Cantinho do céu

por Toni Ramos Gonçalves

Foto: Pexels

O asilo não passava de uma casa recém-reformada cercada por uma varanda. O chão era de cimento queimado, encerado de vermelho. Tudo era muito simples. Havia uns dez velhos sentados espalhados pela varanda e pelo jardim.

Uma velha senhora, sentada num sofá com o estofamento desbotado, foi sacudida por um cochilo sem sonhos. Voltou a fixar seus olhos azuis no velho sentado diante dela. Não foi por acaso que se sentou ali. Ele havia chegado à instituição há pouco mais de uma semana. Durante aqueles dias, relanceava brevemente em sua direção, na esperança de que a consciência estivesse lhe pregando uma peça. Não é ele. Claro que não é. Era um senhor esguio, a cabeça quase calva com poucos cabelos grisalhos restantes, a pele flácida em torno das bochechas, sobre os olhos castanhos, bolsas manchadas de rosa em suas pálpebras. Vivia calado, introspectivo. Às vezes, seus olhares se cruzavam e ela sentia o olhar dele passar flutuando, sem se deter em sua presença. Fingindo que não a via?  Na primeira semana ele não recebeu nenhuma visita, nem de parente ou amigo.  Simplesmente, foi deixado ali.

Uma cuidadora de idosos, muito magra, branca e alta, aproximou-se dela perguntando se estava tudo bem. Ela apenas sorriu e, fechando os olhos novamente, deixou a sua cabeça vazar e se viu novamente no passado. Era um sábado quente, de poucas nuvens no céu. Naquele fim de tarde, ia a pé para o local onde fazia ponto. Na época, a zona boêmia daquela pequena cidade mineira iniciava na parte íngreme da Rua Bandeirante Desbravador, indo até o topo do morro, onde reinava uma igrejinha centenária. Do seu lado esquerdo, um aglomerado de casas, juntamente com o bar Cantinho do céu, onde algumas prostitutas faziam ponto.

Naquele dia, ela se destacava com seus vários metros de cabelo louro. Usava um vestido vermelho, que modelava seu corpo pequeno e revelando todas suas belas curvas. Na mesma cor do vestido, as unhas, sapatos e a bolsinha.

“Tá podendo, hein Natasha!”, gritou a bicha na porta do bar do Argentino, ao vê-la passar. “Assim você me confunde, my darling.”

“Hoje vai ser diferente, môna”, disse, caprichando no requebrado, morro acima.

No bar Cantinho do céu, aguardava pelos clientes, sentada num banquinho alto, as pernas grossas cruzadas. Uma sensação de nostalgia flutuava junto com o odor da fumaça do cigarro que entrelaçava seus dedos. Observava um homem de longos cabelos grisalhos, bebendo cachaça e dando risadas, desfrutando os carinhos, abraços e beijos extensos com duas garotas, uma delas sentada no seu colo. Nenhuma era bonita. A impaciência fez com que Natasha se levantasse, fosse para o meio do salão e começasse a dançar sozinha, ao som de outra música de Nelson Ned*, na radiola de fichas:

Eu te dei meu amor

Por um dia

E depois sem querer te perdi

Não pensei que o amor existia

E também choraria por ti

Mas tudo passa tudo passará

E nada fica

Nada ficará

Só se encontra a felicidade

Quando se entrega o coração

Durante a música, enquanto cantava com voz aguda e descontrolada, um homem de quase dois metros de altura, um corpo de touro, entrou no recinto, aparentando não ter noção de onde estava. Sentou-se a uma mesa num canto. Ela parou de bailar e cantar e caminhou até ele, com um sorriso nos lábios vermelhos.

“Quer uma companhia, querido?”, perguntou.

Ele respondeu que sim e ela sentou ao seu lado.

“O que você quer beber?”, perguntou novamente, reparando aquele homem com cabelo crespo, rente, parecido com um feltro na cabeça ampla e achatada. A barba cerrada, o queixo quadrado, os dedos grossos, calado e um pouco risonho.

“Cerveja e um conhaque”, respondeu, observando o ambiente de luxúria e perdição sobre a luz vermelha.

Natasha acenou para o dono do bar, fez o pedido acrescido de uma dose de rum para ela. A noite avançava e depois de muitas doses de bebidas, o homem, até o momento acanhado, começou a se assanhar. Botou a mão quente grossa na coxa dela. Afastou a coxa direita da coxa esquerda e escorregou a mão. Ela cochichou algo no seu ouvido e se levantaram em seguida para os fundos do bar. Atravessaram uma cortina de tiras de plástico coloridas que dava acesso a um corredor, onde ficavam três quartos. Entraram no quarto do meio. Lá dentro, uma cama de casal e uma pequena penteadeira.

Tiraram a roupa. Ela ficou deitada na cama, viu a tatuagem no peito dele. O homem custou a encaixar a camisinha e se colocou entre as pernas dela. Ela sentiu todos os exageros de cada parte daquele homem e gostou. O prazer e a vibração dos corpos, ora numa posição, ora noutra, de forma frenética, terminaram entre urros e gemidos dos corpos suados sobre a cama.

Ele retirou o preservativo e jogou no cesto de lixo, como se nada de anormal estivesse acontecido. Vestiu-se, deixando sobre o criado mudo o dinheiro, mas antes de sair, segurou-a atrás do pescoço e a beijou. Depois se olharam olhos nos olhos. Seus olhos eram castanhos. Ela sorriu. Ele prometeu que voltaria, mas não voltou. Os dias se transformaram em semanas e as semanas em meses. Natasha alternou os pontos, ora no bar do Cecil, ora no bar da Janet… Imaginou que aquele homem fosse fruto de sua imaginação. Aliás, prostitutas não se apaixonam nunca, jamais. Desistiu de procurá-lo; nove meses depois, a barriga crescida, as vésperas do nascimento de sua filha.

 A cuidadora de idosos retornou, e a velha se assustou, ao vê-la cobrindo-a com um cobertor.

“O que foi dona Vera? A senhora está querendo alguma coisa? Estou achando você inquieta.”

A senhora olhou para o velho e pediu que a cuidadora se aproximasse.

“Sabe dizer se aquele senhor tem alguma tatuagem de um coração flechado no peito?”, cochichou em seu ouvido.

A enfermeira voltou o olhar para o velho, sempre em silêncio, a encarar as árvores centenárias na frente do casarão.

“Ah, o seu Antônio? Ele tem sim”, confirmou.

“Além da velhice, o que ele tem? Quase não fala.”

“Ele era pedreiro e caiu do andaime, quando ainda era jovem. Bateu a cabeça e por sorte não morreu. Demorou a se recuperar, mas nunca mais foi o mesmo. A memória dele não é muito boa. Foi isso que informaram, ao deixá-lo aqui. A pessoa que cuidava dele faleceu, e foram obrigados a deixá-lo aqui.”

A velha senhora ainda absorvendo a informação, viu a cuidadora se afastar. Levantou-se, deu dois passos na direção dele, segurou seus ombros e, olhando diretamente para ele, lhe deu dois beijos no rosto. “Obrigado por voltar”, disse num sussurro. O velho a olhou com indiferença. Com os olhos marejados, se afastou, a curtos passos, dirigindo-se ao seu quarto. No fundo do guarda-roupa, buscou uma mala e, de dentro dela, uma bolsinha vermelha. Retirou um pequeno espelho e o batom vermelho escuro. Pintou com a mão trêmula a boca enrugada.

Uma onda de euforia invadiu seu decadente corpo. Sorriu para seu reflexo no espelho e se viu ainda jovem, a bela Natasha. No fim de semana, faria uma surpresa para a filha, quando viessem visitá-la com seus netos. Era a hora de conhecer o seu pai.

* Música Tudo passara composta por Pinto D’Avila / Ned Nelson

Foto: Pexels

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