por Toni Ramos Gonçalves
Tem um corpo caído no beco em frente à porta do meu barraco. Mataram o jovem no fim da madrugada. Acordei com a gritaria, ameaças, e na confusão, o estampido de dois tiros, mas permaneci deitado na cama. Tiros na noite são frequentes por aqui, na favela. Quase todo dia surge um cadáver. Porém, hoje o barulho foi bem próximo. Lembro-me de ouvir o som de sapatos correndo, logo após os disparos e, segundos depois, um pedido de socorro, numa voz em agonia. Depois o silêncio na escuridão do beco. Agora, três horas depois do ocorrido, a polícia subiu o morro, isolou a área e a vítima está coberta por um lençol. Tentaram identificá-lo, mas os bolsos estavam vazios, e aguardam agora a chegada da perícia.
Há pouco menos de uma hora, aos primeiros raios do sol, homens e mulheres a caminho do trabalho e crianças indo para escola, depararam com o cadáver. Nesta hora eu já observava tudo pela fresta da janela. O corpo de um jovem mulato, de bruços, a cabeça na vala, o sangue empapando a camiseta branca nas costas, bermuda preta, chinelos havaianas, o rastro vermelho pelo chão a se encontrar com o esgoto, que escorria a céu aberto há mais de semana. Os curiosos, com o celular na mão, erguiam-se na ponta dos pés, na busca por um melhor ângulo para a foto ou filmagem. Os moradores tentavam identificar a vítima, outros faziam o sinal da cruz, outros retornavam assustados por onde vinham. E havia aqueles que passavam, como se aquela cena não existisse, fosse invisível.
Neste instante, dois detetives da polícia civil interrogam alguns vizinhos e curiosos, em busca de informações. Um deles bate à minha porta.
“Você mora aqui?”, pergunta o detetive num tom ríspido, ao atendê-lo.
“Sim.”
“Fala mais alto, por favor, quando responder. Mora mais alguém aqui com o senhor?”, pergunta retirando os óculos escuros e olhando para dentro da casa, a procura de alguém.
“Não, senhor.”
“Você sabe quem fez isso? Viu ou ouviu algo? O crime aconteceu bem aqui na sua porta. Nada?”
“Não senhor, vi nada não”, respondo, desviando o olhar.
Ele se afasta e, ao se aproximar de seu colega, comenta algo em baixo tom, e ambos me encaram em silêncio. Conhecemos as regras do morro. Não podemos prestar socorro, testemunhar. Apenas ver, ouvir e fingir que nada acontece. O medo comanda nossas vidas.
Moro na favela há alguns meses. Aqui tudo começa como provisório e irregular, com um jeito ou arranjo. Cheguei depois de ter a vida arruinada. Perdi a empresa, casa, família e sonhos. Graças a um amigo de longa data, vivo de favor até conseguir me reerguer. Tive sorte de não acabar mendigando nas ruas, vivendo debaixo de algum viaduto. Depois de perder tudo, eu estava disposto a me matar, se não fosse a minha covardia em tirar a própria vida.
Observo, agora, uma mulher negra, magra, cabelos grisalhos despontando por baixo do lenço preto, de braços dados com uma jovem mulata, de andar desengonçado. O detetive, o mesmo que me interrogou, conversa algo com elas e juntos avançam em direção ao cadáver. Ele ultrapassa o cordão de isolamento seguido por elas, abaixa-se e levanta o lençol sobre o corpo. A mulher leva as mãos à face, os olhos arregalados por detrás dos óculos, o desespero ao reconhecer a vitima. Ajoelha-se, apoiando a cabeça no corpo caído enquanto lamenta e chora, na mira dos celulares.
“Meu filho, meu filho… Ah, meu Deus, por que, por quê?”
A mãe entra em estado de choque, se contorce no chão e desfalece. O detetive e a mulata a amparam. Pedem urgente uma ambulância. Um senhor piedoso, que acompanhava tudo a distancia, oferece o casaco para abaná-la. Um copo com água e açúcar vem nas mãos de uma senhora, também de cabelos grisalhos, moradora em frente ao meu barraco. Outros rostos chegam às janelas. A aglomeração aumenta e a rua fica intransitável. Os policiais militares temem qualquer reação e tentam afastar as pessoas. O sargento comunica pelo rádio, pedindo reforço e exigindo a presença da perícia o mais rápido, devido à falta de segurança.
Ouço as sirenes se aproximando. Uma ambulância do SAMU e mais viaturas policiais estacionam na entrada da rua. Muita gente se dispersa e some pelos becos. É muito barulho por nada. Daqui a algumas horas, será apenas uma lembrança ou manchete a ser lida nos jornais do dia seguinte. Sempre foi e sempre será assim. Aqui não existe tempo para o luto.
Os paramédicos socorrem a mulher e a encaminham numa maca para ambulância, a mulata sempre ao seu lado e preocupada. A rua já vazia, o cadáver não é mais novidade. A perícia faz seu trabalho. Os policiais militares tensos, os fuzis nas mãos, sempre atentos, a vigiar qualquer movimento suspeito. Outros parentes da vítima, suponho, chegam, pedindo informações. São orientados pelo sargento e observam a distância. O rabecão chega, sob um sol de meio dia, e leva o corpo para o necrotério.
Decido, então, limpar a cena do crime, liberada há poucos minutos pela perícia. Estico a mangueira, ligo a torneira nos fundos do barraco, pego a vassoura. A vizinha generosa rapidamente chega à janela e oferece ajuda. Dispenso. Prefiro ficar comigo mesmo. No chão, coágulos de sangue escuro, cheios de moscas.
Um rapaz aparentando dezessete anos, vem pela rua, de boné, bermuda e camiseta, pele escura, calçando um tênis de marca, tatuagens no antebraço, corrente de ouro e outros acessórios, para pouco adiante e observa a cena do crime. Um minuto depois, outro rapaz, de vinte anos, mais bem vestido que o primeiro, aproxima-se. Escuto a conversa.
“Véy, foi aqui que rolô a parada. Subiram o Pinguinho”, informa o primeiro rapaz.
“Foi os homi?”, pergunta curioso o segundo rapaz.
“Que nada. Maior vacilo. Não passô o troco, mano, para namorada. Ficô com a grana.”
“Muito?”
“Que nada… O maluco ficô com troco de cinco reais e a mocréia na maior viagem, sentou o dedo nele.”
Os dois se afastam lentamente, seguindo seus caminhos, quando ainda ouço um deles.
“Véy, será que vai rolâ o baile funk, na sexta?”

Pensar…
Análise crítica de Wagner Andrade
Infelizmente, se torna praticamente impossível abordar os fenômenos que permeiam a esfera urbana, sem levar em conta o âmbito da violência. Mostra-se tão patente no dia a dia das cidades, ainda mais envolvendo os aglomerados urbanos, típicos das metrópoles e capitais. Os registros policiais sucedem-se, a todo vapor, os números simplesmente impressionam e servem para avultar ainda mais as chamadas estatísticas do crime. Mas o mais triste é quando se percebe a sua banalização, o que não deixa de envolver os ambientes mais hostis e certos meios e camadas degradantes da nossa sociedade. A partir de um único episódio mostrado nessa narrativa, cujo problema se percebe tão grave e visível, embora se torne motivo de mero “espetáculo” para muitos, a envolver a realidade dos morros, das favelas urbanas, o presente conto se permite tocar nessa melindrosa questão, provando que, mesmo se configurando como história curta, não se furta às mazelas ou aos graves problemas de um cotidiano ríspido e hostil, e que tanto oneram a vida social.
Gostei da temática cotidiana. Bem escrita, demonstrando a cruel violência que flagela a sociedade.
Parabéns Toni Ramis.
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Parabéns, Toni! Impecável…
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Obrigado!
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