para o mostrador digital
— 14:14
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aconteceu tudo num sopro. Um sopro. Catorze é o infinito que existe entre cada piscada, dois olhos, duas gotas. Entre a explosão de uma gota e antes que a próxima gota caia há o catorze e fui violentamente arrancado de mim.
Alguém que entrasse poderia ver meu primeiro beijo escorrendo na parede, a última mulher pingando do lustre, filhos que não tive espalhados pelo chão.
Fabrício Odassi – 1º lugar na categoria conto, versão nacional, do Prêmio Castro Alves de Literatura 2020

Foto: Acervo do autor
Luís Fabrício de Lima Odassi – ou simplesmente Fabrício Odassi – nasceu na cidade de Dracena/SP, em 1970, atualmente reside em Agudos, interior de São Paulo. Escreve desde que percebeu que a palavra é via de compreensão da angústia humana. É bacharel em design, escola de mestres que lhe são credores por toda vida. Mantém o blog https://fabriciodassi.blogspot.com/
Parabéns, campeão!