Trabalho infantil

Por Toni Ramos Gonçalves

Comecei a trabalhar com onze anos. Foi quando descobri que era pobre, muito pobre, quase um miserável. Decidi que era preciso reforçar o angu com couve e auxiliar nas despesas do barraco. Morava no morro do Rosário, lugar barra pesada. Os filhos dos vizinhos na maioria eram engraxates que faziam ponto no bancão na Praça da Matriz de Santana, em Itaúna. Era um bando de garotos infelizes e revoltados como eu. Além de engraxates cometiam pequenos delitos nas ruas e eram temidos pelos meninos mais fracos. Eu era um dos medrosos, depois de receber muita pancada na rua. Minha mãe, sempre uma grande protetora proibiu que eu os tivesse como companhias.

A primeira opção para o trabalho que surgiu, então, foi vender picolé. Não era um bom vendedor (e acho que ainda não sou até hoje). A comissão das vendas dos picolés era muito pouco e no final mal dava para cobrir os picolés que eu consumia. Eu era o vendedor e maior comprador. Aliás, era uma criança sujeito a desejos e vontades, e criança adora picolé. Passei então a catar sucata, revirando lixão e quintais abandonados. Era muito lixo para nada. Nunca conseguia juntar o suficiente. Lembro uma vez que enchi umas latas de óleo de nove litros com pedras, para aumentar o peso delas. Carreguei por quinhentos metros oito sacos de lata (com pedra) até a casa de um comprador. Lógico, que ele descobriu “meu golpe”.  Quando terminei o último saco, ele começou a abrir as latas e retirar as pedras. E eram muitas. Todo aquele esforço, em vão. Fiquei na maior vergonha. Não houve esculacho por parte dele. No fim ele pesou as latas. Deu uma ninharia de dinheiro. Mas, ele se voltou para mim e disse que ficaria com as pedras, pois precisaria delas para fazer um alicerce de um puxadinho no barraco e me deu uma boa gorjeta pelo serviço extra. Pediu que na próxima eu trouxesse somente as latas. Nunca mais voltei lá.

Aos doze anos parti para capina de lote. Como eu ainda estudava num período do dia levava dois dias para finalizar o serviço. O primeiro lote tinha mais pedra do que mato. A enxada, que era emprestada de um vizinho, lascava cada faísca e eu admirava aquela experiência. Parecia um troglodita ao descobrir o fogo. Um bobo alegre. Minha mão ficou toda detonada, cheia de calos e para terminar no outro dia, tive que enrolar uns panos na mão para finalizar. Doía com força. A dona da casa nos dois dias que ali fiquei não deixou que eu fosse embora sem um almoço. Um amor de senhora, que não lembro mais seu nome. Tinha carne de primeira e um sabor diferente da comida de minha mãe. Muito deliciosa. Quando recebi os trinta cruzeiros pelo serviço, sai na maior alegria para a rua. Enfim, poderia comprar meu time favorito de futebol de botão, além de doar o restante do dinheiro para minha mãe. Foi assim durante um ano, capinando (desbravando) quintais. São muitas as histórias, que um dia prometo contar.

Aos catorze anos pedi a minha mãe para transferir meu curso do ensino fundamental para o horário noturno, pois assim poderia trabalhar durante todo o dia. Comecei a trabalhar como servente de pedreiro do senhor João Grilo (alguém se lembra dele?), ele já com uma idade bem avançada. Era um excelente profissional. Eu era um garoto magérrimo, desnutrido e mal conseguia carregar meia lata de concreto. Ele ficava bravo comigo. Eu era muito fraco. Com o tempo o esforço e má alimentação começaram a afetar minha concentração na escola. Estava sempre cansado. Um dia, já estressado e irritado com a exigência absurda do pedreiro para que eu sempre trouxesse a lata cheia de concreto, fui almoçar e não retornei mais. Continuei a conversar com ele por muitos anos. Era amigo da família e minha mãe explicou para ele os motivos de minha desistência. Trabalhar sem prejudicar os estudos.

Duas semanas depois, já pensando em voltar para capina, consegui um emprego como auxiliar de funilaria. Fui o último discípulo do mestre funileiro Afonso Franco, com quem aprendi os macetes da profissão e arte em manusear chapas. Ele era profissional autodidata, mas excelente nos seus trabalhos. A medida que os anos passavam aprimorei meus conhecimentos em caldeiraria e neste mês de julho de 2019, completo trinta e quatro anos na profissão. Tenho um orgulho imenso de ter sido seu aprendiz, pois graças a esse aprendizado, consegui sustentar minha família por tanto tempo.

Iniciar no trabalho ainda criança só me beneficiou. A necessidade de buscar algo melhor para minha vida me levou ao trabalho. Afastou-me das ruas, da vadiagem e das más companhias. Sempre tive disposição para qualquer serviço honesto. Ainda sobrava tempo para brincar, jogar as peladinhas nos campos de terra, ler meus quadrinhos e livros, além de estudar. Durante a vida busquei em duas vezes outra profissão, mas sem sucesso. Meu espirito rebelde não deixou que eu mantivesse uma boa relação com patrões, e há muitos anos sou um profissional liberal. Meus filhos sempre que possível, me ajudavam no trabalho, quando eu precisava. Via em seus olhos que estavam felizes em me ajudar e mais ainda quando eu os compensava pelo trabalho. Hoje vivemos outros tempos. Falar de trabalho para criança e adolescente é cutucar um vespeiro. É polêmica, na certa. Em minha opinião, não acredito que o trabalho infantil seja prejudicial. Lógico, que não vamos colocar uma criança de seis anos cortando cana, pois, seria um absurdo. E nem vou citar o trabalho escravo seja com crianças, jovens e adultos. Isso é inadmissível. O governo precisa sim criar projetos que concilie trabalho e escola a partir de certa idade (vou sugerir doze anos para um curso técnico), gratuito, de qualidade, uma forma de afastar os adolescentes das drogas e criminalidade alem de implantar a cultura do trabalho.  Funcionou comigo e com meus filhos e acredito que possa funcionar com outros.

Por mais humilde que seja, um bom trabalho inspira uma sensação de vitória.” Jack Kemp.

Foto: Emre Kuzu/Pexels

Deixe um comentário