Um conto de Toni Ramos Gonçalves

A fila para o caixa aumentava a cada segundo. Era feriado prolongado e o supermercado estava lotado. A atendente de caixa tinha o cabelo preso num coque e o rosto inchado de quem não tinha uma noite de sono decente havia meses. Seus olhos eram um pouco mais abertos de que uma asiática e sua pele tinha um profundo e belo bronzeado. No crachá pendurado no uniforme, o seu nome: Marcela.
“Bom dia, senhora! Tem cadastro no Méliuz[1]?”, ela perguntou forçando um sorriso.
A senhora, cabelos recém-pintados, unhas feitas, sorridente respondeu que sim. Marcela estendeu a maquininha para ela e com certa dificuldade digitou os números do seu telefone.
As compras foram passadas no leitor de códigos de barras, uma a uma, ao som do bip de leitura. O estabelecimento, cuja entrada e saída eram próximas à via de trânsito deixava o ambiente enlouquecedor, com toda aquela gente, todos aqueles barulhos.
“Cento e oitenta e dois reais e quarenta centavos”, informou o valor total ao passar todos os produtos. Marcela lembrou que aquele valor adicionado de dez reais daria para pagar a sua conta de luz atrasada há dois meses e sujeita ao corte iminente.
A velha retirou o dinheiro da bolsa e buscou as moedas na bolsinha, sobre os olhares furiosos dos outros clientes na fila. A calma fria daquela senhora trazia a lembrança de sua mãe. Há seis meses tudo mudara, quando a mãe sofrera um derrame, paralisando o lado esquerdo do corpo. Agora para trabalhar, sem parentes na cidade, contava com a boa vontade de amigos e vizinhos para cuidar dela. Pagamento efetuado, Marcela solicitou ao embalador que a auxiliasse com as compras até o estacionamento.
Um sorriso sem graça vincou seus lábios, quando se deu conta do novo cliente. Um homem de meia idade, a careca brilhando em meio ao cabelo ralo, a testa imensa. Há pouco mais de cinco dias ela o atendeu na porta de seu apartamento com a notificação da ação de despejo. Ali, no supermercado, o atendeu de forma automática, sem muito contato visual, na dúvida se ele a reconhecera.
“Eu avisei na imobiliária o motivo do atraso e que em breve eu pagaria”, lembrou-se de sua indignação ao assinar a intimação. “Povo mais sem coração. Queria ver se fossem eles no meu lugar”.
A doença da mãe consumiu todas as economias, que já era pouco, e a demora do pagamento pelo INSS (sim, a mãe ainda trabalhava quando adoeceu), atrasou tudo, até suas vidas. A vontade era esfregar aquela intimação na cara do oficial de justiça, do servidor público ou responsável por toda aquela desgraça.
Foi rápido o atendimento, pois se tratava de uma compra de poucos produtos, todos de ótima qualidade.
“Noventa e dois reais e vinte centavos”, disse com certa raiva na voz.
“Crédito, por favor,” informou o homem inserindo o cartão na maquininha.
Mesmo sabendo que ele era apenas mais um cumprindo seu dever no trabalho, sentiu-se aliviada quando ele se retirou, após assinar o recibo de compra.
“Oi, tudo bem?”, cumprimentou o próximo cliente, um jovem de pele morena, densa cabeleira preta, todo sorridente ao colocar as mercadorias no balcão.
Marcela o fitou. Os olhos grandes, expressivos, claros e úmidos. Seu corpo pairava delicadamente o último limite da infância e estava quase desenvolvido de todo.
“Não estou vendo você na faculdade”, continuou. “Já formou?”
“Ah, não”, disse ao reconhecê-lo. Seu modo como apertava os olhos ao falar era simpático. “Tive que trancar a matrícula esse semestre”. Lembrou-se de algumas vezes quando toparam pelos corredores da faculdade de direito e no bar em frente à universidade.
“Minha mãe adoeceu e exige cuidados constantes. Mas, devo voltar logo”, mentiu para si mesmo, enquanto passava as mercadorias.
O rapaz acrescentou algumas camisinhas e um chocolate a sua compra.
“Sessenta e nove reais”.
Ele pagou no cartão de débito desejando melhoras para sua mãe e esperançoso por sua volta a faculdade.
O outro cliente parecia um playboy de asilo. Cabelo pintado, óculos de armação grossa. No rosto dele, um sorriso meio convencido de um cara tranquilo. Feio como ele só. As mercadorias, no carrinho lotado. Então veio a lembrança de seu vizinho Renan, enquanto passava as mercadorias. Era um homem, com seus quarenta e nove anos, cabelos grisalhos e desgrenhados, a barba por fazer, em boa forma física, mas começando a ficar com a barriga meio flácida. Viúvo há dois anos, vinha sendo seu grande amigo nos últimos meses, sempre atencioso, mostrando interesse em ajudá-la com os cuidados frequentes de sua mãe. Fazia dois dias que não conversavam. Naquele dia ao instalar a cortina no quarto de sua mãe, sua desconfiança a respeito dos olhares dele para ela se confirmaram. Não que Renan fosse feio, como o cliente no seu caixa naquele momento, mas pesava a diferença de idade. Ao ver o aviso de despejo sobre a cômoda, ele não hesitou em oferecer-lhe ajuda. Na semiescuridão da sala, ele fixou os olhos no seu decote, acariciou gentilmente seu braço até segurar sua mão. “Você é uma mulher muito linda e formosa”, foram as palavras dele. Naquele dia, antes de sair para o trabalho, parada na soleira da cama, enquanto aguardava a chegada de uma amiga, observava a mãe por um minuto tentando acalmar a angústia. Beijou a testa dela, ainda em dúvida: aceitar ou não a ajuda do vizinho e consequentemente o que viesse depois. Afinal, tudo nesta vida tem um preço. A única certeza que tinha é que ligaria para ele ao término de seu expediente.
“Quinhentos e setenta reais e quarenta e cinco centavos” , disse o valor total do carrinho lotado de mercadorias. O homem pagou desejando-lhe um bom dia.
Afastou-se das lembranças e do futuro incerto, quando um gordinho baixo, cabelos crespos grisalhos, acompanhado de uma bela mulher de vestido curto vermelho e um corpo lindo, despejou sobre o balcão duas caixas de cerveja em lata. Notou-se certo estresse na voz. Sua cara gorda e hipertensa, não lhe era estranha.
“Conheço você de algum lugar”, disse empolgada:
O homem, espantado ao ser reconhecido sorriu com os dentes a mostra, as bochechas vermelhas queimadas pelo sol, diminuindo seu mau humor.
“É possível sim. Sou escritor. Deve ter me visto nas redes sociais. Às vezes eu bombo por lá. Facebook, Instagram”.
A atendente já havia lido algo do escritor e tinha gostado. Aliás, lembrou que o filho dele cursava direito na mesma sala e sempre compartilhava os textos do seu blog nos grupos virtuais da turma da faculdade. Achava interessantes os contos que ele escrevia.
“O senhor encontrou tudo que precisava?”, Marcela perguntou após passar todos os produtos e com certa admiração.
“Como diria minha amiga e escritora Aden Leonardo: encontrei, mas não posso pagar, aí vai só isso mesmo.” Respondeu o escritor, despertando um sorriso sincero nela e pagando a conta com o cartão de crédito de sua mulher.
O casal saiu carregando as sacolas plásticas e antes que se afastassem muito a atendente o surpreendeu ao chamá-lo.
“Senhor, senhor…”, ele se voltou para ela. “Um dia você conta minha história?”, pediu.
Sobre os olhares de alguns curiosos, sorriu respondendo.
“Pode deixar. Conto sim.”
[1] Méliuz é uma startup brasileira, criada em 2011, que disponibiliza gratuitamente em sua plataforma cupons de desconto de lojas online e devolve ao consumidor, em dinheiro, parte do valor gasto em compras direto na conta bancária.

Ótimo
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