por Toni Ramos Gonçalves
“O tempo nunca nos dá uma segunda chance”. Rodrigo Lacerda

Após um forte clarão, ele se viu dentro de uma casa, apavorado atrás da porta, trancando-a. Pelo visor, conferiu se ainda era perseguido. Não viu ninguém.
Passou as costas das mãos sobre a testa suada, invadiu a residência por um corredor com fotos em molduras ovuladas, bem antigas penduradas na parede de lado a lado.
Uma mulher de cabelos grisalhos estava sentada no sofá, em frente ao televisor ligado, com um som quase inaudível. Olhou para ele de soslaio por detrás dos óculos de grau, ao vê-lo em pé na entrada da sala.
“Quem é você?”, perguntou o invasor.
A mulher não se apressou em responder.
Ele olhava de um lado para o outro, tentando reconhecer aquela casa. Ficou ali imóvel, aguardando uma explicação.
“Sente-se”, pediu a mulher apontando o outro sofá. “A novela está acabando. O Joel não demora, aliás, acabou de me ligar.”
“Quem diabos seria o Joel?”, pensou.
A mulher falava pausadamente. Não aparentava medo ou ameaça. Sentou-se no sofá indicado, ela ainda concentrada na novela. Observou os móveis simples da casa, a estante, a cristaleira, os porta-retratos empoeirados.
Inúmeras dúvidas o atormentavam, mas não conseguia formular tantas perguntas. Sua última lembrança era de estar sentado num banco de uma praça, com um rapaz, que ele não reconhecia, a chamá-lo pelo nome. Sem recordar de nada, aproveitou o descuido do rapaz ao telefone e assustado saiu correndo, até chegar ali.
Sabia que vivia no interior, com os pais, ajudando nas roças. Mesmo com a vida difícil do campo, ele tinha um sonho. Pretendia um dia casar com a Mariazinha, uma linda galega de olhos cor de folhagem. Teria que trabalhar muito ainda, estudar, ir para cidade, arrumar um bom emprego, aí sim realizar seu desejo junto à bela moça.
Olhando para o lado, notou que a mulher o vigiava, dissimuladamente.
“Poderia me ajudar a voltar para casa?”, suplicou em voz baixa. “Não sei como cheguei a esta cidade, e como vim parar nesta casa. Um rapaz que me perseguia talvez tenha me sequestrado. Não sei, exatamente.”
“O rapaz seria o Joel?”, perguntou a mulher, com traços de beleza na juventude.
“Ah, meu Deus, só podem ser cúmplices”, concluiu em sua mente confusa.
Levantou-se apavorado, tentando fugir novamente, os olhos girando de um lado para outro, buscando uma saída. Foi quando se deparou com uma imagem refletida num espelho, no fim do corredor.
Aproximou lentamente do reflexo, levando as mãos ao rosto. A pessoa refletida no espelho se parecia com seu pai: o cabelo todo branco, com uma moderada calvície e o rosto bem envelhecido.
Em sua mente lembrava que ainda ontem estava a correr de mãos dadas com sua amada pelos campos, o sol a brilhar num céu azul, a brisa a esvoaçar os cabelos dourados e radiantes de Mariazinha, o primeiro beijo. Ah! Aqueles lábios sedentos de amor.
Agora, diante o espelho, se via velho? Como era possível?
Voltou-se na direção contrária e se viu diante daquela senhora, de olhos cor de folhagem, com as sobrancelhas alteadas.
A mulher aproximou-se de braços abertos, abraçando-o, carinhosamente. O homem deixou-se afundar naquele cheiro desconhecido. Depois de longos minutos, a mulher com as duas mãos segurando-lhe o rosto, como de costume, o beijou na testa.
“José… José…”, disse sufocando o choro. Não escondia a tristeza, acentuada pelas rugas e por sua voz.
Diante seus olhos como num filme em alta rotação viu flashes de toda uma vida, trazendo-o de volta a realidade. As recordações desencadearam certo tremor.
“Meu Deus, Mariazinha, aconteceu de novo?”, disse aflito.
Nisso, a porta da casa se abriu e um rapaz mirrado, de olhos verdes, ofegante, adentrou-se na casa e deparou com o casal abraçado. Abaixou-se colocando as mãos no joelho, aliviado, buscando recuperar o fôlego antes de reclamar:
“Oh pai! Já disse que você não pode sair assim de perto de mim. É perigoso.”
“Tudo bem, Joel. Ele teve outra crise. O médico previu que com o tempo elas seriam mais frequentes.”, explicou Mariazinha enquanto o acomodava novamente no sofá.
A vida voltava a ter sentido para José. Aquela era sua casa, sua Mariazinha e seu filho. Estava doente e lembrou-se da gravidade dela. Virou a cabeça na direção da janela entreaberta por cuja fresta penetrava a claridade do entardecer e seus olhos se encheram de lágrimas. Seu medo era da próxima crise e se encontrasse perdido uma vez mais ou talvez para sempre, na sua própria memória.
Maravilha, Toni. A narrativa começa meio suspeita, inclusive com a reação do perseguido que deveria ser, na verdade, da senhora sentada no sofá: “Quem é você? O que faz aqui?”
Aos poucos, porém, narrativa flui, as coisas vão se esclarecendo e o leitor, envolvido pela trama, é presenteado com um belo conto da sua lavra.
Mais uma vez, Toni, você trata com sensibilidade e talento a questão da memória e outros temas correlatos, como a fragilidade, o amor, a velhice.
Por causa da pressa e do ineditismo da narrativa, há alguns vacilos de linguagem para retificar: “… em frente ‘à’ um televisor”; “… em ‘respondê-lo’”, “… ofegante, ‘adentrou na casa’”…
Abraço, parabéns, e vamos que vamos. (Almir Zarfeg)
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Oi Toni senti isso dentro da história. Vivi essa semana a sensação de um ente querido perder a memória do nada e não saber nem onde estava. Amnésia global transitória. Foram 12 horas até voltar. É uma loucura para quem acontece e quem ama e quer o bem de quem está sofrendo.
Muito bem narrado. Parabéns!
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Obrigado pela atenção e carinho de sempre. Realmente é algo que todos nós estamos sujeitos a sofrer. Abraço
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Incrível… que sensibilidade, Toni. Esse texto é um fluxo pela mente humana esquecida, pela mente humana ignorada pela maioria. Como é real e sincero, é emocionante!
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Vale a pensa ler e reler sempre com muito carinho!!!
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