
Por Toni Ramos Gonçalves
É madrugada. Luz apagada, somente a claridade da lâmpada que ilumina a rua que insiste em penetrar suavemente através da fresta na cortina. Sentado na poltrona macia que adere as formas de meu corpo, seguro o copo de vinho numa das mãos e o cigarro na outra, ouço a música distante, de alguma festa das casas vizinhas, que faz o fundo do ambiente onde o silêncio predomina.
Só dentro de mim ele não existe.
Fecho os olhos e viajo recordando toda uma vida. Não, não é toda uma vida, mas é como se fosse. Afinal de contas, não faz tanto tempo assim, mas, desde o primeiro instante, foi com se a gente sempre tivesse se conhecido.
Vejo-a ainda dançando no seu baile de debutante. Uma verdadeira princesa, deslumbrante. Todos os rapazes queriam dançar com ela. No salão, parecia uma bailarina profissional. Sua leveza chamava a atenção de todos. Ela me encantava. Naquele momento eu daria tudo para ser trinta anos mais jovem. Queria ser notado tanto quanto a notava. Era menina, mas seu belo corpo eu podia imaginar através das sedas que o cobriam.
E o desejo tomava conta de mim. O melhor seria sair dali porque eu mesmo já tinha dúvidas se conseguiria me controlar e não demonstrar o meu interesse por ela, às outras pessoas. Foi depois da valsa que eu me enchi de coragem e a convidei para dançar. Preparei-me para uma desculpa qualquer da parte dela, pois tantos eram os rapazes de sua idade que lhe rodeavam.
Fiquei surpreso embora já tivesse notado sua gentileza para com todos, quando a vi segurando o meu braço e me levando para o meio do salão. Eu tremia. Sentia-me um adolescente. Jamais havia dançado daquela forma, com tanto entusiasmo, transbordando carinho, orgulhoso do meu par.
Ao terminar a música, agradeci respeitosamente, mas a surpresa maior ainda estava por vir.
Puxando o meu braço com doçura, perguntou meu nome, quem eu era e sugeriu que mais tarde voltássemos a dançar. Agradeci e concordei rapidamente, temendo que ela desistisse do convite. Voltei à mesa onde estava o casal amigo que me levara ao baile. Queria fazer perguntas sobre ela. Mas sabia que isso chamaria muito a atenção. E me calei. Preferi apenas contemplá-la de longe. Não via mais ninguém além da formosa debutante.
A noite avançava, o dia ameaçando raiar no horizonte e queria mais uma oportunidade de uma dança, que eu não deixei escapar. Como da primeira vez, ela sorriu, abraçou-me meio à distância e saímos dançando. Eu devia estar louco, porque tinha a impressão de que ela sentia o mesmo que eu. Sentia seu corpo aproximar-se cada vez mais do meu. Sentia sua respiração forte, seu coração acelerado. Por alguns instantes senti que estava trêmula como eu.
O baile acabava e eu não sabia como fazer para pedir-lhe um telefone, o endereço, ou alguma outra forma de poder reencontrá-la. Mas ela pressentiu meu desejo, que talvez fosse idêntico ao dela, porque se adiantou pedindo o meu celular e foi anotando o seu número.
Eu estava feliz, ela não tinha se importado com meus cabelos já grisalhos, nem com a possibilidade de parecer seu pai. Ela também queria me ver novamente e isso era tudo que eu queria!
Com um autocontrole que nem mesmo eu entendi, deixei passar o fim de semana sem procurá-la, telefonando apenas no meio da semana seguinte.
Agora, aqui neste silêncio, minha alma grita e chora enquanto bebo e fumo um cigarro atrás do outro, sem conseguir conter as lágrimas. Procuro forças para voltar a viver, porque talvez a vida jamais volte a ter, para mim, a mesma razão que existia antes.
Deixei de ser o mesmo homem quando sua mãe, entre lágrimas, contou-me o terrível acidente ocorrido quando ela viajava para o litoral.
Naquele domingo, a estrada molhada pela chuva torrencial levou não só minha debutante, mas meu coração e parte da minha vida.

Pensar…
Análise critica de Wagner Andrade
É preciso dizer que estão em jogo na narrativa, duas formas de experiências aparentemente bem distintas e também distantes, parecendo situar-se em dois polos opostos.
De um lado a presença do adulto com um bom tempo já vivido, a maturidade presente, mas a sentir e a experimentar aí a própria experiência renovada.
Do outro, a jovem adolescente a debutar-se de fato para a vida, a encarar os primeiros desafios, no começo de um florescer, tendo em frente praticamente toda uma vida, diante de si, o caminho para a maturidade afetiva, interrompida bruscamente, nesse caso, com o destino trágico.
O que passa a unir essas duas experiências é uma forma de desejo compartilhado que se mostra também presente no interior da jovem, mas que se revela igualmente renovado no âmago do ser adulto.
Desejo que parece, da mesma forma, se abrir e se debutar ante o contato com a jovem, e que vem a se converter em amargura, ao saber da sua dolorosa perda.
